Anarquia ecológica numa Matriz de area

 

CARLA CARBATTI


O mundo já ia tão pouco (para nós humanos). Tão pouco que fazer mundo com uma árvore, com uma conversa na esquina, um canto de pássaro, um beijo de amor, enfim, fazer alegria de corpo com outros corpos, é um gesto insurgente. Aí veio a pandemia. Bom, chamemos as coisas pelo seu nome, aí veio o morcego, representante de um mundo não humano que comodamente chamamos natureza, para nos alertar que o desmatamento, o crescimento das minas a céu aberto, o comércio de animais selvagens e o aquecimento global, ou seja, a ação depredatória do capitalismo, da qual fazemos parte, como os felizes e covardes habitantes de Omelas (1), nos deixa cada vez menos mundo. Nisso pensava quando me veio ao pensamento uns versos do Gaspar Domínguez:

digo que estou aquí para salvar o mundo

de min mesmo

Conheci seu A matriz de area, em 2019, no Bonaval. Fui ali mais com a intenção de rever o editor, Wlad Vaz, e acabei retornando com as mãos cheias de areia. Tal é o grao /das incertezas xeológicas. Tem livro que faz tardanças dentro da gente, exige suas viagens, até que nas trocas entre dentro-e-fora ganham a consistência das palavras.

Me alegrou muitíssimo que o lançamento do seu livro (como uma ave ofertada ao céu) fosse num jardim, o Bonaval, como antes comentei. (O nome administrativo é Parque San Domingos de Bonaval, mas não falamos a língua oficial). Isso diz muito da maneira de fazê-lo, da sua matriz. Pensemos o jardim não como um aprazível lugar de adornos botânicos, mas como um bosque de complicadas atuações multiespécies; a jeito de Epicuro, como um lugar aberto, inclusivo, cogestionado onde saber-e-atuar se confluem no manejo da terra comum. Um lugar de artesanato comunitário. Assim Gaspar nos conduzia, com o fio tímido e terno de sua voz, pelas materialidades vibrantes do Bonaval e os seus versos iam formando-se em delicada reciprocidade com as múltiplas e variadas texturas, sons e configurações das existências ao nosso redor: pequenos riachuelos, pedras, musgos,  mosquitos, risos. O mundo então era muito, comunal coma o río.

Na epígrafe do livro, nosso poeta nos lembra que em geologia matriz é o material intersticial feito de partículas mais finas que rodeiam os corpúsculos mais grossos que constituem uma rocha. A matriz é ínfima e porosa: grãos de matéria. Certamente o geólogo e o poeta têm jeitos diferentes de experimentar a pedra. Formulam perguntas distintas ao entrar em contato com sua pele cheia de cantos e memórias. Mas ambos, se aprenderam a fazer-com, a compor vizinhanças, sabem que longe de ser uma coisa inanimada, somente manipulada pela agência humana, a matéria é um componente ativo de um mundo em formação. E é no intercâmbio respiratório e metamórfico com suas plasticidades que a ciência ou a poesia criam formas singulares de atualizar o mundo. O conceito ou o poema é feito de feixes de fluxos emaranhados que encontram sua metaestabilidade na coimplicação nos agenciamentos humanos e não-humanos, no meio das correntes de matérias e suas expressões. Sim, a pedra tem seus pensamentos, sua história forjada e contada nas contínuas relações com seu entorno. Podemos dizer, então, que a matriz de areia atua como uma frequência neoformativa, intersticial, que dará espessura a certas relações. Ela pode formar um cascalho, um mar ou um deserto, a depender dos componentes implicados, do tato, da disposição, do descuido, da demora:

Area fina,

rochas e basaltos,

o refugallo da batalla orgánica,

fragmentos acrisolados

e fundidos de morte.

 

Esa é a materia que sustenta

o pescozo do mundo,

os rañaceos

e a mesquindade das xeracións.

 

Trazas de soños e sal

Hoxe é o día.

 

Lendo o poemário pode nos ocorrer a dúvida: mas, afinal, a matriz de areia é o poema ou é o mundo? No entanto, lendo atentamente, veremos que há uma cuidadosa anulação dessa dicotomia. O poema pensa e sente no meio do mundo; propondo tanto a ausência de referência (ele não representa o mundo, mas apresenta mundos na dinámica de suas cotransformações), assim como a impossibilidade de separá-lo do meio do qual depende para existir. Em outras palavras, o poema não pode ser divorciado de sua experiência, como se fosse a testemunha triste de um corpo morto, ao contrário, ele é a expressão da participação do poeta nos fluxos de sentires das coisas:

Porque en boa medida

eu son o sangue, o pan, o verso

e o leite que me deron

 

Nesse sentido, é possível dizer que o poema, em relação ao mundo, não é uma independencia substancial, se não uma diferença interconectada:

Vés ver

como na carne

vive a poesía;

e na carne e o nervio

está prendida e muda

e agardando

O poema ao abandonar o privilégio do logos-antropos se reconecta com sujeitos, quer dizer, com centros de experiências, não humanas, aprende a linguagem comum; é uma espécie de anarquia ecológica onde o vínculo é a matriz, mas a matriz não é molde, não é predeterminada, é o refugallo das batallas orgánicas, dança cósmica dos acontecimentos, a uma só vez necessária e contigente.

Dois anos depois eu releio A matriz de area e retorno ao Bonaval. Pássaros, água, ventos,  musgos, movimentos dos ramos das árvores. Línguas que formam uma comunidade, uma cosmopolítica expressiva, como diria Despret com Stengers. O mundo é tanto quando também se é pássaro-água-ventos-musgos-movimentos dos ramos das árvores. Quando compartilhamos nossa inerência carnal numa matriz mais-do-que-humana de sensações e pensamentos. Quando não extinguimos do mundo, portanto de nós, em função de nossa ação antropo-capitalista, outras sensibilidades. Quando sentimos a interpenetração de nossa inteligência com a inteligência de outros seres. Quando nosso território, por metamórfico, ingovernável. Quando nossos passos se afastam de Omelas.

Quando um livro vive

no coração selvagem do bosque


(1) Referência ao conto Aqueles que se afastam de Omelas de Ursula Le Guin

 

Gaspar Domínguez
‘Matriz de area’
São Paulo/Pontevedra, Urutau
2019