ANTÍMIO DAMIÃO
Antímio Damião (Portugal) . Autor / Designer e Ilustrador / Estudante de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa
ANGST
Sou por descobrir.
Sou tantos que me esqueço de ser eu.
Sou o que penso e me transcende,
O infinito de e em mim,
Gigante no vazio de mim mesmo,
De alma longe,
Vizinha do fim,
Do trágico destino de ser sem ter sido.
Não sei se vá ou fique,
Se sou ou pareça ser,
Se sou o que nunca fui.
Temo a vida,
Toda ela absurda,
Toda ela nada que tudo vale.
A vida corre a meu desfavor;
Angústia esta, a minha,
Onde não me sinto estar,
Embora me pense e sinta aqui.
Tenho vontade de não ser,
De olhar o mundo que não sinto,
De me abandonar sem saber se quero.
Sou apenas em mim,
Onde tudo se irá.
A luz treme por entre os dedos,
Baila nas íris afadigadas.
Procuro ver das janelas de outros
O que lá fora há,
O que me retém cá dentro.
Afundo as mãos nos bolsos.
Tudo ou nada acontece.
A vida cala homens e ratos.
(O silêncio todo.)
Esgaravato o tédio como um cão a terra.
Viajo nas sombras e conheço gatos
Em vielas cuja treva se amplia,
Mas que, iluminadas, nada espantam.
Saio dos bares de manhãzinha,
Vou até à alameda,
À sombra doce das acácias,
Onde ardinas apregoam as novas do dia.
Sob a ponte me esgoto, ante a aurora.
(Como num sonho. Aqui.)
O corpo cosido de pele,
Sustido pelas andas da vontade,
Condenado ao reduto da carne.
A memória é na boca dos vivos,
Lugar onde se ultimam as histórias.
A alma dança noutra vida,
O actor faz-se em palco despido.
O corpo gasta-se e saúdo
Os velhos amigos,
As antigas modas,
As chuvas de Outono,
Os gritos das mães,
Os cães vadios,
As paredes de pedra,
Os dias curtos,
O escurecer das ruas no Inverno.
Nas minhas costas batem as portas
De todas as casas onde vivi.
A vida dá-se como quem
Cobre de cabelo os olhos.
Rio da finitude,
Do sentido deste mistério todo,
Mas, no fim,
A arte ri na cara da morte.
DITIRAMBO
Ao poente, os sátiros deixam os bosques.
O bode bale à luz que a Lua enxota.
Dioniso vai-se em plangente silêncio.
O dedo trava os lábios,
O medo empanca a língua,
Mas a música ecoa, distante,
Em profana transcendência.
Antes a fantasia,
As neves eternas,
A longa espera,
A travessia de Caronte,
A vida sonâmbula.
Não há culpa ou grito que sirva
Ao despertar que reclama vida.
Mas os faunos fogem,
E as fadas mirram,
E o espírito vai-se,
E os corpos morrem.
(As Bacantes fogem para as colinas
Antes que as tochas se apaguem
Nas casas para lá das montanhas.)
Visto-me de vontade e
Rogo por chifres e cascos,
Por tiaras de flores,
Cachos de uvas maduras
E pelo milagroso toque de Pã.
A UM PASSO DO FIM
O tempo apodrece a vida
Que espera e foge,
Que pausa a meio caminho,
Atida à carne fátua,
Agrupada em anos corridos.
Vai-se o mundo
Que não chega,
As palavras
Que nada sabem,
A voz da língua,
O filho da mãe.
Perdem-se horas
E rostos tensos
Em lodo mnésico,
À procura do que nada é.
É comum errar no viver,
Pois nada há senão visto.
A vida inquieta e desfeia
no limite do spleen.
Um sorriso na alma,
A folga da morte.
O trapezista da vida
Cai na rede do haver
E aí se sustem,
Nas malhas eternas,
A um passo do fim.
SANTÍSSIMA DUALIDADE
“Caminha, Filho”, disse o Pai.
E o Filho ouviu
E caminhou,
E caiu de joelhos,
A sós,
No deserto.
“Quarenta dias”, pediu o Pai.
“Ai, Pai”, disse o Filho,
“Fome minha não aguenta,
Nem santidade,
Virtude ou verdade,
E, esta seja dita,
Nem eu a Ti, Pai.”
O Pai tornou:
“Um teste faço
Antes que à cruz Te pregue.”
“A qual?”, perguntou o Filho,
“A de antes?
A de hoje?
A de sempre?”
“A de todos”, volveu o Pai,
“A da dor divina,
Da chaga no peito.”
“O Meu, queres Tu dizer”,
Escarneceu o Filho.
Voltou o Pai:
“Desdizes-Me?”
E vai o Filho, hesitante:
“Antes o epitáfio e a carne podre,
O sangue à terra de longa míngua,
Que rogos de boca Tua.”
O Pai, abespinhado,
Ribombou lá do alto valente troado:
“Sê fausto, ó Messias,
Pois aqui mando Eu!”
“É verdade, Pai.
Teus castigo e aferro
Superam venturas
De Teus filhos,
Os quais esqueceste,
Tal como Eu,
Na linha torsa da sorte.”
Ora, pesar este se passou
Em longe e ermo lugar,
Onde o Filho, cabisbaixo,
Ouviu o Pai a falar.
A culpa sopesou no Filho
Que, esbracejando,
Se entregou a caldos ventos
Daquele deserto vasto.
Diabo ou Demo nem vê-lo,
Ou mal de carne e pranto,
Apenas Ele e o Pai,
E nenhum Espírito Santo.
AVENIDA E NOITE
Na cidade sombria,
Cães e putas de dor cheia,
Corações e candis partidos,
Lua vacante, a de sempre,
Óis do último orgasmo.
Sexo na trama da treva
De parques sós e pichados,
Tédio para além das janelas,
Nudez que atrai os homens.
Na fadiga das ruas tristes,
Tarda a traição do indulto.
Eis ruflos, uivos e passos,
E pontas velhas de cigarros.
O vento embala a vida
Na chegada fria da noite.
Saudade do que terá sido
Esta avenida onde nada é.
Há pouco aqui e agora,
Ó alameda suja e vaga!
Em ti asas de guarda-chuva
E vários amantes de outrora.
DÓ GÓTICO
Um pingo na banheira.
O casarão em silêncio.
O pesadelo do homem.
O medo gravado na alma
Gira pelos corredores.
A lua encobre o telhado.
O lado mudo da cama.
Arrefece.
O sino dobra em rebate.
As térmitas comem a mobília.
A vida tarda.
A morte em lento vagar.
Lamento.
Esvaziar o ontem que nada é hoje
Senão esqueleto na terra.
Suspensa descida a pique.
Unhas rasgando o chão.
O poeta saiu para a rua
E as pulgas do casaco perguntaram:
“Aonde vais?”
“A lugar nenhum”, respondeu ele.
(Por sorte, a plebe de estrelas
Desceu hoje para o ver passar.)
É-SE
Mau dia por terras de solidão.
Ergue-se cabeça, ombros, pálpebras.
Em cima, o azul;
Aqui, o capital.
A puerícia de ser uma vez,
Sem retorno ou amparo,
Na expiação das lágrimas.
Humaniza-se o mundo,
E eis as lágrimas.
O marco da vida?
Tu.
E disso tens pena.
A vida já era,
“E com razão”, diz a Morte.
Foi boa, foi, mas…
Nada é, sabes?
Só tu.
E só eu.
Pesada pena,
Tua e minha.
DESENHO DE CRIANÇA
Aos olhos de uma menina,
O Sol brilha no meu peito.
Nossas mãos de ancinhos
No ar se elevam, a par.
Há uma flor e um animal,
O meu e o nome dela,
Estrada e céu de fino traço
E assimetria de corpos
Como monstros de inocência
Na visão doce da criança.
Olho pela janela:
Lá fora cai o mundo.
Estará a verdade no que vejo
Ou na candura tosca do desenho?
PAIXÃO TRAZIDA
Contigo estive
E ao partir te trouxe.
Cruzo a noite com teu rosto em mente
E o tempo pára, indeciso.
ANTÍMIO DAMIÃO