NOMEAÇÃO E INDIVIDUALIDADE
1. O que é um nome? Tal como José Saramago, já deus e Adão tinham tido a mesma necessidade de fazer corresponder cada coisa a sua respectivo nome, reorganizando o caos. De facto, e voltando ao dito deus e ao dito Adão, não há conclusão da criação divina sem uma componente de nomeação do todo ou das partes. No Génesis a situação é totalmente esclarecedora a respeito do peso que a nomeação tem no todo da criação: ela é o seu motor. Deus disse [
] é a chave que por sete vezes é usada na narrativa de Gen 1[1]. Tão simples e tão avassalador quanto isto disse e aconteceu. É, de facto, pela palavra que Yahweh cria o seu cosmos na narrativa bíblica. Tal como é também pela palavra que é ordenado o mundo dos seres em que o Homem se integra. Ora, em Gen 2, nomeadamente 19-20, a palavra / a nomeação é a consignação da efectiva existência das coisas. Só depois de devidamente nomeados é que os seres são objecto de conhecimento vejamos que é pela atribuição do nome que Adão e deus percebem que nenhum desses seres pode vir a ser a companheira do primeiro e solitário homem. Vejamos a fonte, Gen 2, 19-20: Então, o Senhor Deus, após ter formado da terra todos os animais dos campos e todas as aves dos céus, conduziu-os até junto do homem, a fim de verificar como ele os chamaria, para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que o homem lhes desse. O homem designou com nomes todos os animais domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo, não encontrou uma auxiliar semelhante a ele. [2] De facto, os seres já tinham sido criados, mas havia uma clara incapacidade de os tornar objecto de conhecimento, de os perceptar. Neste sentido, quem cria? Sem a nomeação de Adão
nada feito! Mas já muito antes deste deus, ainda não maiusculado, alguns deuses egípcios tinham integrada na sua teologia esta formidável construção intelectual: a criação não está completa sem que se dê a sua última parte, a nomeação do que fora criado. Na cosmogonia de Amon, no Papiro de Berlim, o peso da palavra nomeativa na economia da criação é claro: Tu és o deus que veio à existência pela primeira vez, Isto é, a ainda não nomeação das coisas é marcador, pelo menos para o(s) sacerdote(s) que terá escrito este poema, de uma fase recuada e inicial da criação, que, por si só é suficiente para mostrar a anterioridade do deus louvado. Também a grande glorificação a Marduk, o Enuma elish, dá um peso bastante grande ao acto de criação pela palavra:
Muitos outros mitos antigos poderiam ilustrar este raciocínio, recuando até aos textos sumérios. Assim, surge uma inevitável questão: será que existe a dita criação? Ou devemos falar de identificação e, acima de tudo, de individualização? Criar é transportar para a uma dimensão de percepção, ser capaz de formular pensamento sobre um determinado material,, como se viu no caso de deus e de Adão. Dar um nome, usar um nome, é ter uma atitude de cognição que vai da identificação à individualização. Tudo o que existe num patamar de possível cognição tem, inevitável e naturalmente, nome. É o que podemos designar pelo postulado d «a necessidade de ter nome». Noutro sentido, a criação pela palavra tem na verbalização primeira apenas a sua exteriorização que corresponde a um circuito linear entre pensamento e desejo e, por último, a efectivação na palavra criadora. A teologia do deus Ptah é clara neste sentido: Surgiu efectivamente toda a palavra de deus através do que foi pensado pelo coração e ordenado pela língua.[5] Pelo Papiro de Leiden outra variante da mesma forma encontramos, desta vez dando maior peso à relação entre o pensamento e a nomeação: Pensamento criador é o seu coração, Desta forma, a realidade será, então, o que fora criado e, mais interessante, aquilo que fora desejado, pretendido. Desde Platão e Aristóteles que a questão da nomeação surge no pensamento filosófico centrada, para estes autores, no problema da verdade. Herdeiros desta linha, habituá-mo-nos a identificar verdade com realidade. No limite do nosso pensamento cartesiano, a ciência é a busca da verdade através do estudo da realidade. Esta relação entre «realidade» e «verdade» é inevitável. Podemos dizer que o nomear está no campo da própria identificação do ser, ou melhor, da criação do ser, da visão do ser enquanto (uma) realidade. Assim, um signo é como que, nas palavras de O. Goldwasser, um object of thought[7]; ou ainda, este objecto de pensamento, de compreensão, de consciência e de conhecimento, é, na expressão de Derrida, uma graphic rhetoric[8]. A «verdade» aqui toma uma dimensão discursiva. É verdadeiro o que é dito num quadro de criação, de propiciação, de uma determinada realidade discursiva, não o que é verdadeiro. 1.2. A metaforicidade da construção antiga dos nomes A criação de formas de nomeação, nomes ou expressões atribuíveis a coisas, é condição sem a qual não há possibilidade de diálogo e de compreensão entre interlocutores num mesmo sistema de linguagem. Mais, o nome é, ou procura ser, imagem e síntese daquilo que nomeia, donde, necessidade para a própria compreensão da natureza do nomeado, primeira síntese do sistema de comunicação subjacente à adopção de um determinado nome e não de outro qualquer. Por fim, a nomeação afirma-se para o nomeante como a forma de aceder àquele que é nomeado: exclamar um nome é referir a própria coisa, é um acontecimento relacional com ela, é quase uma «tuificação» porque é relação. Aqui, a questão da nomeação já ultrapassou os simples limites do que é dito ou é escrito. Nomear é representar, e a representação é, por natureza, um acto figurativo porque metafórico. Toda a nomeação é imagem. Efectivamente. Dois patamares de formulação da nomeação podemos encontrar: I a formulação de novas formas de nomeação da realidade implica a recorrência a coisas / realidades já nomeadas, mediante um processo de metaforização - o uso de imagens já constituídas no universo vocabular disponível enquanto continentes de valoração; II partindo do ponto anterior, do uso, para a nomeação, de signos pré-existentes, a nomeação é baseada em imagens que são, também elas, metáforas. As formas que um nome toma são fruto de recolha dentro de um universo, passível de valoração metafórica, naturalmente propiciatório para o nomeado. Em todos os casos temos um mesmo objectivo: criar, através da significação contida na forma de nomear, formas propiciatórias para o nomeado. Aprofundando, constituindo-se o nome numa possível hermenêutica do que de mais profundo tinha o seu possuidor, a profunda ligação entre forma de nomeação e nomeado quase residia numa simbiótica existência, a exploração, a decifração e o conhecimento do nome era uma forma de entrar no próprio ser, e até de o dominar. Temos várias formas de efectivar esse domínio: o domínio pelo conhecimento do nome, o domínio pela alteração do nome e, por último, o domínio pela memória através da destruição do nome, do retirar do nome de todos os locais onde ele figurava. A escolha de um determinado nome para uma determinada realidade pressupunha um quadro de opções que em muito devia à funcionalidade pretendida para o nome ou, melhor, para o que, a partir do momento primeiro de consignação da nomeação, passava a ser o conjunto inseparável de nome / nomeado. Talvez se possa dizer que o nome é sempre funcional; o designar, pelo nome, implica sempre atribuir características e qualidades ao nomeado. Um nome é sempre uma metáfora, uma representação, uma imagem. Neste mundo pós-moderno os nomes oscilam com as modas, com as telenovelas, com os artistas de rádio, TV e disco, com as sensibilidades mais variadas e despreocupadas. Ora, estes factos agora aleatoriamente apontados não indicam que a nomeação tenha caído em dimensões sem espessura histórica; antes pelo contrário, transportar o nome Cátia Vanessa é indicar de forma ultra-precisa a data e o meio social em que se nasceu. Vamos nessa ó Vanessa, como o anúncio diz, é altamente datável. CIBER-NOMES
[1] Gen 1, 3. 6. 9. 11. 14. 20. 24. [2] Para citações bíblicas usamos: Nova Bíblia dos Capuchinhos: Versão dos textos originais. Lisboa. Fátima: Difusora Bíblica, 1998. [3] Papiro de Berlim. Apud. José Nunes Carreira - Estudos de Cultura Pré-Clássica. Lisboa: Editorial Presença. 1985, p. 30. [4] Retirado de Jean Bottéro, Samuel Noah Kramer - Lorsque les Dieux Faisaient lHomme: Mythologie Mésopotamienne. Paris: Gallimard, 1989, pp. 604 605. [5] Tradução de H. Junker - Op. cit, p. 59. Apud. José Nunes Carreira. Op. cit., p. 19. [6] Apud, José Nunes Carreira. Op. cit., p. 32. [7] Idem, p. 26. [8] Apud, Idem, p. 53. |