Procurar textos
 
 

 

 

 







ANA LUÍSA JANEIRA

QUESTIONAMENTOS AO SABER-PODER
DO COLECCIONISMO MODERNO

...

Para a Miss Triplov
coleccionadora de escritas e de afectos
aproximando-se o 21 de Maio

.
 

A arqueologia-genealogia do coleccionismo contemporâneo permite identificar gestos com história: nas atitudes por parte dos coleccionadores e nos efeitos transmitidos às colecções. Trata-se, pois, de um fenómeno percorrido por emergências, condensações e mudanças, ao longo da Modernidade e Pós-Modernidade. Em cujo período inicial teve particular importância o intercâmbio que nasceu a partir do encontro entre o Velho Mundo e os Novos Mundos. Intercâmbio que começa com colheitas gananciosas, roubos desmesurados e pilhagens sem escrúpulos, entre impérios e colónias.

E que o associa ao mecenato, com maior incidência na viragem que vai ocorrer por via das tendências humanistas - renascentistas, como também por força do conhecimento à descoberta de si mesmo, por via do empirismo - racionalismo.

O mundo das colecções produzido pelas ciências comporta conjuntos de objectos, de muita e variada origem, reunidos com intuitos de recolha, de manutenção e de conservação. Algumas das atitudes estão marcadas por uma certa tradição longínqua movida pelo desejo de guardar, as quais comportavam dinâmicas várias e demonstravam capacidade para desbloquear sequências anteriores, com relevo para a dualidade paradigmática do ouvir - ler. O processo de superação progressiva do olhar - ver introduziu o observar - experimentar - comparar, nunca por demais relevados, e com eles bases para a inovação desenvolvida pelo mundo teórico - experimental . A mudança começou já aí. Mas outras mudanças só foram possíveis mais recentemente, através de museologias e museografias ligadas ao mundo conceptual do património científico e técnico.

Tenha-se ainda presente quanto a arqueologia-genealogia do coleccionismo encontra, de permeio, a arqueologia-genealogia do consumismo, porquanto ambas se aproximam internamente. A paixão do coleccionador concretiza também uma outra relação comummente referida em casos similares: a relação entre saber e poder. Na verdade, para se coleccionar são precisos dispositivos financeiros que permitam mecanismos de aquisição (colecta, compra, troca) e conservação, ambos requerendo conhecimentos que facultem as opções de escolha, os requisitos de manutenção e a disponibilidade de apropriação dos objectos.

A par de tudo isso, a vontade de mostrar. E do coleccionador se mostrar, também. A vontade de mostrar move-se desde os ciclos de intimidade - familiares, amigos - aos circuitos mais alargados - visitantes, público -, e comporta alvos que desdobram objectivos informativos e objectivos educativos. A ponto de ter sempre em mira um qualquer público, imaginário ou real, e uma qualquer literacia, imediata ou a longo prazo. Ou seja, a colecção é para ser (ad)mirada, do possuidor aos demais, e inscreve-se nas margens de um(a) aprendiz(agem): é esperado que a colecção potencialize um ensino, quando ultrapassa os universos ausentes e distantes, mundos passados e outros mundos desconhecidos. Pela presença. actualizada e, hoje, pela proximidade virtual.

A arqueologia-genealogia do coleccionismo contemporâneo permite identificar gestos com história: nas atitudes por parte dos coleccionadores e nos efeitos transmitidos às colecções. Trata-se, pois, de um fenómeno percorrido por emergências, condensações e mudanças, ao longo da Modernidade e Pós-Modernidade.

Em cujo período inicial teve particular importância o intercâmbio que nasceu a partir do encontro entre o Velho Mundo e os Novos Mundos. Intercâmbio que começa (e continua depois) com colheitas gananciosas, roubos desmesurados e pilhagens sem escrúpulos, entre impérios e colónias.

E que o associa ao mecenato, com maior incidência na viragem que vai ocorrer por via das tendências humanistas - renascentistas, como também por força do conhecimento à descoberta de si mesmo, por via do empirismo - racionalismo.

Ao comportar dinâmicas várias, como seja o processo de superação progressiva face a algumas dualidades paradigmáticas, a mudança introduziu o observar - experimentar - comparar e demonstrou capacidade para desbloquear sequências anteriores, nunca demais lembradas: ouvir - ler --» olhar - ver.

O mundo das colecções produzido pelas ciências comporta conjuntos de objectos, de muita e variada origem, reunidos com intuitos de recolha, de manutenção e de conservação.

Algumas das atitudes que as norteiam estão marcadas por uma certa tradição longínqua, movida pelo desejo de guardar, as quais comportavam dinâmicas várias e demonstravam capacidade para desbloquear sequências anteriores, com relevo para a dualidade paradigmática do ouvir - ler. O processo de superação progressiva do olhar - ver introduziu o observar - experimentar - comparar, nunca por demais relevados, e com eles bases para a inovação desenvolvida pelo mundo teórico - experimental . A mudança começou já aí. M as outras mudanças só foram possíveis mais recentemente, através de museologias e museografias ligadas ao mundo conceptual do património científico e técnico.

A paixão do coleccionador concretiza também uma outra relação comummente referida em casos similares: a relação entre saber e poder.

Na verdade, para se coleccionar são precisos dispositivos financeiros que permitam mecanismos de aquisição (colecta, compra, troca) e conservação, ambos requerendo conhecimentos que facultem as opções de escolha, os requisitos de manutenção e a disponibilidade de apropriação dos objectos.

A par de tudo isso, a vontade de mostrar. E do coleccionador se mostrar, também. A vontade de mostrar move-se desde os ciclos de intimidade - familiares, amigos - aos circuitos mais alargados - visitantes, público -, e comporta alvos que desdobram objectivos informativos e objectivos educativos. A ponto de ter sempre em mira um qualquer público, imaginário ou real, e uma qualquer literacia, imediata ou a longo prazo. Ou seja, a colecção é para ser (ad)mirada, do possuidor aos demais, e inscreve-se nas margens de um(a) aprendiz(agem): é esperado que a colecção potencialize um ensino, quando ultrapassa os ausentes e os distantes, mundos passados e outros mundos desconhecidos. Pela presença. E pela proximidade.

Tome-se, agora, o caso histórico de uma grande colecção, ou também, a paixão desmesurada e empreendedora de um grande coleccionador: o Imperador do Sacro Império, Rei da Boémia e da Hungria, Rudolfo II (1556-1612).

Originariamente estava concentrada em Praga, capital desde 1583. O destino marcou-a por uma grande dispersão, para todo o sempre.

Apesar de estar repartida por Praga, Viena ou Estocolmo o património existente permite vislumbrar como era grandioso o acervo primitivo, que chegou a ter 3.000 telas.

Na verdade, a situação inicial do conjunto teria poucos émulos, como continuam extensos e valiosos os subconjuntos remanescendo nas três capitais. A propagação tentacular e milenar da família Habsburg, o xadrez político minado por querelas sucessórias, conflitos religiosos e várias guerras à mistura estiveram na origem da dispersão. Quando gera um fenómeno deste tipo, também o património vive um desfasamento de destinos: o mal de uns é o bem de outros.

Perspectivada a partir do sujeito, a colecção foi constituída por um espírito artístico e uma personalidade com cariz universal. Esta tónica era alimentada por contrastes de vida: genealogia paterna e materna infiltrada em grande parte da realeza europeia; nascimento em Viena, mas sete anos na corte do tio materno, Filipe II de Espanha, etc.. Percurso que proporcionou outras tantas aberturas, como seja, a sua actuação em favor dos protestantes, apesar de uma educação católica cerrada.

Na época e ao longo dos tempos, foi representado como um homem depressivo, com ar carregado e entristecido. O que não o impediu de uma certa sociabilidade cultural marcante e muito frutífera: acolheu pintores (ex: Pieter Bruegel o Velho, Giuseppe Arcimboldo) que interceptava, dizem, nos ateliers do Palácio Imperial, conversando sobre as obras em curso; favoreceu cientistas (ex: Johannes Kepler, Tycho Brahe), e alquimistas (ex: os residentes da Golden Line), revelando-lhes a sua sedução pelos avanços do conhecimento.

A partir destas circunstâncias, criou uma conjectura favorável a quadros únicos ou aparelhos singulares concebidos in loco , a que se juntaram, obviamente, espécies com outras proveniências, encomendas compradas longe e adquiridas através de redes internacionais bem articuladas e sobejamente especializadas. Assim, muitos o serviram como conselheiros profissionais, tendo consigo vendedores de arte (Jakob König), antiquários e curadores reputados (Ottavio Strada). Muitos o serviram ainda neste comércio cultural, enquanto agentes bem colocados e actuando em pontos estratégicos: Espanha (Hans Khevenhüller, Itália (Rudolf Coraduz), Alemanha (Giuseppe Arcimboldo).

Perspectivados na interface entre sujeito - objecto, os objectos correspondiam a diferentes naturezas, sendo escolhidos no interior de uma configuração que possibilitava uma atitude e uma época anterior à especialização. Misturas feitas de grandeza, de luxo e de bom gosto.

Lado a lado, instrumentos astronómicos, a colecção zoológica com vários esqueletos, pedras preciosas, estatuetas, telas.

A Galeria Imperial e a Kuntskammer acolhiam um conjunto de esplendores: muitos, e entre os melhores, de Dürer, Tintoretto, Hieronymus Boch, Hubert Van Eyck, Veronese, Correggio, etc., etc.. No que respeita a pintura, supõe-se, aliás, que esta terá sido a primeira colecção a ser disposta na parede e em salas de exposição de tipo moderno. A diferença a assinalar demarcará, pois, dois momentos: telas com lugar próprio e permanente na parede, onde passam a ser olhadas, e telas em cima umas das outras, que só podem ser apreciadas se forem suportadas nas mãos.

Assim sendo, a abordagem pela paixão do coleccionador e pela consistência da colecção permitem delimitações teóricas visando uma sequência de lógicas epistemológicas, mediante descrições e reflexões orientadas para processos alargados de inovação - tradição - globalização.

.

Professora Associada com Agregação em Filosofia das Ciências do Departamento de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Co-fundadora, primeira coordenadora e, actualmente, investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL)

Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral

Calçada Bento da Rocha Cabral, 14 - 1250-047 Lisboa
janeira@fc.ul.pt e analuisajaneira@clix.pt