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Ana Luísa Janeira

AS CIÊNCIAS MODERNAS PERANTE OS SENTIDOS (1)

«O questionamento visando o artificialismo de certas oposições e o abstraccionismo de certas dicotomias permite apreender que é preciso adensar o tema, em prol de uma maior aptidão para evitar simplismos racionalistas, postiços que passam ao lado das palavras e das coisas, sem atingirem o âmago do fenómeno e da fenomenologia hermenêutica.

No seguimento destas constatações, a reflexão é confrontada com a tarefa de não se deixar seduzir por quaisquer modos factícios de entender a realidade, incluindo a histórica, ao mesmo tempo que é obrigada a deixar-se levar para zonas mais sombrias ou de lusco-fusco, onde o claro e o escuro não existem separados e independentes, mas em zonas híbridas ou promíscuas, até.       

Uma coisa é a competência da razão para destrinçar meandros e para clarificar obscuridades, função para a qual se mostra particularmente dotada, outra coisa serão as perdas e os fingimentos que esta maneira de ser acarreta.

Por isso mesmo, é hora de complementar a tendência esquematizante de tipo racional, acrescentando-lhe uma maior capacidade de operar em rizoma, como diria Gilles Deleuze (1925-1995), ou em rede, segundo a terminologia informática.

Logo, é chegado o momento de reflectir sobre formas de raciocínio como as que permitem modelar percursos, de que o percurso assinalado ao princípio pode ser um exemplo. Sem dúvida que o modelo faculta o dinamismo de predomínios, sendo rigoroso se for assim entendido. Contudo, a grelha nunca deve ser confundida com a realidade.

Com efeito, há que reconhecer que as subtilezas da razão têm um lugar importante no espaço da inteligibilidade, mas importa definir como esse lugar não deixa, por isso, de apresentar limites, com lacunas e fissuras várias. 

Consequentemente, as dicotomias configuram um discurso montado sobre oposições e coerências. Todavia, não digerem a profundidade do sentido quando se fala de olhos-nos-olhos…

A este nível, o modelo apresenta as suas falências. Como as apresenta, quando estão em causa aspectos cognitivos associados a formas-de-pensar criadas sobre outras formas de utilizar a razão, incluindo regimes e registos, dentro da lógica do bricoleur a que se refere Claude Lévi-Strauss (1908-), logo à margem do pensamento científico moderno. Havendo, inclusive, um caso do saber popular onde isso é particularmente notório, o mau-olhado, pelo jeito como tem sido percepcionado, continua a ser interpretado e é combatido, dos acossamentos malévolos aos sortilégios procurados junto de bruxas, feiticeiras, virtuosos e suas mezinhas florais à mistura.

Além disso, o percurso acarretou consequências ambíguas na forma de avaliar a função dos sentidos, enquanto quota-parte da estrutura cognitiva e epistemológica, nomeadamente por atitudes extremas a resvalarem do entusiasmo à suspeição e à desconfiança.

Esta estrutura gnosiológica bipolar não existiu separada nem persistiu sozinha, associaram-se-lhe manifestações científicas idênticas, as quais tiveram efeitos na própria aparelhagem: seja pela consciência dos limites sensoriais, a necessitar de serem colmatados pela construção cada vez mais eficaz de aparelhos – telescópio, microscópio, termómetro, barómetro, balança, etc. –; seja porque, em abono da verdade, a tecnologia é desenvolvida para aumentar, mais e melhor, as capacidades sensitivas, as quais acabam por sair valorizadas pela presença do aparato instrumental, pelo menos indirectamente.

É óbvio que a Filosofia Moderna interveio fortemente, e desde sempre. De tal modo que por ela passaram os fundamentos teóricos mais extremos, naquilo que respeita a consignação do domínio dos sentidos ou do domínio da razão. Domínio, insiste-se bem, porque ninguém ousou negar a intervenção diminuta da parte defendida pelo opositor: nem John Locke (1622-1704) negou a razão, nem Gottfried William Leibniz (1646-1716) negou os sentidos.

Apesar disso, este é um bom exemplo de como se formaram genealogias imperativas persistentes, como a crítica às raízes sensoriais do conhecimento feita por René Descartes (1596-1650), dentro de um efeito originariamente francês mas com impacto em todo o mundo ocidental, o qual veio a culminar na denúncia do papel fundamental do “corte epistemológico” e da “ruptura epistemológica”, propostos por Gaston Bachelard (1884-1962) e sequazes.

Importa ainda realçar como a estrutura mental ocidental e a metodologia científica dependeram de “visões do mundo” quese mantiveram apostadas em matrizes onde sempre enunciaram o ver como o mais importante dos efeitos sensoriais, seja porque é o primeiro a ser localizado no corpo dentro de uma concepção vertical, seja porque lhe é atribuída uma importância primordial no contacto com a realidade. A weltanshaung, a funcionar de facto como umavisão de conjunto, foi moldada por este protótipo, pelo menos no pensamento ocidental. E tão ligada permaneceu a esta perspectiva, delimitada pela dependência estrita dos seus campos interpretativos, que não só a poesia como a linguagem afectiva se serviram de imagens alimentadas pelos “olhos da alma”…

Hoje, a Pós-modernidade – das Neurociências ao Descontrutivismo –, cria configurações onde a primazia do sentido da visão é questionada, porque novos adquiridos permitem perceber que a relação com o “mundo exterior” funciona com configurações mais amplas, e porque se torna evidente como a produção em termos da complexidade comanda o conhecimento, incluindo a interferência de intervenções culturais prementes. Assim sendo, a estrutura lógica de tipo escrita-visual-linear está a ser interrogada na sua tendência unidireccional – visão e verbo – através de meios digitais interactivos, inclusive. Assunto que tem tanto de actual como de polémico (1), pois trata-se de atingir suportes fortes, com um peso secular, propondo, em contrapartida, estruturas em favor de sinestesias, meios a construírem não só imagens e ambientes, como ainda “o conhecimento e espaços globais regrados por algoritmos numéricos na lógica digital binária”(2).

«Relativamente ao sentido da visão, comece-se por seleccionar um modelo de inteligibilidade que aponta para um percurso, onde o paradigma do ouvir-ler foi seguido pelo paradigma do olhar-ver e depois pelo paradigma do comparar-observar, dentro de um processo com cortes e descontinuidades

O ouvir-ler estava envolvido por um mundo de tipo medieval, onde subsistia no interior de um monopolismo teocêntrico poderoso, de uma soberania demasiado hierarquizada e de uma erudição dependendo de autoridades ou de comentários. Conhecimentos e comportamentos produzidos entre o púlpito eclesiástico e a cátedra universitária, onde o orador ou o professor (--” lente) liam e o crente ou o aluno permaneciam receptivos, meros ouvintes.

O olhar-ver correspondeu a uma situação a que foi dada importância na experiência médica, talvez uma das primeiras a valorizar o olhar, por via do chamado olhar clínico, com sintomatologias e semiologias à mistura. Ficou ainda muito a dever à descoberta dos Novos Mundo, quando os europeus experimentaram a perplexidade criada por outras dimensões naturais e culturais, a intimidar colonos e viajantes.

Porque as características da natureza inesperada e da escala diferente requisitavam vários desafios, foi notória a exigência de uma série de adaptações culturais, oculares no imediato e sempre difíceis de descrever. Conforme os anos passavam e a penetração aumentava, aumentavam os horizontes moldados por faunas e floras invulgares (3), com os trópicos a imporem, progressivamente, o tom deslumbrado de matérias-primas promissoras e de riquezas infindas para os impérios.

O comparar-observar nasceu com o espírito científico moderno, a manifestar uma panóplia de processos ligados à operatividade comandada pelas regras impositivas das hipóteses, às exigências primeiras fornecidas pelas normas disciplinantes do método e às pretensões mobilizadoras dos argumentos próprios do discurso racional.

Conjunto de factos e de ideias que foi bem tratado e simbolizado, quando as alegorias, as metáforas e as cores detectaram cambiantes e pormenores, desdobrado em diferentes conjuntos pictóricos, nomeadamente na Flandres.

A ponto das telas constituírem fontes inesgotáveis sobre a sociedade europeia que viu aparecer tais manifestações, pois contêm índices explicativos importantes e continuam a fornecer motes reveladores de uma argúcia estética surpreendente, por isso merecedores de uma reflexão trabalhada, apostada em compreender como funcionavam os motivos que serviam para exemplificar, na altura, as ocasiões onde a Arte pré-anunciava ou entrelaçava a Ciência.

Esta competência inovadora exprimia vertentes distintas e entrelaçadas, porquanto conseguia intervir quer nos requisitos formais seguidos por muitos, quer nos conteúdos escolhidos por alguns.

O primeiro caso está bem evidenciado pela forma como a perspectiva é aqui representada. Na verdade, os flamengos manifestavam tão intensa mestria na visão cuidada e minuciosa do espaço que conseguiam distinguir planos, proximidades e afastamentos, a partir de uma atenção perspicaz sobre a realidade exterior, natural ou construída. Resultados que os italianos só atingiram mediante raciocínios, cálculos e exercícios implicando formalismos matemáticos complicados, com especial destaque na forma como são concebidos os conjuntos arquitectónicos e suas aplicações enriquecidas por jogos habilidosos entre colunas, arcos e arcadas. 

A propósito e porque serve bem as hipóteses de trabalho em curso, convém realçar como estas duas emergências em territórios não contíguos mostram quanto o paradigma intelectual europeu começara a abrigar uma apetência para a representação espacial e atingira-a, quer por uma via marcadamente empírica, a Norte, quer por uma via substancialmente abstracta, a Sul.

O segundo caso consubstancia-se, principalmente, nos temas, com realce para a importância que alguns artistas importantes dão aos sentidos.

Fazendo parte da série Los Cinco Sentidos (4) de Jan Breughel (1568-1625) e de Peter Paul Rubens (1577-1640) – responsável pelas alegorias –, La Vista reúne ideias abstractas figuradas por uma série de núcleos, onde se destaca, no primeiro plano, uma jovem sentada, Vénus, em frente de um menino de pé: este Amor não segura um espelho, mas um quadro intitulado A cura do cego, do primeiro. Entre vários outros, quais quadros dentro de um quadro, pelos quais simboliza a relação privilegiada entre a visão e a pintura, a presença de alguns quererá evocar a relação com o retrato, mas também quererá apresentar a ligação da pintura flamenga com o género. A tela inclui ainda vários bustos, bem como manifestações de arquitectura, a evidenciar a intimidade entre e a visão e as artes maiores.

Muito embora predominem referentes artísticos, é inegável que globos, uma luneta, livros, um papagaio, flores numa jarra, peças de cerâmica, moedas e outras criaturas naturais apontam para a importância centrífuga deste sentido englobante. A quem cabe, ainda, uma função especial, quando se trata da beleza. Com todos estes atributos, não surpreenderá que lhe caiba, muito significativamente, acolher a assinatura do artista e a data de toda a série.   

El Oido move-se em torno da musicalidade, da palavra falada à escrita, da música erudita à popular, com instrumentos e partituras. A perspectiva imagética geral personifica os diferentes cambiantes da sonoridade, ao mostrar quanto o articulado das melodias deve representar uma harmonia estética com suavidades e sons fortes.

El Olfato consagra os odores naturais, com destaque para os florais, numa profusão que faz jus ao título de “Veludo” ou do Paraíso, atribuído àquele Breughel. Distribuídos com elegância em torno de uma Vénus e de um Cupido, muito delicadamente colocados à esquerda, os diferentes ramos de flores surgem de vasos ou saem em tufos do solo.

El Gusto está simbolizado um espaço dividido entre a metade de um compartimento e a metade de meio natural, sendo a união transversal entre elas feita por uma zona invasiva de cariz alimentar. Uma ninfa e um sátiro à volta de uma mesa. Estão no meio de uma sala cheia de manjares copiosos, o que permite dizer, em última análise, que a mensagem comporta uma forma de insinuar o exagero que dá por nome de gula.

El Tacto ressalta de uma atmosfera preferencialmente escura, à esquerda, um tanto sórdida, desarticulada e caótica, onde sobressaem armaduras e peças militares diversas, e onde, por contraste, à direita, numa área ordenada pela arte, Vénus e Cupido se entrelaçam, num expressivo gesto de união e de afecto. Por isso, o tema completa a sequência, através de um ar centradamente humanizante.

É por demais interessante verificar que o sentido da visão seja simbolizado por um Gabinete de Coleccionadores, ou até por um Gabinete de Curiosidades.

Interessante porque, na verdade, os objectivos prosseguidos nestes espaços de produção do conhecimento estavam associados à visão. Mais interessante ainda pelo facto da reflexão lhe dever acrescentar uma nota distintiva: a circunstância indicia que o ver é uma forma de inteligibilidade entre o olhar e o observar, o qual equivalia a uma dominância histórica que teve de ser munida, depois, por infra-estruturas que darão pelo nome de Gabinetes de História Natural.    

Que os naturalistas tivessem consciência disso parece óbvio. Mas como havia essa mesma consciência entre os pintores? A resposta aclara-se quando se examinam atentamente quadros da época (5), representando recantos de atelier com cavaletes de pintura, ou percorrendo a casa reconstruída de Rembrandt Harmenszoon van Rijn, em Amsterdam (6) e a moradia de Peter Paul Rubens, em Antwerpen (7).

Apesar dos quadros e da moradia reflectirem um certo ar de pose, mais parecendo que tudo foi montado, qual cenário para o espectáculo, o que só não acontece na magnífica museologia que presidiu à reconstrução da casa, estes exemplos são orientados para uma mensagem que pretende transmitir uma articulação alargada entre a vivência interior e nos interiores do artista, bem como entre a “mundi-vidência” que o percorre da Natura à Cultura. 

No meio da decoração, sobressaem enormes globos construídos com cuidados estéticos requintados e pormenores sofisticados, os quais configuram, por si mesmo, reflexos resultantes da mundialização provinda das descobertas, e do modo como a privacidade do artista convivia com essa realidade inovadora, resultante de estratégias políticas atendidas pela informação científica e técnica. 

Paralelamente, e numa perspectiva de teor mais funcional, intervêm outros tantos objectos que revelam quanto a configuração teórica que leva a Natureza para as telas supõe uma proximidade permanente, para além das sessões de trabalho em favor de um mergulho efectivo no mundo natural, e impõe que a Natureza se desloque para os ambientes de trabalho entre paredes, ao outorgar-lhe uma funcionalidade artística, com paralelismo na funcionalidade expositiva de carácter científico.   

Porque o paradigma vigente abrigava uma certa intimidade entre as Artes e os Saberes, o artista plástico recorria frequentemente a formas fabricadas artisticamente e a formas provindas do mundo natural (8) – das conchas marinhas aos animais em álcool, das ossadas aos minerais, incluindo várias pontes de veado – guardadas em situações igualmente nobres, no melhor, dentro de um verdadeiro Gabinete de Curiosidades, como sucede na Museum Het Rembrandthuis.

Neste caso, trata-se de uma sala com poucos móveis mas cheia de objectos: dispersos pelo chão, armazenados em prateleiras, dispostos em cima das mesas no meio de uns quantos livros, bustos e estátuas, pendurados nas paredes e até no tecto. São eles, entre os mais volumosos da naturalia – carapaças grandes de tartarugas, conchas imensas, pontas de veados etc. –, mais bustos e globos, etc., entre os “arte-factos”. 

Com efeitos, eram acariciados não só como moldes privilegiados para o adestramento manual, mas também para obrigarem a testes de excelência, no manejo de técnicas exercitadas no dia-a-dia, do lápis à pintura e à gravura. Lembre-se a lebre (9) e a asa de uma carraça morta (10) para só falar de Albrecht Dürer (1471-1528).   

Por isso, o recurso a esses materiais assumia um papel relevante em gestos básicos e comuns, espalhados pelas actividades habituais de um artista plástico: o desenho prosseguido como exercício arquetípico de quem executa o treino no meio de uma teia de riscos, por demais relevantes nos esboços a lápis e na destreza da gravura; o desenho seguido pela pintura, num somatório de pinceladas, de sombras e de cores.

Aprofundando, verifica-se que eles estão presentes, similarmente, em dois momentos da prática: no momento da produção, pelo lado do saber-fazer criador, pois são escolhidos para dados figurativos quando orquestra a estrutura da obra original; e no momento da reprodução, pelo lado do saber-ensinar multiplicativo, quando assume a função de mestre e usa-os para modelos de aprendizagem, convidando os colaboradores a tomarem-nos como casos singulares no treino da percepção e no adestramento da mão. 

Logo, os objectos naturais, disseminados por estes espaços de trabalho, recobrem funções que percorrem o teor criativo e o teor educativo.

No recurso a um raciocínio quase pelo absurdo, dir-se-á que a importância atribuída ao olhar inclui ainda as ilusões sabiamente concebidas por Cornelius Gijsbrechts, num desafio pertinente ao sentido comum da realidade, nomeadamente por uma série variada de trompe-l´oeil (11).

No lado das Ciências, impõe-se chamar a atenção para o facto do desenho ter atingido a sua maior relevância na formação e na aplicação no interior da História Natural.

Na verdade, a necessidade imperiosa da observação incidindo sobre animais, plantas e minerais determinava metodologias e uma disciplina mental fortemente servidas pela competência para o desenho, a ponto de terem existido muitos naturalistas que excediam no traço. Todavia como nem sempre isso acontecia, logo passavam a tarefa para auxiliares, actuando no campo ou no gabinete. Alguns deles estavam habilitados com uma preparação mais específica, o ofício de riscador.

Diga-se, pois, que quem estivesse vocacionado para executar riscos tão perfeitos e rigorosos reunia por si uma habilidade invejável, que poderia ser usada para o estabelecimento de diferenças e semelhanças, fundamentais para o método comparativo, nomeadamente na determinação cuidada dos especímenes.  

Antes, à margem e mesmo depois da fotografia, é indubitável que a ilustração científica ocupou um lugar ímpar no modo como os seres foram apresentados e representados, com especial relevância nos períodos em que importava divulgar na Europa os que eram oriundos de continentes distantes e difíceis,  ou impossíveis, de transporte.

Na verdade, os tempos imediatos à plêiade dos Descobrimentos implicaram um longo e atribulado discurso visando descrições dos Novos Mundos.

De início, seja por falta de habilidade de quem relatava, seja por dificuldades tipográficas, o discurso subsistia sem imagens, inexistentes ou raras. Mas, com o andar dos anos, verificava-se que os resultados dessa atitude não satisfaziam o mister de saber cada vez mais e cada vez melhor.

Assim sendo, convinha não ficar pelas simples palavras, tanto mais que elas se revelavam frágeis e careciam de adequação para descrever a subtileza de tantas. Factores que condicionavam os relatórios, os catálogos e os tratados. A imagem do Novo Mundo saía empobrecida e o Velho Mundo ficava prejudicado porque, mesmo quando o estilo primava pela narrativa exaustiva, pois, do lado de cá, era quase impossível vislumbrar todo o dimensionamento e a escala do nunca visto. mesmo quando o estilo primava pela narrativa exaustiva. 

É então que o desenho vem colmatar este vazio, ao oferecer uma forma de perceber na ausência e à distância, em suma, um modo-de-ver especial que não invalida o contacto directo com a realidade, mas que até pode “superá-la”, se o executante tiver maior poder de análise e de síntese, e obrigar o olhar do leitor a captar pormenores menos visíveis.

Os aspectos que vêm sendo referenciados convergem para mostrar uma técnica imprescindível no contexto do conhecimento dos Três Reinos, pois trata-se de um instrumento excelente ora para o treino da atenção durante o período da aprendizagem, porque que exige uma atenção redobrada e a capacidade de relevar pormenores significativos, ora para as tarefas inerentes à prática do naturalista, porquanto os meandros da Natureza pedem uma competência aumentada, em termos de acutilância para o visível, do orgânico ao funcional. 

Situação que não foi também descuidada dentro de outras áreas científicas, como é exemplificativo na escolaridade científica, ao longo do século XIX, quando o treino da observação implicava não só a importância acordada à Geometria Descritiva, como a existência do Desenho – cujos conteúdos iam do Desenho de Máquinas ao Desenho Botânico – em todos os cursos da Escola Politécnica de Lisboa (12).

Conjuntura que alerta para a não entender a observação como uma atitude simples, pois reveste uma complexidade de procedimentos que inclui uma sequência de gestos ligados à formulação de hipóteses, bem como uma disciplina cautelosa e uma metodologia consequente.

No conjunto, a aquisição de hábitos orientados para um comportamento visando uma postura profissional onde a racionalidade actua com força, sem deixar de cotejar, claro está, a intervenção de laivos intuitivos. 

O paradigma da comparação-observação foi evoluindo segundo requisitos progressivamente mais exigentes, na precisão e no rigor. A tal ponto que os adquiridos psicológicos tiveram de reconhecer que a actividade do observador fazia intervir uma capacidade perceptiva associada a modelos de inteligibilidade, cada vez mais exigentes.

Como não há sensações puras, mas percepções, a visão corresponde a uma realidade englobante, sempre interceptada pelos demais sentidos. De facto, enquanto vê, o acto perceptivo toca, cheira, ouve e sente gosto, à sua maneira. Embora aquele percurso apresente uma lógica histórica, que se procurou particularizar seguidamente, é de convir que ele não foi sempre, nem linear nem unívoco, pois houve dominâncias peculiares de cada paradigma a subsistem nos seguintes, como bem vem evocando a Pós-Modernidade». 

Notas

1) Reorganização de ideias e de textos com base em A visão e os outros sentidos até à pós-modernidade. In Ana Luísa Janeira; Paulo Assunção (orgs.) – “A construção visual entre as artes e as ciências. São Paulo”, Arkê Editora, 2006, 139-150.

(2) Cfr. Fábio Duarte – Arquitectura e Tecnologias de Informação. Da revolução industrial à revolução digital. São Paulo, Editora da UNICAMP, 1999, 173-175.

(3) Fábio Duarte – Arquitectura e Tecnologias de Informação. Da revolução industrial à revolução digital. São Paulo, Editora da UNICAMP, 1999, 175.

(4) No projecto, este aspecto será complementado pela coordenação de “Plantas de Cá, Plantas de Lá”, série de actividades educativas que irá ligar escolas do ensino fundamental de Montemor-o-Novo e da rede municipal do Rio de Janeiro, com o objectivo de alunos e professores desenvolverem pesquisas sobre a flora mediterrânica e a flora tropical e comunicarem entre si, via internet, os resultados. Tarefa a concretizar pela construção de um jardim em torno de cada escola, a ponto de alentejanos e cariocas compreenderem as rotas das plantas, servidas por intercâmbios num planeta cheio de encontros – desencontros entre o local e o global, porquanto o endémico num lado é sempre exótico no outro. Situações e equívocos que iremos estudar, quando pensamos conforme a Modernidade concebeu as tarefas em torno das plantas endémicas e das plantas exóticas, com especial relevo para as visões fantasmagóricas e científicas que despertaram, bem como os meios experimentais (laboratoriais e agrícolas) associados à transplantação ou à aclimatação. 

(5) Jan Breughel de Veludo ou do Paraíso (1568-1625); Peter Paul Rubens (1577-1640) - Los Cinco Sentidos. Madrid, Museo do Prado.

(6) Kunst Caemer [O gabinete de Arte]. Amsterdam, Museum Het Rembrandthuis; Kunstkamer [O gabinete de Arte]. Antwerpen, Rubenshuis.

(7) Museum Het Rembrandthuis, Jodenbreestraat 4, 1011 NK Amsterdam. 

(8) Rubenshuis, Wapper 9-11, 2000 Antwerpen

(9) Michael Sweerts (1618-1664) - A Painter’s Atelier. Amsterdam, Rijksmuseum.Willem Van Haecht - De Kunstkamer van Cornelis van der Geest, Rubenshuis, Antwerpen.

(10) Albrecht Dürer (1471-1528) - A young hare. Viena, Albertina.

(11) Albrecht Dürer (1471-1528) – The Wing of a Roller, Viena, Albertina.

(12) Exemplos: Cornelius Gijsbrechts (1630-1675) - Trompe-l’Oeil of an Open Cabinet of Curiosities with a Hércules Grou Kobenhaven, Statens Museum for Kunst, 1670; Cornelius Gijsbrechts (1630-1675) - Cut-Out Trompe-l’Oeil of an Easel with Fruit Piece. Kobenhaven, Statens Museum for Kunst, 1670. 

(13) Ana Luísa JANEIRA - Sistemas epistémicos e Ciências. Do Noviciado da Cotovia à Faculdade de Ciências de Lisboa. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, 77-110.

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- JANEIRA, Ana Luísa - O Reino de Deus, os Três Reinos da Natureza e o Reino de Portugal. In José Manuel ANES, Maria Estela GUEDES, Nuno Marques PEIRIÇO (orgs.) -"Discursos e Práticas Alquímicas II", Lisboa, Hugin Editores, 2002, 251-265; reproduzido também em
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- KROM, Maria Johana Christina; JANEIRA, Ana Luísa et al. - O natural e o cultural entre os saberes e os fazeres, 2004
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- JANEIRA, Ana Luísa - Inovação-Tradição-Globalização - Da lei entre o saber e o poder. In Ana Luísa JANEIRA (coord.cient.); Manuela FERREIRA (col. especial.); Margarida PINO (col. especial.) ''Da Química e Da Lei. Escola Politécnica de Lisboa e Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (1837-1997)'', Lisboa, Departamento de Química da Faculdade de Ciências de Lisboa, 2005, 2-35.

- JANEIRA, Ana Luísa - A configuração epistemológica do coleccionismo moderno (sécs. XV-XVIII). "Episteme", Porto Alegre, (20), Jan.-Jun. 2005, 25-36.

- JANEIRA, Ana Luísa (edit.conv.) - “O mundo nas colecções dos nossos encantos”. "Episteme", Porto Alegre, (21) Suplemento Especial, Jan.-Jun. 2005, 334 pp+ CD-ROM. Inclui estes textos de ou com a colaboração de Ana Luísa Janeira: A configuração epistémica de gabinetes, boticas e bibliotecas; Mapeando a natureza brasílica nas rotas dos mares; Poder, saber e cais de intercâmbio à volta de L’Intérieur d’un negociant bordelais au xviii.e siècle; Endémicas e exóticas nos jardins do Paço de Nossa Senhora da Ajuda e da Universidade de Coimbra; Andarilhos, comerciantes, espiões, naturalistas e outros cientistas em saques, expedições e exposições; A Amazónia&companhia importada para o público norte-americano; Entre ciências e etnociências; A memória na comunidade científica e museológica moderna; Viajar e sonhar pela colecção; Restos de colecção, promoções no tempo, saldos pela história.
- http://www. ilea.ufrgs.br/episteme/portal/index

ANA LUÍSA JANEIRA

Professora Associada com Agregação em Filosofia das Ciências do Departamento de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Rua Ernesto de Vasconcelos, 1700 Lisboa, tel. 351.217573141, fax 351.217500088.

Co-fundadora, primeira coordenadora e, actualmente, investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL).

Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral
Calçada Bento da Rocha Cabral, 14 - 1250-047 Lisboa

janeira@fc.ul.pt

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http://marcasdasciencias.fc.ul.pt/pagina/inicio