Gabinetes (Curiosidades, História Natural) Boticas (Conventos, Universidades) e Bibliotecas (Paços Reais, Academias) são espaços, os primeiros antigos, os segundos modernos, com proximidades-distâncias manifestas entre si.
Têm em comum servirem para abrigar a recolha, a reserva, a manutenção e a projecção de um património material e de um legado espiritual.
Têm de diferente, o tipo de utilidade operativa que lhes é atribuída.
Emergem, porque as configurações epistémicas de onde saem precisam deles, e os vão deixar actuar nos limites do permitido-proibido, onde os conhecimentos dominantes sempre intervêm, num ou noutro caso.
Ao longo dos tempos, sofreram mudanças e estas mudanças decorreram de algumas rupturas, até.
Também por isso, importa determinar as mudanças epistemológicas que ocorreram entre estes espaços e as suas gentes.
Que o gesto de guardar possa ter uma natureza primitiva, a cerâmica pré-histórica está aí para prová-lo.
Mas é por demais evidente que o gesto terá tomado contornos, formas e conteúdos bem diversificados, desde esse tempo até à Biblioteca e ao Museu, na Ilha de Faro.
Como também, desde Alexandria até às bibliotecas de Cister, Upsala, Escorial, Mafra. Ou ainda às raridades mantidas por papas, reis, príncipes.
O hábito de guardar alimentos e sementes requeria pequenas taças incipientes ou ânforas mediterrânicas pomposas.
Mas, a tendência para guardar códices, frascos, alambiques e balanças acabou por determinar a edificação de espaços, caves e sótãos com alguma volumetria.
Ao arrepio da destruição que as cruzadas e as guerras santas provocaram, a Idade Média soube criar mecanismos para enriquecer, por acúmulo. À época, houve até quem criasse uma imagem perene - anões aos ombros de gigantes.
Por isso, devemos a costumes medievais consagrados a conservação de testemunhos vindos mais de trás, devido às características da actividade intelectual desenvolvida pela elite, monástica e heráldica.
Na verdade, foram dez séculos de trevas sem trevas, onde operaram copistas meticulosos e gente curiosa, somando legados e anexando descobertas.
Apesar de ainda hoje estar longe de ser uma realidade acabada, a identidade inicial do território europeu esteve ligada à capacidade de desenvolver uma consciência orientada para a memória colectiva, através de objectos culturais e suas condições de preservação.
Sendo assim, havia um substrato milenar de recolha-manutenção (o que, acrescente-se, também aconteceu entre chineses e japoneses, etc.), mas a circunstância vai ter de se amplificar e de mudar muito, por causa do contacto com os Novos Mundos.
As distâncias oceânicas concorreram para aumentar o campo de possibilidade de coisas nunca vistas. Concorreram igualmente para trazer para cá realidades novas, uma multidão daquilo a que o ouvido não estava habituado, ou seja, o «ex-ótico».
Curiosidades eram chamadas.
Enchiam escaparates, estojos e caixas nas salas ou nos salons. Eram os Gabinetes de Curiosidades.
Foram criados e organizados por pretensões estético-culturais, com algum pó de snobismo. Muitos dos armários e estantes pareciam de boticas e de bibliotecas. Às vezes eram mais sofisticados, mas nem sempre isso acontecia.
Faziam pasmar até os espíritos mais superficiais.
Mas também vão acicatar outros, despertando quem olha e quer mexer, virar de frente para trás, cheirar, apalpar. Por isso, começam a ser necessárias bancadas, pinças e lupas mais potentes. Em suma, começam a construir-se lugares cientificamente mais operacionais.
Assim sendo, os Gabinetes de História Natural estão a nascer.
A partir de então, há que aumentar o tamanho e a consistência das reservas operativas para acumular, guardar, preservar. Reservas operativas, é a expressão correcta, porque elas têm de adquirir maior quantidade e qualidade, do manuseamento à utilidade.
Nesta altura, aparecem preocupações associadas ao método: a atitude de guardar passa a ser precedida por uma colecta cuidada e a ser seguida por uma colecção, melhor preparada e mais sistematizada.
Saber-colectar para saber-coleccionar.
As Academias, conscientes do dever que lhes cabe a tal respeito, normalizam a sequência dos momentos e processos.
Por certos aspectos da sua natureza, o Gabinete de História Natural encontra a botica, parente da bodega e do botequim, pelos «espíritos» em que banham as suas águas.
A botica é o espaço onde é praticada a ciência&arte do medicamento, produto para curar uma qualquer perturbação na saúde, desarmonia de humores, como queriam os hipocráticos.
Diferentemente dos casos anteriores, este lugar é também loja, para venda e para compra. Como os médicos, os boticários têm os seus clientes, os pacientes. Semelhantemente às oficinas de ferreiros e de ferradores, e aos laboratórios de alquimistas e de químicos: macerar de simples dentro de almofarizes, decantar licores benfazejos. Aqui todos sujam as mãos. Facto sobejamente discriminatório, porque alimenta desequilíbrios da elite versus povo e da universidade versus artes e ofícios.
Na verdade, o imperativo do saber-fazer, não só introduz um sistema de relações com efeitos no saber-poder, como acarreta fortes consequências sociais para os seus praticantes. Como acontece com os médicos contra os cirurgiões.
A manipulação precisa de receitas (a que as ciências chamam protocolos, na sua experimentação). A medida tem de ser cuidada, nem muito demasiado, nem demasiado pouco. O sistema racionalista impõe-lhe normas. Além disso, é preciso agir segundo códigos corporativos.
Saber-fazer para saber-curar.
Mantidas por práticas e saberes tradicionais, as mesclas, misturas, miscelâneas construíram, durante muito tempo, um tipo de conhecimento a que se vieram opor as análises e as sínteses modernas, progressivamente.
As narrativas museográficas alteram-se, na medida mesma em que se vão alterando as estruturas onde se inserem.
No primeiro conjunto, tendências fortemente vinculadas a um optimismo centrado nas capacidades e virtudes da euforia humanista, em torno do encantamento pela capacidade criativa, da projecção artística à curiosidade científica. Ambiência que se faz acompanhar por um clima financeiro muito favorável, ao servir um surto de mecenatos, onde a riqueza das Repúblicas Italianas assume um papel relevante.
No segundo conjunto, processos antropocêntricos fascinados pelo empirismo e pelo racionalismo, orientado pelas descobertas sobre as capacidades sensoriais ou dinamizado pelo poder contratual e homogeneizante dos princípios da razão, respectivamente. Ali, critérios de diferenciação que entram mais em conta com as características individuais. Aqui, critérios de universalização que reduzem as marcas específicas.
Gabinetes, Boticas e Bibliotecas o que têm em comum? Têm em comum serem divisões onde grande parte da superfície das suas paredes está escondida por detrás de armários, a presença frequente de varandins, subterfúgio para solucionar problemas de armazenamento, uma ambiência envolvida por um ar de reserva - responderá o olhar furtivo e muito superficial.
Embora o processo que vai reduzir a manipulação e tornar dominante a farmácia química esteja longe, embora o processo que constitui as bibliotecas especializadas só aconteça numa época posterior, o que há de comum entre Gabinetes, Boticas e Bibliotecas é serem espaços privilegiados para a prática do conhecimento e terem sofrido mudanças, segundo as configurações epistémicas que fizeram deles materialidades produzidas pelas culturas pré-modernas ou pelas ciências modernas.