Amir Or: tradição e modernidade na poesia de Israel

 

ADELTO GONÇALVES


Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela USP e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp)/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


I

Uma poesia que traz à tona ideias cabalistas tradicionais que desestabilizam lógicas tradicionais e contemporâneas e, portanto, constitui uma poesia do movimento que retorna e se renova na perspectiva do laço sem fim nem começo. É assim que o tradutor Moacir Amâncio define, no prefácio, o labor poético do poeta israelense Amir Or que chega pela primeira vez ao Brasil com o livro A paisagem correta (Belo Horizonte, Relicário, 2020), traduzido diretamente do hebraico.

É uma poesia que alinha várias tendências, o que a torna difícil de ser explicitada, mas que sobretudo é marcada pela sensação de incompletude, de coisas que não se completam e não chegam ao final. Tradutor do grego clássico e conhecedor de religiões, inclusive aquelas de cunho budista, Or coloca-se numa posição superior diante do mundo, à imitação do Deus criador do Gênesis, mas não pense o leitor que estará diante de um poeta indecifrável porque em sua poesia pode-se encontrar temas tratados sob uma ótica muito pessoal que, de certo modo, como observa o tradutor, ecoa a literatura da beat generation, em meio a elementos orientais, cristãos e judaicos.

Aliás, Or é autor de uma obra intitulada On the Road (2018), espécie de homenagem ao livro de 1957 com o mesmo título traduzido como Pé na Estrada, no Brasil, e Pela Estrada Fora, em Portugal, do norte-americano Jack Kerouac (1922-1969), um dos líderes do movimento literário da geração beat, que no Brasil teve como principal representante o poeta Cláudio Willer (1940).

II

A filiação à literatura beat fez de Or um divisor de águas na poesia praticada em Israel porque, até pouco antes do aparecimento de sua geração, os poetas e os escritores israelenses de um modo geral estavam ainda vinculados ao sionismo tradicional que procurava fazer com que a construção da nação fosse pautada por ideais coletivistas, com oportunidades para todos aqueles que deixavam seus países de origem, imigrando para a parte que idealmente lhes caberia naquela faixa do Oriente Médio.

Segundo o seu tradutor, “Or já se formou num ambiente menos submetido ao peso da sociedade ideológica”. O que não significa, porém, que tenha deixado de lado o tom majestoso e mesmo religioso que caracteriza a poesia épica porque a tradição ainda marca lugar em sua produção. Só que, em vez contar façanhas de um herói que pudesse simbolizar as grandezas de sua pátria, o que o poeta faz é realçar as vivências de anti-heróis, a partir da contemplação do novo mundo que nasce naquela faixa que, de certa maneira, marca o surgimento do mundo judeu e, depois, do cristão, na raiz também da cultura muçulmana.

III

Um exemplo dessa perspectiva pessoal que Or passa ao leitor é o poema “Não longe” que pode ser classificado mais como prosa poética: “Não longe da agitação da rua, da hábil colmeia e do barulho do pensamento, além das torres do enxame, além da margem pavimentada, o jorro dos rios de asfalto, / estirada aos olhos do dia e se bronzeando, a nudez animal da cidade das gentes; / escancarada como uma fossa, miqvê de lágrimas e pecados, Tel Aviv de fora / mas dentro, delicia-se consigo mesma no jogo de fluxo e refluxo no baldio da areia e do mar, no rito de mergulho e adoração ao sol, / um burburinho sem sentido faz com que esqueçamos toda vítima / humana, todo esforço, todo heroísmo e toda oração respondida em ato (…). Como observa o tradutor, miqvê é aqui uma referência ao mar de Tel Aviv, comparado com um reservatório de água, em que é feito o banho ritual judaico de purificação.

Pela amostra acima, o leitor já pode ter uma ideia do que vai encontrar neste livro: alguns poemas de Or constituem epigramas, que às vezes são reflexões ou digressões, embora, em outras ocasiões, sejam textos breves. Seja como for, o importante é que, como diz o escritor e professor universitário João Anzanello Carrascoza, que assina o texto de apresentação do livro, a beleza da poesia de Or “está acima das explicações”. E que pode ser resumida na frase inicial do poema “Lembrança. O fora é rasgado de dentro dele” em que ele diz: “(…) o poema é memória, como sol/ que fica no olho  após a olhadela no sol; assim / é o poema, verso após verso (…).

IV