ISABEL MORUJÃO
Isabel Morujão é professora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigadora do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço & Memória” (CITCEM). Doutorou-se em 2005 com a tese Por trás da Grade: poesia conventual feminina em Portugal (secs. XVI-XVIII), editada em 2013 pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, tendo constado da short list do prémio Pen Club português. A sua área preferencial de investigação é a escrita feminina dos sécs XVI-XVIII, nas suas várias tipologias e manifestações.
O último livro de ensaios de Ana Hatherly saiu póstumo, embora a autora tenha acompanhado ainda grande parte da sua organização. É a Ana Marques Gastão – que com ela privou intensamente na fase final da sua vida– que devemos esta edição magnífica, acompanhada de um breve prefácio seu (pp. 13-16), significativamente intitulado “A palavra, essa Nova Atlântida”, que procura agulhar desde logo a atenção do leitor para a forma como Ana Hatherly concebia a palavra (codificável ou descodificada) como fonte inesgotável de desdobramentos múltiplos e recriações luminosas de mundos. Aí se esclarece o conteúdo e desígnios desta edição: congregar dez ensaios de Ana Hatherly, sete dos quais inéditos….Na nota de edição que precede este prefácio (pp. 9-10), explicitam-se os critérios que presidiram à fixação dos textos barrocos que alguns ensaios transcrevem.
A tradição barroca e maneirista da literatura portuguesa em que Ana Hatherly tantas vezes mergulhou, para dela colher elementos formais, temáticos, simbólicos e de variada ordem com os quais reinventaria a poesia portuguesa nos anos 60 e se reinventaria também a si mesma, não poderia deixar de dar lugar a uma profusa produção ensaística sobre essa categoria. Por isso, este seu livro completa uma trilogia iniciada em 1997, continuada em 2003 e terminada postumamente, nesta edição que a autora já não chegou a ver pronta. Este livro último estabelece um paralelismo com os seus dois antecessores, através do subtítulo. Assim, depois de Aspectos do Imaginário Barroco, seguiram-se os Aspectos da Sensibilidade Barroca e, finalmente, estes Aspectos do Pensamento Utópico Barroco, que explicitam a utopia nos temas da esperança, do desejo, da viagem, do mito, do misticismo, da imaginação e, ainda, nos recursos à metáfora, à simbologia, à alegoria, à metamorfose. Ana Hatherly escrutina os textos utópicos barrocos quer na sua dimensão profana, quer na ampla vertente religiosa, inevitavelmente resultante da sociedade portuguesa contrarreformista e pós tridentina.
Na explanação de todas essas vertentes, Ana Hatherly procurou subtrair o Barroco ao sentido restrito de utopia social em que muitos encerraram a utopia de Thomas More, explicitando as relações inusitadas entre o real e a sua representação, que permitem a fecundidade de mundos novos, não existentes, ocultos.
O lançamento da obra – que tive o gosto de apresentar – ocorreu a 7 de janeiro de 2018, na Fundação Calouste Gulbenkian, durante a programação prevista no âmbito da exposição “Ana Hatherly e o Barroco: num jardim feito de tinta”, como forma de nos levar a todos ao âmago das preocupações de Ana Hatherly, que sempre procurou os fios explícitos e implícitos que conduzem o leitor e o criador ao caminho da inspiração e da leitura interartística. A exposição retomou, no seu título, parte do admirável verso de Ana Hatherly, que abre um dos seus poemas em que a poesia é, também, metapoesia.
No seu jardim feito de tinta
Com insólita serenidade
O poeta percorre as áleas da memória
E caminhando por entre os signos
Contempla a distração nula do tempo
O paradoxo incrível do ser
A ferida íntima da alma.
Este último livro segue em tudo a intenção e objetivos de Ana Hatherly na edição dos dois volumes anteriores, que acima referimos. De facto, em Poesia Incurável – aspectos da sensibilidade barroca (nunca é de mais reforçar a imensa força e sedução dos títulos de Ana Hatherly), a autora escreveu, no prefácio, que essa obra vinha na sequência de O Ladrão Cristalino – Aspectos do imaginário barroco. Reconhecia então, em 2003, que o seu intuito era dar a conhecer obras hoje pouco divulgadas, a que a raridade, singularidade ou valor documental conferiam inequívoca importância. Por isso, no final dos seus comentários e reflexões, sucedia-se a edição ou reedição dos textos que suportavam as considerações tecidas a propósito da sensibilidade ou do imaginário barrocos. Sobretudo porque, ao tomar contacto com esses textos, Hatherly experimentara perplexidade e espanto pelo esquecimento em que caíram em Portugal essas produções de autores barrocos, como confessou no seu livro A Casa das Musas: “Foi realmente um trabalho de arqueologia, pois os textos que eu procurava estavam soterrados nas bibliotecas nacionais e sobretudo soterrados no esquecimento” (p. 10). Nesse sentido, o esforço de Ana Hatherly em terminar cada ensaio seu com um conjunto de poemas exemplificativos dos procedimentos de que falava constituiu um avanço significativo na difusão e reedição de alguns dos mais incontornáveis textos barrocos. A Ana Hatherly se deve o empenho meritório de divulgação desses textos, que conhecemos hoje em edições recentes feitas a partir das suas versões manuscritas, como a autora fez com A Preciosa, de Soror Maria do Céu, e como levou outros investigadores a fazer, sob o seu impulso e estímulo.
Este último livro de Ana Hatherly é constituído por dez ensaios, sete deles inéditos, com a sua procedência identificada na página imediatamente anterior à bibliografia geral da autora, embora de quatro deles não se esclareça o enquadramento da sua criação. A sequência dos ensaios no livro não obedece à cronologia da sua produção, mas a uma ordem interna do próprio livro, que parte dos textos mais explicitamente esclarecedores do pensamento utópico barroco e termina com uma reflexão sobre o lugar do Barroco no século XXI, seguida da interpretação da presença destes códigos na poesia experimental, que encerra a publicação. Ao refletir, nestes dois últimos textos, sobre tempo, temporalidade e tradição, Ana Hatherly reflete também sobre as formas de representação do tempo, em que o espelho assume relevância particular, ao apresentar-se como plano recetador de vários tempos e objetos, projetando-os e desdobrando-os em imagens da história do homem e do mundo. Hatherly debruça-se sobre o seu significado simbólico ao longo da História, dando-lhe também a sua própria interpretação: “uso metaforicamente a imagem do espelho para ilustrar a importância que o ressurgimento do Barroco teve no experimentalismo português dos anos 60-70” (p. 159).
A força utópica do Barroco que Ana Hatherly procurou cartografar nestes ensaios foi também a que a inquietou poeticamente a si própria e que germinou particularmente num poema seu, inserido na antologia O Pavão Negro:
O que é que leva o meu barco
para esta praia
onde um poder esquivo
se contenta
com a ambígua oferta de palavras?
Estamos aqui
no exíguo barco do desejo
exibidos
na frágil singularidade do verbo
Insatisfeitos sempre
aguardamos
que se abram
as impensáveis portas da ilusão.
Este último verso é replasmação do título ensaístico “as misteriosas portas da ilusão”, com que colaborou, em 1991, no livro Josefa de Óbidos e o Tempo Barroco, revelando o caráter de constante permeabilização das várias tipologias e cronologias em que desdobrou o seu labor: da poesia experimental aos textos barrocos, destes à reflexão sobre o ato poético, do ensaísmo sobre arte à produção da mesma, numa convergência que mutuamente as fecunda e lhes determina um percurso paralelo. Aliás, mesmo neste livro editado postumamente, Ana Hatherly cita-se a si mesma, convocando textos seus de várias tipologias e proveniências…
Cada ensaio deste livro constitui uma tentativa progressiva de Ana Hatherly de se adentrar na explicitação dos sentidos dos textos barrocos, lidos e divulgados também ao leitor a partir do paradigma utópico que se expressa logo desde o título. No terceiro ensaio, Ana Hatherly entra em diálogo estreito com a produção de outros críticos e ensaístas da literatura, como Maria Lucília Pires, por exemplo, cujas pistas interpretativas propostas na antologia Poetas do Período Barroco, a propósito de um soneto de António Barbosa Bacelar, Hatherly explícita e intencionalmente segue, para confirmar a relação intertextual que Lucília Pires sugeria existir entre o soneto “Amoroso desdém de um belo agrado”, de Bacelar, e o soneto “Um mover d’olhos, brando e piadoso”, de Camões. Nesse sentido, este texto de Ana Hatherly é quase um exercício escolar de análise, mas o seu objetivo é demonstrar que reescrever não é decalcar e que o Barroco é uma reescrita criativa e transfiguradora da tradição que o antecedeu.
Para Hatherly, os códigos artísticos entram em diálogo com a moldura cultural e social que aceita o seu modo de representação, isto é, a forma como a imaginação neles constrói a expressão. A fricção entre o real e o representado é, no entanto, uma permanência transversal a todos os tempos, de que resulta um homem, leitor e espectador sempre inquieto, em busca dos sentidos da arte, dos textos, da vida. O Barroco foi, para Ana Hatherly, uma época que exigiu “que se visse para além do visível, para além do real, descobrindo a invisível essência na fugaz aparência de todas as coisas” (p. 69). O artista barroco, ao constituir uma vitalidade num tempo de representação simbólica, aponta a polissemia do real e propõe o labirinto como imagem de um mundo em que é necessária orientação, guia e esclarecimento. Tesauro, o pregador e tratadista italiano, famoso sobretudo pelo seu tratado Il cannocchiale Aristotelico (1670), é, neste quarto ensaio, chamado à colação, para explicar que “o verdadeiro poeta é aquele que se mostra capaz de estabelecer conexões entre as coisas, ainda que sejam as mais díspares” (p. 70), através do seu engenho, isto é, da sua capacidade de encontrar semelhança entre coisas dissemelhantes. Nessa visão de artista, o poeta “descobre e revela” as “profundezas da aparência”, tal como propôs Claude-Gilbert Dubois, autor que Ana Hatherly também recupera, para explicar “a simultânea unidade e multiplicidade” (p. 70) de que decorre “a necessidade obsessiva de interpretar, de dar a ver no invisível, de dar a ler no ilegível, mostrando o que se furta à visão imediata da superfície do real, porque não há vazio: tudo tem algo dentro, tudo é por fora e por dentro” (p. 70).
Na esteira destas reflexões, Ana Hatherly deteve-se na forma como a arte pós tridentina, colocada ao serviço da Igreja, construiu símbolos, metáforas e alegorias no âmbito da moralização da realidade, para a qual a natureza contribuía com as suas flores, frutos, plantas e pedras preciosas (p. 72), que equivaliam a significados ocultos, que alguns autores, como Isidoro Barreira, por exemplo, transferiam para tabelas de equivalências que funcionavam como autênticos dicionários e auxiliares na descodificação dos sentidos.
No quinto texto desta coletânea, citando Roger Dadoun, a autora constata, que “a vocação da utopia não é a de ir em direção ao real”, mas, pelo contrário, “a de se alçar contra o real, de se afirmar como o seu mais ardente rival” (p. 83). A sua perceção e delineação do conceito de utopia barroca levara-a já, no ensaio inicial deste livro, a afirmar que “o objetivo do pensamento utópico barroco (…) não será o de cair na ilusão, mas o de realizar algo dentro da própria ilusão” (p. 21). No entanto, para a autora, o valor operatório de um determinado passado cultural é o de suscitar reflexão (no seu duplo sentido de pensamento e de reflexo projetivo), gerando “tradições de vanguarda” (p.161). Sublinhando o valor do tempo na evolução artística, no ensaio “A reinvenção do espelho: reflexos da época barroca na Poesia Experimental” (que encerra a presente coletânea) Hatherly regressa a Adorno (um autor que estruturou, de forma marcante, a totalidade da sua obra ensaística), justamente pelos aspetos que permitem realçar a validade da metáfora do espelho como ferramenta para nos situarmos no justo enquadramento e perspetiva de nós mesmos, face a cada época (passado, presente ou futuro): “Uso metaforicamente a imagem do espelho para ilustrar a importância que o ressurgimento do Barroco teve no Experimentalismo português dos anos 60-70 do século XX” (p. 159). “Uma tradição de vanguarda torna-se então no equivalente a um espelho afetado pelas leis da mudança e da substituição, uma metáfora da variabilidade” (p. 161)
A partir desta forma de representar o tempo na evolução artística, Ana Hatherly convoca outros conceitos de similar utilidade, como o de plagiotropismo, de grande vitalidade no Brasil a partir de Haroldo de Campos e, sobretudo, desde a publicação, em 1993, da obra de Maria dos Prazeres Gomes, Outrora Agora, que o define como a apropriação atual de textos literários remotos, transformando-os numa derivação nem sempre linear, exigindo uma descodificação consciente dessa simbiose e “(re)invenção crítica da tradição” (p. 164), que Ana Hatherly vê como tradução ou paródia.
Se o título desta coletânea de ensaios é Esperança e desejo: aspectos do pensamento utópico barroco”, não é possível deixar de notar que, nos dois textos finais deste livro, se nota uma certa desilusão de Ana Hatherly, ao pensar a arte contemporânea numa época tecnológica de consumo e de mundos virtuais, que parece ter esbatido, se não perdido, a essência do real, do espaço e do tempo. Assim, no ensaio sugestivamente intitulado “Diante de uma desconhecida e fria azul piscina”, Ana Hatherly acentua a ideia de uma quase paradoxal “utopia do passado” (p. 149) e afirma, através das palavras de J. M. Rodrigues da Silva: “a utopia, essa invenção do futuro que funcionava como um projeto de mudança, foi substituída pela indiferença, se não pelo vazio. (…) A confiança no futuro perdeu-se” (p. 151). No mesmo ensaio, convoca um texto seu, a “tisana 351”, sublinhando essa “incerteza face ao possível futuro”:
Tisana 351. A consolação da escrita. Penso em Boécio escrevendo no limiar do desaparecimento, mas acreditando na virtualidade dum real futuro. No meu século especulamos sobre a virtualidade do real de nenhum futuro. Destruction is fun, dizia um menino ontem na TV falando dos seus videogames. (p. 151)
Ao longo da ensaística de Ana Hatherly, tem o leitor a possibilidade de penetrar na sua biblioteca mental, nas referências amplas e diversas com que dialogou e recriou, inovou, pensou, replicou. Theodor Adorno, Fernando Pinto do Amaral, Gaston Bachelard, Ernst Bloch, Omar Calabrese, Jacinto do Prado Coelho, Deleuze, Jean Delumeau, Orosco Diáz, Claude Gilbert Dubois, Gilbert Duran, Francisco Leitão Ferreira, Angus Fletcher, Focillon, Gombrich, Guatari, Linda Hutcheon, Lyotard, Ares Montes, Walter Moser, Santo Agostinho, Vítor Serrão, Vítor Aguiar e Silva, Luís de Moura Sobral e muitos outros nomes são também convites a outras tantas leituras. Na prática literária e artística, António Barbosa Bacelar, Tomás Pinto Brandão, Jorge da Câmara, Camões, Soror Maria do Céu, Violante do Céu, Paul Éluard, Soror Madalena da Glória, Gregório de Matos, Josefa de Óbidos, Luís Nunes Tinoco são apenas algumas das referências mais evidentes, entre a enorme profusão autoral com que entretece os seus ensaios. Por isso, teria valido a pena, nesta edição, um índice onomástico que convocasse e tornasse fácil e rápida ao leitor a localização de qualquer destes autores.
A edição destes ensaios de Ana Hatherly foi particularmente cuidada. Ana Marques Gastão, que a orientou e supervisionou, teve a preocupação de não apresentar estes textos de forma impessoal, desligados da natureza de artista da sua autora, falecida em 2015. Se a história da leitura e da cultura se interrogou várias vezes sobre o modo pelo qual um leitor dá sentido a um texto de que se apropria, há, neste caso, que perguntar também de que modo o editor de uma obra pode contribuir para a descodificação e maior inteligibilidade dos textos que publica. No caso de Esperança e Desejo – aspectos do pensamento utópico barroco, existiu claramente uma proposta de leitura comparatista e interartística dos textos, que muito beneficia o conjunto destes dez ensaios, criando dinamismos entre o texto e o leitor, como sugeria Iser. Se já não podemos ouvir a voz de Ana Hatherly, podemos acompanhar-lhe o traço e criar relações de interrogação entre as dez imagens que precedem os outros tantos capítulos deste volume de ensaios. E louvo infinitamente a escolha de desenhos da série “Metamorfoses da Romã”, de Ana Hatherly, para, através das várias etapas e transformações deste fruto, significar a maior ou menor legibilidade das formas, até à impossibilidade de discernir qualquer forma ou motivo. As romãs acompanham as considerações sobre mundos outros, desejados ou invisíveis, que se ocultam sob formas que desconfortavelmente nos exigem descodificação, sentido, questionamento: porque “tudo é por fora e por dentro”. As romãs de Ana Hatherly são simultaneamente perspetivadas do exterior e do seu interior, exibindo um corte de plano coronal, onde a essência e a estrutura do fruto se expõem, em bagos cujos traços os aproximam de corredores labirínticos ou de grafismos de escrita.
Não poderíamos esperar destes ensaios de Ana Hatherly publicados postumamente senão a sua natureza de chamamento, descodificação, convocação de vozes, relação, numa linguagem que Hatherly partilha com a da sua poesia. Constituindo este volume os derradeiros textos publicados da sua autora, a organizadora desta edição incorporou pertinentemente, no seu final, uma bibliografia total de Ana Hatherly, que é simultaneamente uma biobibliografia. Mas se a vida e a obra se cumpriram, a leitura coloca cada texto seu na transcendência do tempo, superando o efémero.
Ana Hatherly – Esperança e desejo – aspectos do pensamento utópico barroco.
Edição e Prefácio de Ana Marques Gastão.
Carcavelos, Theya Edições, 2016, 175 pp.