ENTRE A MÍSTICA DOS NÚMEROS E O RIGOR DO CÁLCULO
Isabel Serra
Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da U.L.
Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da U.L.
PARADOXOS CULTURAIS
Para Pitágoras (~580-497 AC) “O número é a causa e o princípio de tudo” (1). Esta afirmação sugere a existência de um princípio unificador do Universo, ideia que desempenhou um papel importante na filosofia grega. A mesma frase simboliza também as contradições e ambiguidades do pensamento pitagórico: misticismo, magia e mistério mas, por outro lado, exactidão e rigor. Pode ainda servir para caracterizar a cultura Ocidental na sua relação com o número, ou melhor dizendo, na sua obsessiva quantificação das qualidades. De facto, na ciência moderna, desde o Renascimento até a actualidade, é possível encontrar manifestações do espírito Pitagórico, das mais conscientes às mais ingénuas (2).
A afirmação de Filolau (nascido em 450 AC), matemático da Escola Pitagórica, “todas as coisas têm um número e nada se pode compreender sem o número” (3) significa, para Bento Caraça, o “aparecimento da ideia luminosa duma ordenação matemática do Cosmos” (4), ideia que é um dos fundamentos essenciais da ciência moderna.
Nem todos intérpretes do pensamento pitagórico, no entanto, valorizam da mesma forma que Bento Caraça a ideologia da Escola. Esta representa, para alguns autores, o melhor exemplo de “paradoxo cultural”: “o primeiro modelo de uma sociedade secreta, e portanto fechada sobre as suas particularidades a franco-maçonaria irá aí buscar muitos dos seus símbolos essenciais e ao mesmo tempo o primeiro modelo de uma sociedade aberta sobre o universal” (...) “o pitagorismo situa-se na encruzilhada destes jogos de oposições que se chamarão mais tarde “esoterismo” e “exoterismo”, “sagrado” e “profano”, “laico” e “religioso” e que definem as “sociedades abertas” e as “sociedades fechadas” (5).
A Escola Pitagórica funcionava na realidade como uma seita. Os Pitagóricos, para além de outros símbolos e rituais místicos, usavam o pentágono estrelado, como sinal de aliança entre eles. Os conhecimentos matemáticos e as principais descobertas da Escola eram transmitidos oralmente aos seus membros que, sob juramento, se comprometiam a não os divulgar. É curioso que, apesar de a sua doutrina ser ensinada apenas oralmente durante as primeiras décadas, a Escola sobreviveu várias centenas de anos. Prolongaram-se por oito séculos (V AC a III DC), o desenvolvimento de especulações matemáticas, astronómicas e harmónicas, mas também de natureza física ou médica, e ainda morais e religiosas que se associam ao Pitagorismo.
Por volta do ano 500 AC, como resultado de perseguições políticas, os pitagóricos tiveram que fugir de Crótona (Itália), onde a seita estava instalada e tinha atingido considerável prestígio cultural e político. Os seus discípulos espalharam-se então por várias regiões da Grécia. Só nessa época, contemporânea de Sócrates, aparecem os primeiros escritos pitagóricos, um dos quais é a obra de Filolau Sobre a Natureza.
Mesmo que não adoptemos a tese da Bento Caraça, a de que é possível encontrar na doutrina pitagórica o fundamento da ciência ocidental, podemos reconhecer nessa doutrina algumas raízes do pensamento científico Renascentista. As concepções de Kepler, relativamente ao Universo eram essencialmente pitagóricas e platónicas: a estrutura do mundo correspondia a um modelo apoiado na beleza e na harmonia que podia exprimir-se através de fórmulas geométricas e numéricas. Para Kepler a finalidade da ciência era descobrir as regras matemáticas usadas por Deus na criação do Universo e, como escreve em Mysterium Cosmographicum, “A quantidade foi criada no princípio, em conjunto com a matéria”. Também Galileu em Il Saggiatore afirma que “O Universo está escrito em linguagem matemática”.
Ainda na actualidade é possível encontrar sintomas de pitagorismo nas posições de reputados cientistas. René Thom, ao escolher como título de um artigo O método experimental: um mito dos epistemólogos (e dos sábios?) (6) assume desde logo uma posição que podemos associar ao Pitagorismo. Aliás os autores do debate sobre filosofia das ciências de que faz parte o referido artigo reagem de imediato às afirmações de René Thom (7). Esses outros autores são experimentadores, físicos ou biólogos, o que talvez explique as suas posições marcadamente anti-pitagoristas.
Talvez seja um abuso de linguagem chamar pitagorismo à tendência para valorizar excessivamente os aspectos matemáticos do saber científico pois, evidentemente, a pretensão de querer traduzir o mundo por números não tinha, para Pitágoras, o mesmo sentido que se dá hoje à matematização do conhecimento. No entanto o termo pitagorismo serve perfeitamente para caracterizar o exagero das posições de alguns cientistas na actualidade. É tentador associá-las a Pitágoras, tanto mais que estamos aqui também em presença de um paradoxo cultural. Ele traduz-se, em certas áreas científicas, pela coexistência entre a forte presença da matemática e a tendência para um obscurantismo crescente.
Um dos campos onde se têm abrigado diversos tipos de obscurantismo é o da Mecânica Quântica. A dificuldade em compreender o significado de certos resultados científicos com expressão matemática muito elaborada tem obrigado cientistas e filósofos a uma aturada reflexão. Dessa reflexão resultam ideias que, para além de serem expostas de forma incompreensível por certos autores, sofrem de obscurantismo ou, diríamos mesmo ousadamente, traduzem um certo misticismo. Talvez a vontade de compreender ou de explicar resultados, os leve, tal como aos Pitagóricos, a transcender o significado dos objectos científicos. Essa tendência parece não ser incompatível com um trabalho qualificado numa área científica , tal como acontecia aliás com os Pitagóricos.
Também os seguidores de Pitágoras não se limitaram a especular acerca da natureza e significado dos números e a estabelecer as suas propriedades místicas; eles produziram resultados matemáticos importantes perfeitamente integrados no conjunto da ciência grega. Pitágoras e os seus discípulos são mesmo considerados os iniciadores duma área matemática, a Aritmética, hoje designada por Teoria de Números (9).
Numa tradição que remonta a Pitágoras, os matemáticos especialistas em “teoria de números”, praticam-no actualmente com toda a legitimidade nas universidades e nos centros de investigação. Essa teoria encontrou inúmeras aplicações a partir da II Guerra, com o desenvolvimento dos computadores. Mas mesmo antes, quando não havia quaisquer aplicações à vista, matemáticos famosos de todos os séculos “brincaram aos números”, tal como faziam os pitagóricos, estabelecendo propriedades dos números inteiros, embora sem lhes atribuir qualquer significado místico.
É também, de certa forma, um paradoxo cultural, o gosto de alguns matemáticos pela teoria de números. De facto, durante um longo período histórico, desde o Renascimento até aos nossos dias, a grande motivação para a matemática foi o estudo de fenómenos físicos e naturais, ou como às vezes se diz, o estudo do “real”. Mas alguns dos matemáticos que trabalharam em problemas “reais” não deixaram, por isso, de estudar os números e de se encantar com as suas propriedades. Fermat é um desses matemáticos, frequentemente citado nestes últimos anos, precisamente por causa de um célebre teorema em “teoria de números”.
Leibniz, que também produziu trabalhos fundamentais no estudo matemático de fenómenos físicos, afirmou: “não há homens mais inteligentes do que aqueles que são capazes de inventar jogos. É aí que o seu espírito se manifesta mais livremente. Seria desejável que existisse um curso inteiro de jogos tratados matematicamente”(10).
CIÊNCIA E MÍSTICA PITAGÓRICA
A origem da mística dos números pode ser encontrada nas suas propriedades matemáticas. É, nesse sentido, uma “mística científica”, usando uma expressão também ela paradoxal. Tal como os outros matemáticos gregos, os Pitagóricos não se interessavam por fazer cálculos com finalidades de ordem prática. Essa tarefa, considerada “menor” no conjunto da actividade matemática, era deixada para os calculadores profissionais ou “logísticos”, como eram chamados. Destes, apenas conhecemos a existência e também o desprezo que por eles testemunha Platão, na República, já que trabalhavam sobre fracções explícitas, ao passo que o matemático, segundo Platão, deve apenas tratar das propriedades dos números inteiros “que não são acessíveis senão à inteligência e não podem ser manejados de outro modo” (11).
Os Pitagóricos ocupavam-se antes a descobrir as propriedades dos números, sem se preocupar com as suas aplicações, tal como faz hoje um investigador em teoria dos números. Eles desenvolveram, em particular, o princípio dos números figurados, onde os inteiros estão dispostos em forma de triângulos ou de outros polígonos .Usando essa representação deduziram algumas propriedades interessantes (12) .
Pitágoras concebeu os números triangulares constituídos pelos números naturais (inteiros positivos) dispostos em triângulo: .
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Cada número triangular corresponde à soma dos primeiros números naturais: 1=1; 3=1+2; 6=1+2+3; 10=1+2+3+4; 15=1+2+3+4+5; etc.
1 3 6 10 15 21
É fácil verificar que 1=1x2/2 (primeiro número triangular); 3=2x3/2 (segundo número triangular); 6=3x4/2 (terceiro nº. triangular).
Para encontrar o 7º número triangular basta calcular 7x8/2=28, e o n ésimo número triangular é calculado pela fórmula n(n+1)/2.
Os outros membros da Escola Pitagórica construíram os números poligonais (números quadrados e números pentagonais) e usaram essas representações para deduzir propriedades dos números inteiros. Por exemplo, a seguinte propriedade dos números ímpares: a soma dos primeiros n ímpares é um quadrado perfeito pode ser deduzida a partir da representação geométrica em números quadrados. A dedução desta e doutras propriedades pode ser vista em diversos livros de história da matemática.
O estudo das propriedades dos números a partir de representações geométricas foi uma constante na matemática grega. Também para operar com os números ou para resolver equações os gregos recorriam à geometria. Ao conjunto de métodos de resolução por eles desenvolvidos dá-se o nome de álgebra geométrica.
Só durante o período final da matemática grega, chamado período Alexandrino, os matemáticos começam a elaborar métodos de cálculo independentes das construções geométricas. Herão (50 AC 50 DC) resolve problemas de raízes quadradas e cúbicas sem nenhuma referência à geometria. Nicómaco, um neo-pitagórico, (50 110 DC) trabalha sobre teoria de números, afastando-se da representação geométrica e finalmente com Diofanto (séc. III) a álgebra grega atinge o seu maior desenvolvimento. No conjunto das matemáticas gregas a obra de Diofanto constitui algo de novo, tanto do ponto de vista do conteúdo como dos métodos, em ruptura total com os métodos geométricos tradicionais. Ele resolve problemas que podemos considerar algébricos e introduz as primeiras abreviaturas simbólicas. No entanto, é importante sublinhar que Diofanto não estabelece métodos gerais de resolução nem faz qualquer tentativa para elaborar uma teoria das equações. Essa será a grande tarefa dos matemáticos árabes nos séculos seguintes (sécs. VIII-XII).
Antes de referir outros exemplos de problemas estudados, tanto pelos pitagóricos como pelos actuais investigadores em teoria de números, é importante acentuar que, para os primeiros, o estudo numerológico era inseparável das especulações geométricas, harmónicas, físicas e cosmológicas. Estas, por sua vez serviam e alimentavam preocupações morais, políticas e religiosas. Os números, “para Pitágoras representavam não só a forma que governa a combinação das coisas, mas também a matéria mesma destas coisas. (13)” . Para Teão, um neo-Pitagórico do séc. IV DC, “no número dois considera-se a matéria e tudo o que é sensível, a geração e o movimento” (...) “o número seis é perfeito” (...) “é nupcial porque torna os filhos semelhantes aos pais” (14).
Actualmente, o interesse pelo aspecto matemático dos números parece, a muitos de nós, incompatível com estas fantasias. Como diz Jean-François Mattei, “esse duplo sistema, místico e racional, perturba o nosso hábito moderno de pensar”(15) . Poder-se-ia acrescentar que à “duplicidade místico-racional” do conhecimento matemático antigo se pode contrapor uma outra duplicidade, a do conhecimento “puro” e “aplicado”, esta nos tempos de hoje. A teoria dos números é, na matemática, precisamente um dos expoentes dessa contradição sempre presente na investigação científica dos nossos dias. A propósito desta questão, não deixa de ser interessante de citar as declarações de G. H. Hardy, um grande matemático inglês deste século - “Nenhuma das minhas descobertas fez, ou é provável que faça, directa ou indirectamente, para o bem ou para o mal, a mais pequena diferença para o bem estar do mundo” (16).
A SEDUÇÃO DOS NÚMEROS INTEIROS
Os gregos só sabiam tratar com rigor os números inteiros positivos e os que se podem definir à sua custa, ou seja, os fraccionários (ou racionais) representados pela razão de dois inteiros. (teoria das proporções). Mas só as propriedades dos números inteiros, algumas delas descobertas pelos pitagóricos, constituem ainda hoje um vasto campo de investigação. Por outro lado, as suas características são tão curiosas que continuam a fomentar um certo misticismo em meios exteriores à matemática. Isso deve-se também a não ser necessário ter grandes conhecimentos para compreender algumas das propriedades dos números inteiros.
Jamblico, um dos matemáticos pitagóricos influenciado pelo neo-platonismo, atribui a Pitágoras a descoberta dos números amigáveis (ver destacado). Números amigáveis são aqueles em que cada um é igual à soma dos divisores próprios do outro. (divisores próprios de um número são todos os divisores inteiros positivos, excepto ele mesmo. Por exemplo, os divisores de 6 são 1,2 e 3).
Pitágoras: 220=1+2+4+71+142
284=1+2+4+5+10+11+20+22+44+55+110
Pierre de Fermat em 1636 descobre 17296 e 18416
René Descartes em 1638 descobre mais um par
Euler (1747) descobre trinta pares de números amigáveis e, mais tarde, sessenta pares
Nicolo Paganini em 1866 descobre os amigáveis 1184 e 1210
actualmente são conhecidos mais de seiscentos pares de números amigáveis
O par de números amigáveis conhecido dos pitagóricos, 220 e 284, possuía uma aura mística que se manteve numa crença supersticiosa: a daqueles que acreditam que a existência de dois talismãs onde figurem estes números sela uma amizade perfeita entre os seus possuidores.
Outro problema, atribuído aos pitagóricos por alguns autores, é o dos números perfeitos, números que são iguais à soma dos seus divisores próprios. Embora estudados desde a Antiguidade, até 1952 só se conheciam doze números perfeitos, todos eles pares.
Os três primeiros números perfeitos: 6=3+2+1 - 28=l4+7+4+2+1 - 496=248+124+62+31+16+8+4+2+1
Se 2n-1 é um número primo, então 2n-1(2n-1) é um número perfeito (Livro IX dos Elementos de Euclides)
Euler demonstrou que todos os números perfeitos pares são desta forma.
A existência de números perfeitos ímpares é um dos problemas por resolver da teoria de números. Sabe-se apenas que não existem perfeitos ímpares com menos de trinta e seis dígitos
Nem todos os historiadores da matemática atribuem aos pitagóricos o estudo dos números amigáveis e perfeitos. Pelo contrário, parece existir uma total concordância relativamente à origem dos números figurados que, como foi dito, representam uma ligação entre aritmética e geometria. Essa ligação, uma das características importantes da matemática grega, será ainda ilustrada mais adiante a propósito dos números irracionais.
A CRISE DOS NÚMEROS IRRACIONAIS
A perfeição do mundo em que pareciam viver os pitagóricos, o dos números e das suas propriedades, foi profundamente abalada por uma descoberta, surgida no seio da própria comunidade - a descoberta da incomensurabilidade. Todos os historiadores da matemática, sem excepção, se referem ela como um dos acontecimentos mais dramáticos da história da disciplina. O dramatismo é acentuado pelo facto de que essa descoberta ser uma consequência directa do teorema de Pitágoras, o próprio fundador da escola.
OS INCOMENSURÁVEIS OU IRRACIONAIS
As grandezas geométricas que não correspondiam a qualquer número conhecido no tempo dos Gregos foram chamadas incomensuráveis. Uma das mais célebres é a diagonal do quadrado de lado 1, que hoje representamos por... (raiz quadrada de 2). Existem várias maneiras de demonstrar a impossibilidade de exprimir essa medida usando um número inteiro ou fraccionário. A mais simples de todas baseia-se no teorema de Pitágoras.
Um outro comprimento de representação geométrica simples e ao qual não corresponde nenhum número da matemática grega é o perímetro da circunferência (com diâmetro igual a 1 ou a outro valor inteiro). O valor desse perímetro é actualmente representado por pi.
Estas duas medidas, a da diagonal do quadrado de lado 1 e a do perímetro da circunferência de diâmetro 1 têm valores irracionais. A definição rigorosa de número irracional foi dada só no século XIX.
O pensador mais importante do primeiro ciclo pitagórico, Hipásio, foi também o responsável por um rude golpe infligido à tese pitagórica de que “tudo é número”. Conta a lenda que Hipásio se teria afogado no mar, como consequência da descoberta da incomensurabilidade. Se algum humor nos fosse permitido a propósito dos reveses da ciência, diríamos que não foi caso para menos. De facto, a descoberta de Hipásio, a de que existem comprimentos aos quais não é possível qualquer número conhecido na altura, desencadeou uma crise matemática que durou vinte e cinco séculos. Paul Tannery fala de “escândalo lógico”, ao referir a questão. Outros historiadores da matemática denominam “revolução” (no sentido kuhniano) a descoberta dessa impossibilidade (17). O termo “revolução”, aplicado a certos casos típicos e bem conhecidos da história das ciências, tem um sentido diferente neste exemplo da matemática. Sem pretender entrar em polémicas a propósito das palavras, é importante distinguir esta “revolução” de outras bem mais conhecidas, como a revolução coperniciana ou darwiniana. Nesses casos, o lento acumular de dados e factos fez surgir, num dado momento, uma teoria explicativa nova, oposta às anteriores, uma teoria “revolucionária”. O autor dessa teoria teve que lutar para que ela fosse aceite, promover observações e experiências que a confirmassem. Até ser finalmente admitida pela comunidade científica, a nova teoria encontrou adeptos e opositores, confirmações e refutações.
No caso dos incomensuráveis, a história processou-se de forma diferente. O desenvolvimento de certos cálculos baseados no teorema de Pitágoras levou a resultados incongruentes com a noção de número dos Gregos. Os matemáticos reconheceram unanimemente a existência dessas dificuldades. A única maneira de resolver a questão, sabemos hoje, seria criar uma “nova” e “revolucionária” concepção de número. Mas esse passo não podia ser dado repentinamente, e só no século XIX foi possível resolver o problema de forma satisfatória, com o rigor exigido pela matemática. Não se pode dizer, no entanto que esse momento foi “revolucionário”. De facto, durante esses vinte e cinco séculos, entre a descoberta dos incomensuráveis e a sua definição rigorosa, os matemáticos estavam conscientes de que havia uma realidade que lhes escapava. Eles não tinham um instrumento adequado para exprimir rigorosamente a medida de certos comprimentos, áreas ou volumes, sendo obrigados a usar valores aproximados para traduzir essas medidas.
A construção das ideias e dos cálculos que permitiram, no século XIX, a definição rigorosa das quantidades irracionais foi um processo lento. As definições rigorosas de número irracional foram uma inevitabilidade do desenvolvimento matemático. As características deste processo “revolucionário”, tão diferente dos de outras disciplinas, devem-se, evidentemente, à natureza do conhecimento matemático.
No entanto, é possível, mesmo assim, falar de revolução, a propósito da descoberta dos incomensuráveis. De facto, essa descoberta, para além de ter sido razão de escândalo, de morte e de crise, foi também, durante séculos, fonte de polémicas entre matemáticos. As disputas a propósito da natureza dos incomensuráveis, a que hoje chamamos irracionais, prolongaram-se desde a Antiguidade através da Idade Média e do Renascimento. Mas o desconhecimento da natureza dessas quantidades geométricas, não impediu os matemáticos de trabalhar com elas e de realizar importantes progressos matemáticos. Para compreender como foi isso possível seria preciso contar a história da evolução do conceito de número, história demasiado longa e complicada para ser aqui tratada.
Sendo impossível traçar a evolução do conceito de número, que se prolonga desde a Antiguidade até ao presente, vamos olhar para um número que, de certa forma, esteve sempre presente na história dessa evolução o número
O FASCINANTE NÚMERO PI E A QUADRATURA DO CÍRCULO
Os números inteiros positivos são os primeiros a ser ensinados na escola. A seguir aprende-se a tabuada e os algoritmos das quatro operações ou a carregar nas teclas da máquina de calcular. Depois, muito rapidamente, os estudantes vêem “aparecer” outros números, fraccionários, decimais e novas regras operativas, acontecimento que perturba muitas cabeças, mesmo dotadas. Mas, nesse evoluir, não existe certamente perturbação maior do que ver surgir um número que se representa por uma letra e sobre o qual nunca é dito qual o seu valor exacto. Também ninguém explica porque é que se usa uma letra estranha e precisamente essa. É também um mistério que ao calcular perímetros de circunferências e áreas de círculos, umas vezes se use 3,14 outras 3,1416 ou 3,14159 para o valor de PI.
Essa imprecisão é ainda mais misteriosa porque ela surge no ensino da ciência tida como a mais exacta de todas, aquela onde se aprende a arte do rigor. Porque é que os matemáticos não sabem dizer quanto vale exactamente a razão entre o perímetro e o diâmetro da circunferência?
Ao formular assim esta questão estamos desde logo a supor que essa razão é a mesma para todas as circunferências. Essa hipótese é tida como verdadeira nos mais antigos documentos matemáticos que se conhecem, as tábuas babilónicas com cerca de quatro mil anos. Também os egípcios assim o consideram, sabemo-lo hoje através do Papiro de Rhind, datando de cerca de 1800 anos AC, descoberto em 1855 e conservado no Museu Britânico. Nos dois documentos citados, babilónico e egípcio, os valores usado para o que chamamos
PI = 3+1/8=3,125 (babilónico)
PI= (16/9)2=3,16904.......(egípcio)
Tanto egípcios como babilónios usavam estes valores com finalidades de ordem prática. A matemática destes povos da Antiguidade parecia não outro fim senão servir actividades, tais como a arquitectura, ou permitir a justa distribuição de terras e de outros bens.
Já para os Gregos a matemática é praticada, a par com a filosofia, como um exercício de interpretação do mundo e de deleite do espírito. A própria maneira de exprimir a pesquisa dessa grandeza, hoje chamada PI.
Anaxágoras (500-428 AC) é o primeiro a pretender realizar a quadratura do círculo, procedimento destinado a construir, com régua e compasso, um quadrado com a mesma área de um dado círculo. Este problema, que atormentou muitos geómetras, e não só, ao longo dos séculos, não tem solução. Mas esse facto só foi demonstrado em 1882 por Ferdinand von Lindemann (1852-1939). Provavelmente nenhum outro problema exerceu uma tão grande atracção, sobre matemáticos profissionais e amadores. Já no século IV A.C. na sua peça “Os pássaros”, Aristófanes ridicularizava os quadratores de círculo. São inúmeras as histórias à volta deste problema que muitos tentaram resolver mesmo depois de provada a impossibilidade. No entanto, nenhuma iguala a da controvérsia extraordinária que opôs o filósofo Thomas Hobbes e o matemático John Wallis, a propósito deste tema.
Hobbes, que tinha descoberto os prazeres da geometria por volta dos 40 anos, era nesta matéria, tão apaixonado como incompetente e autoconfiante. Ele pensava que o seu génio lhe permitia fazer descobertas importantes. Em 1665, então com 67 anos, publicou um tratado que continha uma construção aproximada de PI, mas apresentada como se fosse a solução exacta do problema da quadratura do círculo. John Wallis denunciou os erros do filósofo e foi o início de uma batalha que durou até à morte de Hobbes, com a idade de 91 anos. A resposta de Hobbes ao primeiro ataque de Wallis foi uma edição inglesa da sua obra (primeiro publicada em latim) à qual ele tinha acrescentado um apêndice intitulado “Seis lições para o professor de matemática”.
Wallis replicou através de um texto intitulado “punição a infligir ao Sr. Hobbes por não ter aprendido correctamente a lição”. Seguiram-se durante vinte anos outras publicações com títulos tão eloquentes que dispensam até de ler o conteúdo.
Hobbes tinha no entanto uma desculpa para o seu comportamento. Nesse tempo a Academia das Ciências de Paris não recusava ainda analisar as “soluções” do problema da quadratura do círculo, posição que adoptou posteriormente, em 1775. Para justificar a sua decisão a Academia publicou um longo texto no qual, antes de tudo, informava os possíveis quadratores de círculo da natureza histórica do problema e das construções que permitem obter de uma forma aproximada o valor de PI, algumas delas conhecidas desde a Antiguidade.
O NÚMERO - SÍMBOLO DE UM PARADOXO CULTURAL
A quadratura do círculo é apenas uma das questões, relacionadas com o número PI.
O número, objecto essencial da ciência da exactidão e do rigor, fundamental para traduzir a realidade, encerra no entanto grandes indefinições e ambiguidades. As mesmas propriedades podem servir, simultaneamente, objectivos místicos e científicos, como foi ilustrado no caso dos números inteiros. A natureza do número, que durante séculos parecia escapar à descrição matemática, tanto é fonte de mistério permanente, como motivo de investigação científica. O número será sempre um símbolo desse paradoxo cultural que reúne misticismo e ciência.
NOTAS
1. Segundo a Metafísica de Aristóteles, que é a principal fonte do pitagorismo antigo (Mattei, J-F., Pythagore et les Pythagoriciens).
2. Ibid p.58
3. Citado po Bento de Jesus Caraça em Conceitos Fundamentais da Matemáica.
4. Ibid.
5. Mattei, J-F, Pythagore et les Pythagoriciens, PUF, Paris, 1996, p.21
6. Thom, R., in A Filosofia das Ciências Hoje, coordenação de Jean Hamburger, Ed. Fragmentos, 1988, pp.13-23
7. Abragam, A., Teoria ou experiência: um debate arcaico, Ibid, pp.25-36
8. Como por exemplo o caso de Mugur-Schater, M. Evidenciado no artigo Les Leçons de la Mécanique Quantique, Le, Débat, 94, 1997.
9. A obra aritmética dos pitagóricos é conhecida através do livro 7 dos Elementos de Euclides.
10. citado em Hoffman, P. O Homem que só gostava de números, Gradiva.
11. Dieudonné, J., A Formação da Matemática Contemporânea, p. 55.
12. A teoria dos números figurados está exposta na Aritmética de Nicómaco (100 DC), livro que desempenhou um papel muito importante na história da aritmética.
14. Vasconcelos, Fernando de Almeida, História das Matemáticas na Antiguidade, Aillaud e Bertrand, Paris-Lisboa, 1925, pág.160
15.Ibid, p.161
16. Mattei, ob cit., p.
17. Hoffman, P., “O Homem que só gostava de números”, Ed. Gradiva, 2000, pág. 149.
18. Dunmore, Caroline, Meta-level revolutions in mathematics, in Revolutions in Mathematics, Donald Gillies, Oxford University Press, 1992.
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NOTA: Não temos possibilidade de inserir equações nem certos símbolos matemáticos.
TriploV.
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