Na verdade, a cada um o encargo de sobrevivência daquilo que o rodeia, o qual, apesar de pertencer à realidade imediata, encontra o distante, em termos de meio natural, da conservação à preservação.
É que em situações como estas, o imediato e o longínquo, o próximo e o distante, o presente e o futuro alcançam uma articulação especial, porquanto operam com sucessivas contiguidades (7).
Será, pois, também por aqui, onde ocorre o cerne da identidade e da diferença entre sustentado e sustentável, termos que retiram a sua arqueologia conceptual mais directa na Eco 92. Aliás, nessa altura, o primeiro termo irrompia com um grande peso de inteligibilidade e de estratégia, a ponto da reunião no Rio de Janeiro ser considerada um marco original ímpar, na figura de um desejo ecológico sem precedentes. Mais de vinte anos depois, a situação inverteu-se e o segundo termo adquiriu uma força superior.
Situação que beneficiará de uma reflexão presidida por Aristóteles. Esta figura maior do pensamento grego distinguia com sagacidade: dunamis, energeia, e entelequia. Dunamis indica possibilidade, potência. Energeia aponta para actualidade do possível, a sua actualização. Entelequia é a coisa em si, coisa real que tem em si o princípio da sua acção e que tende por si mesma para o seu fim; estado de ser em acto, por oposição ao ser em potência.
Aplicando estas distinções conceptuais à prevalência actual do sustentável, induz-se que está a ser adoptada uma táctica inequívoca de adaptações ao que é considerado possível muitas vezes em desabono do desejável, ou seja, uma certa cedência ao conformismo em desfavor de tácticas inequívocas, pois é indiscutível que o sufixo “- ado” aponta para uma mobilização de meios mais extremos e induz a ideia de interferência no presente em prol do futuro, enquanto que “- ável” representa uma posição menos radical, pois alveja possibilitar no presente sem comprometer o futuro.
De facto, há, por conseguinte, um recuo das fronteiras do possível, sendo notório quanto a ideia de conquista saiu prejudicada pela ideia de resistência e quanto o anátema de “impossível” está a ser manejado pelas manhas e artimanhas do poder, nomeadamente ao nível das potências mundiais.
Assim sendo, o discurso dominante, autorizado, sufragado ou maioritário corresponde a um abrandamento, é porventura mais ambíguo e revela-se menos exigente, sendo por isso incapaz de consolidar esforços tendendo para reduzir a distância que os separa, em benefício do sustentado, na actualidade.
Embora faça parte de um conhecimento que só adquiriu sentido recentemente, o que equivale a dizer que permaneceu inimaginável em épocas anteriores, o exercício das liberdades por parte do cidadão actual encontra pela frente a responsabilidade pela dimensão ambiental.
No caso, a acção, bem como a falta de acção ou a omissão, equivalem a peças decisórias. Consequentemente e no que respeita o modo - de - estar - no - cosmos, importa perceber como as actuações exercem impacto, com repercussões prolongadas por muito tempo.
Razão maior porque o dever adquiriu uma maior amplitude consciente, difícil de ser pensada antes e gerou a necessidade de uma área disciplinar nova, de carácter francamente interdisciplinar, a Ética Ambiental.
Tratando-se de um campo inovador, mais precisará de ser servido por mecanismos indicados para favorecer um alargamento dos temas e dos problemas, a fim de habilitar uma educação de base e uma informação continuada, pelo que terá de ser sempre manejado por intervenções em prol das mensagens formativas.
Integrada numa tradição onde lhe cabem responsabilidades de ordem reflexiva e crítica, a Filosofia das Ciências tem de assumir problemáticas e atitudes ligadas ao contexto das relações entre Ciência e Sociedade.
Nesse sentido e entre outros corolários, cabe-lhe um cenário de inteligibilidade e de operatividade, onde a função legitimadora sai reduzida ou permanece afastada. Por outras palavras, cabe-lhe manter uma matriz condutora de posturas ajuizadas por um distanciamento de rigor, sem fins destinados a validar.
Distanciamento crítico que terá de insistir nas configurações envolventes, na qualidade conceptual de juízos dominantes e até na propriedade de expressões, como acontece com divulgação científica, comunicação científica, literacia científica e cultura científica.»(8)
É nesta incidência configurante que a questão da tradição adquire um novo dimensionamento relativamente ao habitar - das paisagens culturais à arquitectura local, passando pelos materiais da construção -.
«A expressão identidades transmitidas parece mais significativa, quando usada no plural, porquanto estas identidades são múltiplas e não estão presas a nenhuma hipostase de tipo subjectivista.
Sendo assim, o que recebemos por tradição não é uma instância singular, nem individual. Também não é homogénea e muito menos simples.
Este reconhecimento opõe-se a qualquer afirmativa sobre a sua mesmidade ao longo do tempo: as identidades terão sofrido alterações, apresentando componentes com maior ou menor constância.
Por isso, o modelo de abordagem não permite juízos atemporais e questiona tudo o que corresponda a um ”sempre assim foi” ou a um “sempre vi fazer assim” contundentes. Na verdade, as frases feitas revelam ignorância, camuflada por uma capa de imperativo categórico. Ignorância que não serve qualquer tipo de senso histórico: por um lado, nega a historicidade ao invocar uma imutabilidade; por outro lado, outorga ao presente um passado impossível.
Não sendo unitária, ela será também uma multiplicidade. Não sendo fixa, sofrerá mudanças. E isto, porque a tradição não está referida a nenhum sujeito, mas está sujeita à prática onde é exercida.
Daí que os contextos de existência e as transferências por devir sejam fundamentais para mostrarem, em última análise, de que conteúdos o discurso está a falar.
Quando estes adquiridos intervêm em temáticas culturais é impossível iludir quanto a teorização consequente acarreta perspectivas pouco comuns.
Sendo assim, não admira que esta forma de pensar, de índole marcadamente teórica, viesse a desembocar em formas de questionamento reflexivo sobre determinados casos, com relevância para uma situação concreta, que vem sendo enquadrada por um projecto de ensino-investigação luso-brasileiro, desde 2000. Foi assim que pareceu necessário ir mais longe e indagar de que se fala, quando se diz que o Telheiro da Encosta do Castelo, em Montemor-o-Novo, faz “o” tijolo tradicional.
Faz “um” tijolo tradicional, por certo. Mas segundo que tradição – a romana? a árabe? a do século XIX? a do princípio do século XX?
(…)
Importante será também contribuir para desmistificar a ideia de uma tradição só daqui e desde sempre aqui. Isto não significará defender qualquer pseudo universalismo, por reprodução cega sem qualidade e por transferência sem criatividade.
Isto apesar do intercâmbio, da cópia e do mimetismo demonstrarem uma complexidade especial, pois são difíceis de traçar as rotas de influências passadas, na ausência de elos, ou as rotas de influências presentes, dado o emaranhado globalizante.
Outra coisa ainda é o genuíno. A atracção pela origem tem actuado com força durante os tempos modernos. Liga-se-lhe a dominância do tempo, a “corrente de consciência” e outras coisas mais. Todas expressões de uma razão à procura da supremacia da racionalidade, logo de si mesma. Todas acompanhadas pela norma, a igualdade, o nivelamento, ao usarem como exercício um maior ou um menor controlo.
Contraditoriamente, o genuíno atrai por um não-sei-quê de fuga para trás, para aquilo sobre que se não tem mão. E que pertence a um limite de onde retiramos, por fantasia, uma autenticidade perdida. Autêntico vem de autor(ia)(idade), a filologia o mostra.
Só que houve épocas onde não era preciso a assinatura para autenticar. Nas artes e ofícios isso ainda vai perdurando, testemunhando outras condições de existência. Isto sem dizer que não existam positividades específicas nas artes e ofícios: neste particular, os critérios e as regras de constituição dos fazeres são gerados pelos saberes, práticas aquém das ciências. Enfim, que razões evocar para localizar a qualidade no pretérito?
O século XX trouxe um redimensionamento do conceito de tempo . E isso aconteceu devido à descoberta do tempo virtual ou devido a uma das suas consequências, o alargamento do tempo real. Aconteceu também, porque começou uma nova concepção do pretérito e do porvir.
De facto, foi a partir daí que duas ideias novas emergiram: se é certo que o surto patrimonial aponta para o passado, enquanto elemento fundamental do presente, também é certo que o surto ecológico aponta para o futuro, enquanto valor-medida a que devemos sujeitar o presente.
Sendo assim e porque a vida exige a dimensão prospectiva, ela corresponderá sempre a um critério imprescindível das dinâmicas que suportam e individualizam os fluxos de actualidade.
Por natureza, qualquer «pró-jecto» é um futuro antecipado. O que não invalida que não seja ainda um presente prolongado. Neste sentido, projectos inovadores equivalem a uma quase hipérbole, por causa das potencialidades de novo imanentes ao conceito de tempo-para-vir. Será que a insistência nesse tipo de adjectivação tem a ver com um prolongamento positivista, aliado à ideia ingénua de um progresso larvar?
Como só é válido no seu contexto e encontra grande resistência académica, o saber tradicional alimenta tendências de auto-fechamento e de auto-fixidez. Não sendo susceptível de generalizações, a produção materializa séries e seriações com pouca adesão ao devir e pouca abertura ao exterior. Aspectos que nem sempre são negativos, porquanto favorecem sedimentações ancestrais e acumulos, depurados pelo conhecimento testado e pela experiência apurada. Contrapartidas que favorecem uma existência prolongada para estes produtos.
Nem tudo que é antigo vale. Nem toda a memória merece ser salvaguardada. Nem tudo que está a desaparecer poderá ser preservado.
Para evitar o descrédito e o pessimismo decorrente, parece importante deliberar antecipada e acertadamente sobre a viabilidade financeira de iniciativas relacionadas com a memória. Este pressuposto tem muito peso, se queremos evitar escolhas votadas ao fracasso e negócios mal parados.
Muito possivelmente devemos procurar, no momento e na forma como o Estado-Providência emergiu em Portugal, as razões estruturais que rodeiam a conjuntura presente. Por outras palavras, muito possivelmente a nossa história poderá explicar esta sequência de nexos: tendência para esperar demasiado do Estado + desapontamentos por apostas individuais mal sucedidas = medos larvares perante riscos a assumir = desresponsabilização do que cabe a cada um fazer para gerar o bem de todos .»(9)
«Focagem que obriga a aliar igualmente o conceito de inovação e o conceito de tradição.
Na verdade, local e global, tradição e inovação, devem ser comparências mobilizadoras permanentes de uma "cultura científica cidadã", como dizem expressivamente os brasileiros.
Isto quer dizer que uma cultura científica interveniente precisa de perspectivar as capacidades de actuação em pequena e grande escala, para assegurar uma mediação entre o espaço imediato e o espaço ampliado pelos sucessos das telecomunicações, em favor da “ciber - espacialidade”.
Como exprime a urgência de articular factores perdurantes entre um passado - presente e um presente - futuro, num contexto de sobrevivência de identidades próximas e de alargamento a mundividências distantes.
Em primeiro lugar, estas linhas orientadoras significam exigências para o modo - de - estar - na - cidade, por via das ciências.
Em segundo lugar, significam que a cidadania por via das ciências tem uma substância compósita, ao integrar elementos de informação e elementos de formação, ou seja, aquilo que se sabe e aquilo que se é.
Daí ser de esperar que a própria comunidade científica assuma o dever de problematizar para o exterior os avanços científicos com repercussão social mais imediata, mais problemática ou mais polémica.
É por isso imperativo que a educação para a cidadania, enquanto aprendizagem contínua e continuada, comporte a dimensão ambiental, a ponto de articular uma informação e uma formação, de molde a assumir uma aliança planetária.
E ao fazê-lo, parta da consciência do meio como um valor. Contando para isso, não só com as lições da história sem qualquer passadismo, como com a consciência do futuro em favor de uma herança perspectivada à margem do puro imediatismo.
Daí a necessidade de fazer agir um pensamento e uma prática, capazes de questionar a produtividade, a concorrência, a rentabilidade e até a competitividade, quando elas prejudicam os espaços verdes, da cercania contígua à repercussão cósmica.
A necessidade de recorrer, neste momento da reflexão, a ideias relacionadas com a importância do problematizar, pretende mostrar a importância de canais apropriados para propagar modos de fazer ciência com responsabilidade. Bem como mostrar que os posicionamentos reveladores de uma responsabilidade consciente sempre envolvem as ciências, hoje em dia.
Dito de outro modo, não é mais admissível uma garantia deste tipo sem atitudes conscientes perante o lado positivo e o lado negativo dos contributos científicos e tecnológicos.
Concluindo, e dada a importância primordial da produção científica na sociedade contemporânea, não é mais possível ser cidadão - do - mundo, à margem da cultura científica com incidência social e ambiental.»(10)
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