O território conjunto que pode ser genericamente apelidado de Missões (Nordeste da Argentina, Sul do Brasil e Paraguai) tem dentro de si uma singularidade, que merece ser reconhecida e valorizada, porquanto demonstra uma particularidade histórica que, sendo assumida, irá enriquecer o modo de viver, presente e futuro, dos povos que o ocupam. Isto porque permitirá fornecer-lhes meios intelectuais para que possam lucrar mais adequadamente do efeito inter-cultural inerente.
Na verdade, estas terras têm de ser projectadas, dentro de si e no mundo (Mercosul, turismo internacional, etc) a partir dos aspectos positivos e negativos das experiências de aculturação, ou seja, do modo como nelas se convive com a memória da entrada e assentamento de gentes várias, durante os séculos mais recentes.
Neste sentido, é importante que se lhes dê a conhecer os trâmites internos – da localização geográfica à rede hidrográfica, da flora à produção faunística, dos homens aos costumes – como ocorreram e como foram dificultadas as tentativas orientadas para fazer prevalecer a qualidade, maior ou menor, que contribui para o auto-reconhecimento com base na abertura ao acolhimento.
Paralelamente, é importante ainda ter presente que é preciso reflectir e divulgar os saldos referentes à forma como foi viabilizada essa capacidade de abrigo, nomeadamente em tempos fundamentais: a chegada dos jesuítas e a chegada dos emigrantes.
Infelizmente, verifica-se um vazio entre ambas. Tendo mais presentes as emigrações depois do século XIX e sem integrar os dois momentos, a atitude generalizada é própria de quem não tem consciência efectiva que importa conjugá-los, de molde a compreender como foi construída a actualidade.
Com efeito, a maioria das pessoas denota ligações, geralmente fortes, com o surto comemorado de um fluxo emigratório (1), onde revêm muito justamente um passado corajoso e uma temeridade bem sucedida, mas revê-se muito pouco ou quase nada nas reminiscências missioneiras.
Como consequência imediata podem tirar-se as ilações maiores seguintes: por um lado, esta realidade não é devidamente incorporada no quotidiano, pelo que não concorre para a definição de uma unidade cultural; por outro lado, os aborígenes não estão sendo devidamente integrados e continuam abandonados na procura interna de si mesmos.
Por isso, as ruínas jesuíticas surgem mais como espaços de visita, merecidamente acarinhadas quando se trata de as mostrar aos forasteiros, do que como núcleos revitalizantes para a tradição ancestral, a cultura moderna e a vida comum dos missioneiros do século XXI, no seu dia-a-dia de trabalhadores no interior do campo ou das cidades.
Nas antípodas da sobrestima, as referidas situações favorecem o desconhecimento dos meios onde as comunidades locais necessitam de afrontar os nivelamentos massificadores em tempos de globalização.
Assim sendo, a auto-representatividade projectiva do território estará sempre incompleta, quando não tiver em conta a importância de contribuir para a reconfiguração guarani-missioneira, considerada e ajuizada como uma das suas estruturas fundadoras.
Neste sentido, é importante que sejam estabelecidas dinâmicas e concretizações que possibilitem uma formação em favor da definição alargada desse fundo cultural comum. Em última análise e com as devidas características, é determinante conceber a vinda dos jesuítas como uma primeira emigração.
Com espólio semelhante - marcas de um passado possuindo incidências com tamanha envergadura - as políticas culturais missioneiras muito beneficiarão de possuir redes de investigação capazes de interligar épocas e circunstâncias, numa articulação fundamentada entre analogias e divergências, a ponto de contribuírem para fornecer conteúdos que outorguem um maior substrato de identidade às populações contemporâneas.
De qualquer modo, o conjunto de ideias anteriores sempre permanecerá incompleto e desajustado à estrutura histórica que lhe preside, enquanto não juntar aos conteúdos precedentes a permanência inegável do substrato indígena. Sem ele, e sem haver consciência de como tem uma função ímpar no respectivo “dispositivo” (2), nunca poderá ser conhecido devidamente o modo como funcionou a arqueologia-genealogia correspondente.
Concluindo, a realidade missioneira apresenta uma complexidade de termos e de relações que equivale adequadamente a uma configuração. Na verdade, importa ter presente como foi formatada a partir de tensões e de encontros entre Novo Mundo-Velho Mundo, Natura-Cultura, Tradição-Inovação, Local-Global, Saber-Fazer, entre outros pontos de confluência e de desajuste.
Por isso mesmo, tem uma volumetria conceptual que não se compadece com perspectivas disciplinares estanques e requer abordagens, onde várias áreas do conhecimento concorram para a construção do conjunto.
É assim que é forçoso realçar a importância de a fazer emergir através de conceitos alargados, onde o património material e imaterial intervêm no modelo teórico e na metodologia, e onde até a urbanidade e a paisagem se constituem como fonte e como arquivo, devido à sua característica de formas especiais de acúmulo, de manutenção e de preservação. Como consequência, a construção epistemológica desta realidade sairá enriquecida quando integrar o registo escrito e o registo edificado, o registo científico e o artístico, o registo financeiro e o registo político. Ou quando estabelecer intercepções entre influências ideológicas, esboços projectivos, cadernos de viagem, arquitecturas, regulamentos disciplinares, ruínas, peças de cerâmica. Tudo isto, com transferências de colectividades, rotinas, contos, lendas, rios, floras, produções agrícolas (nomeadamente madeiras, yerba, tabaco e chá) e espécimes geológicos, à mistura.
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