NOS JARDINS DO OFÍCIO
 Pessoa e a alquimia do Verbo
Luís Filipe B. Teixeira


Com o título desta minha comunicação pretendo exprimir a associação entre os «Jardins do Ofício» da Escrita (paradigma de toda a Modernidade) e os processos alquímicos do Verbo, tomando por base a arquitectura heteronímica e o processo de experiencialização da Consciência («O viajante não tem morada fixa; a estrada é o seu lar», como se diz no I Ching, hexagrama 56) subjacentes ao pensamento e obras de Fernando Pessoa.

I

Em Pessoa, e em termos sistemáticos, encontramos três modos de conceber o processo heteronímico, a saber:

a) como evolução da Consciência humana, desde o nível mimético, passando pelo analógico, até ao simbólico;

b) como escala de despersonalização;

c) e como graus de iniciação.

 

Estes três modos, apesar de diferentes entre si, são tudo faces de um mesmo poliedro ou, se se preferir, modos diferentes de se empregar a «intelligencia analogica». São, como escreve nalguns textos do seu projecto («livro que o não é») Caminho da Serpente, as «três ordens» de interpretação. Cabe a estas «três ordens» combinar, no plano poiético, a subjectividade da lírica (Apolo) com a objectividade do drama (Dioniso), não nos esquecendo, como escreveu Nietzsche, que Dioniso fala a língua de Apolo, mas Apolo acaba por falar a língua de Dioniso; e dessa maneira se conseguiu atingir o fim último da Tragédia e da Arte 

Comecemos pelo primeiro caso, isto é, pela heteronímia concebida como processo de experiencialização da consciência.

No longo documento 21-56r-60r, assinado por António Mora  e que faz parte dos seus Prolegómenos, intitulado «Theoria dos deuses. O que são os deuses», é explicado este processo.

Logo no início é defendida a ideia de uma evolução do espírito humano desde o pensamento concreto até ao pensamento abstracto, corroborada pela ideia de que os deuses são o primeiro grau de abstracção ou, melhor, são as ideias humanas em passagem de noções concretas para ideias abstractas.

A passagem de um estádio concreto («tal árvore») para um outro abstracto («árvore»), pressupõe a existência de um outro intermédio (já não concreto, mas ainda não abstracto). Este segundo estádio de «concretude» surge pela

cisão da noção concreta de tal árvore em duas cousas, um concreto estático («árvore-que-fica») e um concreto dinâmico («verdura-que-passa»). Este estádio intermédio surge quando se percepciona a semelhança entre a florescência de uma árvore e a florescência de outra árvore. Logo que esta semelhança é vista, está encontrada uma ideia concreta que serve de aproximação de duas ideias concretas: a de florescência servindo de aproximação de tal árvore a tal-outra árvore

Esta noção de «florescência» caracteriza-se por ser dispersa, dinâmica e, sobretudo, de uma cousa útil,  ao contrário da de árvore-tal-árvore, como o primitivo a concebe ?que não serve para nada. 

Surge, assim, a ideia de «árvore-em-si», ideia abstracta que conjuga a universalidade fenoménica do ser-árvore.

Ora, também a heteronímia se desenvolve com base num processo de objectivação/subjectivação da Consciência, desde a máxima concretude do «objectivismo absoluto» de Caeiro (equivalente aos deuses de Usener, referido por Cassirer, quer na Filosofia das Formas Simbólicas quer no seu livro Linguagem e Mito, os quais «parecem ser criações inconscientes e involuntárias feitas na espora do momento»), até ao máximo de idealização patente em Fernando Pessoa ipse (correspondente aos «deuses pessoais» de Usener), passando, evidentemente, quer pelos «deuses particulares» (Reis) quer pelos «deuses vegetais» (Campos).

Apesar de ser  absurdo dizer que Pessoa pensou em tudo isto quando criou os heterónimos (mesmo levando em consideração aquele «feito o horóscopo, está certo» ? por si sublinhado ? que escreve a Casais Monteiro...), acrescente-se ainda que a ideia da Filosofia das Formas Simbólicas surgiu a Cassirer por volta de 1917, precisamente no ano, pasme-se, em que Mora escreveu este texto, o que nos poderia levar a falar de «coincidências sincronísticas», referidas por Jung e que são «a-causais». Contudo, e já o dissémos várias vezes, trata-se de explicar a heteronímia dentro de um quadro arquetípico e hierofanológico (conceito criado por nós a partir da noção de hierofania (=manifestação do sagrado) desenvolvida por Eliade), e basta trazermos à colação os trabalhos de Jung, Bachelard e Durand ? para não ir mais longe ? para se perceber o alcance desta nossa hipótese. Neste, como noutros casos, poder-se-ia dizer que o silêncio confirma a sua presença inconsciente !

Se pegarmos agora nos textos acerca dos «graus de despersonalização», escritos pelo ortónimo, os quais se pensa terem sido redigidos nos finais dos anos vinte princípios de trinta, e que versam sobre a passagem da poesia lírica para a dramática, veremos que esta hipótese também se verifica, embora, num deles, o pressuposto assente numa intelectualização e subjectivação do histerismo, desde um «histerismo físico», passando por um «histerismo mental», até um «histerismo intelectual; e, nos outros dois, numa substituição da imaginação ao sentimento e da inteligência à emoção, para a pluralidade da expressão estilística. Será ainda de acrescentar, que este processo de subjectivação é válido, quer para cada uma das formas simbólicas, per se, quer para cada uma por relação às outras. É ainda este esquema que encontramos na evolução dos «graus de iniciação», equivalentes às «três ordens» de interpretação enunciadas no Caminho da Serpente, que Pessoa esclarece no Ensaio sobre a Iniciação quando diz : 

Possivelmente há três modos pelos quais as iniciações podem ser interpretadas : (1) os três caminhos de realização, mágico, místico e gnóstico, (2) os três estádios de realização, Neófito, Adepto e Mestre, (3) os três graus de realização, astral, mental e espiritual. [54A-52r]

Tudo isto está narrado explicitamente num outro texto pertencente a este projecto pessoano. Refiro-me ao doc. 54B-17r-18r, onde escreve :  Suponhamos que o escrever grande poesia é o fim da iniciação. O grau de Neófito será a aquisição dos elementos culturais com que o poeta terá de tratar ao escrever poesia (...).

O grau de Adepto será, extraindo a analogia da mesma maneira 5) o escrever poesia lírica simples como num poema lírico comum, 6) o escrever poesia lírica complexa como em, 7) [a numeração salta no orig.] o escrever poesia lírica ordenada ou filosófica como na ode.

O grau de Mestre será, da mesma maneira: 8) o escrever poesia dramática, 10) a fusão de toda a poesia, lírica, épica e dramática em algo para lá de todas elas.  

II

  (...) O Misticismo procura transcender o intelecto (pela intuição), a Magia aspira a transcender o intelecto pelo poder; a Gnose, a transcender o intelecto por um intelecto superior. Mas para transcender uma coisa devidamente, é preciso primeiro passar por essa coisa. A vantagem do caminho gnóstico é que há menos tentação de alcançar o intelecto superior sem passar pelo inferior - uma vez que ambos são intelecto e há uma diferença de quantidade entre  um e outro - do que nas vias mística e mágica, onde há uma diferença de qualidade, não de quantidade, entre emoção e intelecto, entre a vontade e o intelecto.   

Fernando Pessoa [Esp. 54A-51r] 

É sabido, embora muitas vezes esquecido, que Pessoa acredita na estruturação da realidade segundo um plano hierarquizado de Entes, de baixo para cima (embora, como ensina Hermes Trimegistos, «o que está em baixo é como o que está em cima»), a que, cada um de nós, de acordo com a sua  «afinação espiritual», poderá aceder, nunca por comunicação directa, mas antes mediada.

Por outro lado, embora não o diga aqui, a arquitectura hierárquica desses mundos e dos Entes que nele habitam, reproduz-se,  analogicamente, na divisão organizativa das Baixas e Altas Ordens (do Átrio, do Claustro e do Templo), dando sentido à expressão «tudo é Um», estando presente na disposição simbólica do Templo de Salomão como escreve, expressamente, no doc. 54A-29r (a incluir no seu livro sobre o Atrio) e de que passo a citar apenas um excerto retirado do início do texto: 

A grande regra do Occulto é aquella de Pymandro de Hermes : «o que está em baixo é como o que está em cima». Assim, a organização das Baixas Ordens copia, guardadas as differenças obrigatorias, a organização das altas ordens ; reproduzem-se os mesmos transes, por vezes as mesmas especies de symbolos ; o sentido é outro e menor, mas a regra de similhança tem que ser mantida, pois, de contrario, a ordem menor não vive e abatem, por si, as columnas do templo.

Mas, o mais interessante e significativo, é que essa analogia alarga-se à «quadrifonia» heteronímica ? o quatro heteronímico, que compõe o Homem Filosófico enquanto produto das «quatro naturezas da Pedra», resulta da associação do Um ao Três ? pois ela é o próprio paradigma da Consciência!

E acerca deste «quatro» e do seu significado, mas apenas como nota, refira-se apenas que a simbologia da quaternidade expressa uma imagem arquetípica. Sendo um símbolo da estrutura da criação na sua totalidade, está presente em todas as civilizações, arcaicas ou não. Na nossa realidade quotidiana, encontramo-la nos quatro pontos cardeais, nas quatro estações do ano, nas quatro fases da Lua, nas quatro cores primárias ou nos quatro elementos. Enquanto manifestação espiritual, é ela que estrutura as castas ou as mandalas na Índia, as quatro vias de desenvolvimento do Budismo, os Quatro Evangelistas ou os quatro estádios de construção da Obra, base da fabricação da «Pedra Filosofal». Como escreve Pessoa,

O  génio  é  uma  alquimia.  O processo  alquímico é  quádruplo:  1) putrefacção; 2) albação; 3) rubificação; 4) sublimação. Deixam-se, primeiro, apodrecer as sensações; depois de mortas embranquecem-se com a memória; em seguida rubificam-se com a imaginação; finalmente se sublimam pela expressão.10  

Segundo um axioma de Maria a Profetisa, várias vezes citado por Jung, «o Um torna-se Dois, o Dois torna-se Três, e do terceiro nasce o Um como Quatro». A antiga filosofia grega estabelecia uma analogia entre a doutrina dos quatro elementos e as quatro faculdades do Homem : Moral (Fogo), estética e da alma (Água), intelectual (Ar) e física (Terra). Para o gnóstico Marcos, que seguiu os ensinamentos místicos de Pitágoras, o quatro era o número de Cristo, uma vez que 1+2+3+4 prefaz a tétrade, cujo valor numérico equivale ao da letra hebraica do nome de Jesus11  ; e a seita dos Barbelognósticos fez derivar o seu nome das palavras hebraicas Barbhé-Eloha, «no quatro (habita) Deus»12 . Na Europa medieval e no Renascimento encontramo-la, sobretudo por via dos escritos de Galeno, na teoria dos quatro humores ou temperamentos, visível, entre outros, nas obras de Shakespeare e Goethe (autores a que Pessoa recorre constantemente como exemplo...).

Por outro lado, como refere Marie-Louise von Franz, este arquétipo quadrifuncional estrutura também um dos grupos de contos de fadas :

Um rei tem três filhos filhos. Ele gosta dos dois filhos mais velhos, e considera o mais novo um tolo. Então o rei estipula uma tarefa pela qual os filhos têm de achar a água da vida, ou a noiva mais bonita, ou afugentar um inimigo secreto que todas as noites rouba os cavalos ou as maçãs de ouro do jardim real. Geralmente, os dois filhos mais velhos partem, não conseguem nada ou não voltam; então o terceiro sela o seu cavalo enquanto todas as pessoas gozam dele e lhe dizem que seria preferível que ficasse em casa, perto do fogão, lugar ao qual pertence. Mas é ele que costuma desimcumbir-se da grande tarefa.13  

No nosso caso, temos : O rei (Fernando Pessoa) com os seus três filhos (Caeiro, Reis e Campos), ausentando-se os dois mais velhos (Caeiro vai para Santarém e Reis para o Brasil), sendo o mais novo um louco («...louco, sim, louco, porque quiz grandeza...») ou um idiota (Campos, «o mais histericamente histoórico mim»). 

Passemos agora a uma breve análise dum dos parágrafos da célebre carta a Casais Monteiro, de 13 de Janeiro de 1935 em que apresenta a génese da «génese dos heterónimos». Nele pode ler-se: 

Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que se prepara, sem grandes riscos, mas antes com defesas que os outros caminhos não têm. 

Daqui se conclui que, se o primeiro é de rejeitar pelo seu carácter perigoso (a todos os níveis); o segundo, o místico, sê-lo-á pela lentidão e incerteza do seu caminhar operativo. Com efeito, na via mística não existe a possibilidade de nos certificarmos dos momentos e estádios já alcançados, sendo, por isso mesmo, e muitas vezes, um caminho de ilusão. Todavia, se no caminho mágico nos temos de fiar (essencialmente) no poder (mágico); no caminho místico produzem-se resultados de inteligência sem o uso dela. Tanto um como outro são atalhos para o conhecimento, e, por isso, são o produto de confissões de impotência. O problema reside, essencialmente, na existência de critérios seguros que nos possibilitem testar os conhecimentos adquiridos. Pessoa dá-nos conta de tudo isto no documento 54A-61r, que faz parte do Ensaio sobre a Iniciação, e de que citarei um excerto : 

Os caminhos do Misticismo e da Magia são muitas vezes caminhos de engano e de erro. O Misticismo significa essencialmente confiança na intuição; a Magia significa essencialmente confiança no poder. A intuição é uma operação da mente pela qual os resultados da inteligência são obtidos sem o uso da inteligência. o poder, no sentido do poder mágico, é uma operação da mente pela qual os resultados do esforço contínuo são obtidos sem o uso do esforço contínuo.  Ambos, porém, por mais tempo que levem a operar, são atalhos para o conhecimento.

Em certo sentido, tanto o Misticismo como a Magia são confissões de impotência. O místico é um homem que sente que não tem em si a força do pensamento para atingir a verdade pelo pensamento. O mágico é um homem que sente que não tem em si a força de vontade para atingir a verdade (ou o poder) pela força de vontade.  

Ora, se estes dois caminhos são de excluír, resta-nos o Gnóstico e, em especial, o Alquímico, aqui entendido como Alquimia do Verbo, o qual passa pelos vários graus, respectivamente de despersonalização, de abstracção e de iniciação14 . É neste sentido que a heteronímia pessoana toma a forma da história de uma Consciência (ou da sua Viagem...), que se cria a si própria pelo acto (teatralização) da Escrita.

Ora, segundo Festugière e Jung, para só citar estes dois, a Alquimia, enquanto arte de transmutação e de transfiguração da alma (e repare-se que foi este ponto que Pessoa salientou a Casais Monteiro), é um sistema de pensamento filosófico-religioso que, como todos os sistemas, possui uma coerência arquitectónica que lhe é sui generis. Trata-se agora, em geito de conclusão, de ver como é que essa estrutura opera na heteronímia sub specie interioritatis15 .            

III

 

Do nada absoluto (a folha branca) surge a manifestação do múltiplo, culminando no corpo (na palmeira), como na árvore sefirótica dos kabalistas. Místico é o saudoso do Um. Pagão (ou alquimista) é o amoroso do Todo. Um o Todo ? a inscrição da serpente ouroboros ? outra forma cuja ideia o poeta aqui também suscita, circular, em vez de perpendicular, e unindo também extremos, como a árvore. Da terra ao céu, do céu à terra, uns sobem, outros descem a palmeira. Mas o que interessa, nuns e noutros, é a transformação. 

Yvette Centeno 

No seu livro sobre Misticismo, Evelyn Underhill define três grupos diferentes de místicos, identificando os alquimistas com o terceiro deles. Escreve ela :

A. Aqueles que concebem o Perfeito como uma visão beatífica exterior a eles e muito afastada. (...) B. Aqueles para quem o misticismo é, acima de tudo, uma relação pessoal e íntima, a satisfação de um profundo desejo. (...) C. Aqueles que têm consciência do Divino como uma Vida Transcendente imanente no mundo e no eu, e de uma estranha semente espiritual dentro de si, através de cujo desenvolvimento o homem, elevando-se a níveis superiores de carácter e consciência, atinge o seu objectivo. (...) Para estes, a vida mística envolve uma mudança interior, muito mais do que uma procura exterior. É precisamente com estes que se identificam os alquimistas e a sua Obra, que mais não é do que o acabamento, o aperfeiçoamento do próprio ser humano.16  

Daqui poderemos extrair algumas conclusões, a saber: que o caminho alquímico, na medida em que possibilita, teleologicamente, uma União com o divino, cai dentro de uma certa caracterização mística; e, em segundo lugar, devido ao facto de a heteronímia mais não ser do que um processo de alteridade e transfiguração (transiente) do Eu, tendente à revelação do divino que habita em cada um de nós (Pessoa refere constantemente aquela frase de Píndaro segundo a qual «a raça dos deuses e dos homens é uma só»...), então, temos aqui estabelecida a analogia com esse processo alquímico. Em ambos os processos, no alquímico e no heteronímico, estamos perante o sofrimento e a morte (sentida até à mágua de mim, como ele diz) e a ressurreição num estado de pureza e albação eidética (de eidos, essência), presente no grau de Mestre, em que o Poeta produz «poesia épica, poesia dramática e a fusão de toda a poesia, lírica, épica e dramática em algo para lá de todas elas» (F.Pessoa). Ambos são caminhos de religiosidade, no seu profundo sentido etimológico, isto é, de Re-União com o Homem Interior Universal, referido por Jung na  sua obra Psicologia e Alquimia, mas também por E. Bloch (O Espírito da Utopia) e por Musil (O Homem sem Qualidades). Assim sendo, o processo heteronímico e os «mecanismos de outrar» que lhe são subjacentes estão na base do processualizar experiencial conducente à (auto-)Realização da Obra. Cada um dos heterónimos funcionam, assim, como o preparar dos estádios operativos. É isto que leva, por exemplo, António Mora, a falar de Caeiro como «a matéria-prima do Paganismo». Mas aqui há que distinguir a matéria tal como é concebida, ora pela ciência química ora pela química occulta ou Alquimia. E Pessoa faz essa distinção no documento 54-84r onde se pode ler :

A chimica occulta, ou alchimia, differe da chimica vulgar ou normal, apenas quanto à theoria da constituição da matéria; os processos de operação não differem exteriormente, nem os apparelhos que se empregam. É o sentido, com que os apparelhos se empregam, e com que as operações são feitas, que estabelece a differença entre a chimica e a alchimia. 

E, mais à frente :

A materia é na verdade, e como crêem o physico e o chimico normaes, constituida por um systema de forças em equilibrio instavel, formando corpos dynamicos a que se pode chamar ?atomos?. Porque isto é real, e a materia, considerada physi-camente, é na verdade assim constituida, são possiveis as experiencias e os resultados dos homens de sciencia, e a materia é manipulavel por meios materiaes, por processos apenas physicos ou chimicos, e para fins tangiveis e immediatamente reaes. 

E desde logo vai buscar a própria caracterização elementar da matéria para definir a diferença de planos operativos :

Mas, ao mesmo tempo, os elementos que compõem a materia teem um outro sentido; existem não só como materia, mas tambem como symbolo. Ha, por exemplo, um ferro-materia; ha, porem, e ao mesmo tempo, e o mesmo ferro, um ferro-symbolo. Cada elemento symboliza determinada linha de força super-material e pode, portanto, ser realizada sobre elle uma operação, ou acção, que o attinja e o altere, não só no que elemento, mas tambem no que symbolo. E, feita essa operação, o effeito produzido excede transcendentemente o effeito material que fica visivel, sensivel, mensuravel no vaso ou apparelho em que a experiencia se realizou. É esta a operação alchimica.

Não deixa de ser interessante, como parêntesis, comparar este texto com aquilo que Pessoa escreve num outro [24-55r-55v], até porque serve para fundamentar a defesa de um certo «cepticismo» gnoseológico. Escreve ele nesse documento, na sua parte final : 

Organizado, como é, o espírito do homem, não há demonstrações senão a científica, isto é, a que se baseia ou na observação, ou na experimentação, ou no cálculo, ou em qualquer combinação destas três coisas. Ora, ainda admitindo que o conceito de causa e efeito seja induzível da observação (o que é contestável e, de facto, tem sido contestado), o que é certo é que o que chamamos universo em seu «conjunto» não é susceptível de observação, de experimentação ou de cálculo, pois não temos sentido algum com que o abranjamos, nem sabemos, portanto, o que em esse «conjunto» (e já conjunto é hipótese) o universo seja.A existência de Deus é, pois, indemonstrável, mas é um acto de fé racional, natural portanto ? inevitável até ? em qualquer homem no uso da sua plena razão.E tanto assim é que o ateísmo anda sempre ligado a duas qualidades mentais negativas ? a incapacidade de pensamento abstracto e a deficiência de imaginação racional. Por isso, nunca houve grande filósofo ou grande poeta que fosse ateu. 

E conclui :Indemonstrabilidade dos dados dos sentidos ? a crença que temos na realidade objectiva do universo é um acto de fé sensual. A ciência mostra a que leis obedecem os seres que povoam esse universo aparentemente objectivo; não demonstra, nem pode demonstrar que essa objectividade seja mais que aparente, que o mundo não seja sonho e ilusão. Num caso há um acto de fé logicamente injustificável, na validade da razão; no outro um acto de fé, igualmente injustificável, na validade dos sentidos. É bom que o ateu saiba que, se o teísta pratica uma imprudência lógica ao ocultar a existência de Deus, o ateu a pratica igual ao ocultar a existência de uma pedra, entendendo eu, por este segundo termo, a imaginação que sabe figurar-se «entes» despidos de todos os atributos18 . 

Mas voltemos à relação entre a ciência química e a «quimica oculta». A grande e fundamental diferença reside na atitude (teleológica) do operador perante a sua matéria-prima. Enquanto o cientista pretende mudar realmente as características materiais dos elementos com que opera, o alquimista pretende algo mais, no sentido em que, também ele sai transformado, metamorfoseado simpathicamente dessas operações que realiza. No primeiro caso, estamos perante uma transmutação externa, física (da ordem da fúsis), em que o operador controla as fases de alteridade da matéria enquanto tal ; no segundo, mais do que isso, a força energética proveniente da matéria trabalhada («burilar a Pedra, rectificando-a», como é ensinado pela expressão VITRIOL) está em contacto íntimo e participativo com o corpo espiritual do operador («e não só do operador, como tambem de quantos conscientemente o auxiliam ? embora sem conhecimento alchimico ? nas suas experiências», escreve Pessoa noutra parte daquele texto). Trata-se, portanto, de um trabalho de afectação mútua tendente à obtenção de uma perfeita coincidentia oppositorum de um «casamento do Rei com a Rainha», de que falam os textos alquímicos. O alquimista pretende, desse modo, não só alterar metamorficamente a matéria como, e mais importante do que isso, auto-transformar-se: é que é ele a sua própria matéria

Penso terem ficado claras, a partir disto, as razões que me levaram a designar a heteronímia como um processo de auto-‑transformação sub specie interioritatis19 . É que, se é verdade que em «Chuva Oblíqua» ainda estamos perante uma fragmentação, um esforço titânico para regressar a si-mesmo, enquanto totalidade e símbolo unificador; e se, por outro lado, como escreve Yvette Centeno, na impossibilidade de regressar à inconsciência inocente da infância, como propõe Caeiro, regressa o poeta a si próprio: para sempre consciente e dividido20 ,se tudo isto é verdade, contudo, pensamos ser sintomática a indecisão pessoana em assinar esse manifesto interseccionista (expressão que, só por si, implicita o desmembrar e fragmentar de que as intersecções pretendem ser a sua totalização) com o nome de Álvaro de Campos. É que coube, precisamente, a este heterónimo realizar a «ponte» com o Pessoa ortónimo. Daí ser Campos aquele que se encontra mais perto dele, sendo o único (segundo diz) que Pessoa conhecia, chegando mesmo, por vezes, a apresentar-se junto de Ophélia (em sua troca)21 . Daí ser, também, Álvaro de Campos o mais histericamente histérico de mim e o mais auto-fágico, auto-mortificado, masoquista, homossexual e auto-castrado de entre todos22 . Em suma, Álvaro de Campos é, verdadeiramente, o seu alter ego. 

Mas este processo de purificação ascética também se realiza na viagem que vai do  Adepto Menor a Maior. Nos textos em que Pessoa trata deste assunto (sobretudo em 54-33r-37r e 54-39r), perspectiva-se a Iniciação do Adepto a operar sobre o carácter demoníaco do histerismo, servindo-se, quase sempre e em exclusivo, do exemplo de Shakespeare, sendo evidente a aproximação que faz com o seu caso pessoal.

Segundo Pessoa, é no histerismo que se encontra a base do génio lírico. Escreve ele :

Quanto mais puro e restrito o génio lírico, tanto mais nítido será esse histerismo, como no caso de Byron e Shelley. Mas neste caso, o histerismo é, por assim dizer, físico; eis o motivo porque é nítido.

No génio do grau acima deste ? aquele que paira sobre vários tipos de emoção ? o histerismo torna-se, por assim dizer, mental; ou porque, como em Victor Hugo, uma robusta saúde física o impele para a interioridade, fugindo da manifestação física.

(...) No génio lírico do grau de todos o mais elevado ? o que abrange todos os tipos de emoção, encarnando-os em pessoas e assim se despersonalizando perpetuamente ? o histerismo torna-‑se, por assim dizer, puramente intelectual, ou porque a saúde física é boa ou deficiente a vitalidade.23  

Consequentemente, o histerismo assume três formas: física, mental  ou intelectual ? correspondendo, no caso dos heterónimos, respectiva-mente, a Caeiro, Reis e Campos. Se Goethe se situa no segundo caso, pois possuía uma diversidade de emoções cantadas sem sair de si, Shakespeare cai dentro do terceiro tipo, pois tinha

a capacidade de viver em imaginação os estados mentais do histerismo - portanto, a capacidade de os projectar para o exterior em pessoas distintas, em outras e mais precisas palavras, a capacidade psicológica que contribui para fazer o dramaturgo, embora essencialmente o não faça.

 E Pessoa termina este texto de um modo sintomático :

(Shakespeare era, pois: 1) por natureza, e na juventude e princípio da idade viril, um histérico; 2) mais tarde, e em plena idade viril, um histero-neurasténico em menor grau; era também de constituição frágil e vitalidade deficiente, mas não destituído de saúde.24 

Apesar de ser visível a aproximação que Pessoa faz com o seu caso pessoal, no entanto, nos textos sobre «a escala da despersonalização», esta identificação é já esbatida. Apesar de tudo, assinale-se a riqueza de matizes que Pessoa atribui a Shakespeare. Na realidade, existem vários Shakespeare, tal como existem vários Pessoa... E qualquer deles chegaram a viajar pelos vários graus da escala de despersonalização ao longo das suas vidas. 

Resumindo:  Se, tal como Pessoa afirma, o grau de Mestre é homologável àquele em que o génio poético subsume toda a poiésis ? lírica, épica e dramática ? em algo de transcendental, então, pensamos ser essa a operatividade que se observa, em trabalho, nos «Jardins do Ofício» da sua Obra, a qual atinge em Campos o seu ponto subliminar, isto por ser nele que, como escreve uma vez mais Yvette Centeno, enquanto Alter Ego  e Anima recalcada, nunca como em Álvaro de Campos consegue ser Pessoa tão vário e tão ele mesmo, tão fictício e tão real, tão objectivamente verdadeiro no que somente em si e em sonho experimentou.25    

Lisboa, Julho/Novembro de 1999

 

Notas 

Uma primeira versão deste texto foi por nós editada no Pensar Pessoa: A dimensão filosófica e hermética da obra de Fernando Pessoa, Porto, Lello & Irmão, 1997, pp. 169-192 ? sob o título «Ciência e Esoterismo em Fernando Pessoa», texto esse que serviu de base a uma outra comunicação proferida na Casa Fernando Pessoa em 27 de Outubro de 1994.

Doutorado em Estudos Portugueses (Cultura Portuguesa séc. XX) pela Universidade Nova de Lisboa, Licenciado e Mestre em Filosofia (especialidade Filosofia em Portugal) pela Universidade Clássica de Lisboa e /Professor Associado da ULHT 

 1 A origem da tragédia, Lisboa, Guimarães, p. 156.

 2  In Luís Filipe B. Teixeira, Obras de António Mora, de Fernando Pessoa: Edição e Estudo, Dissertação de Doutoramento, Universidade Nova de Lisboa, 1998, documento II-64, pp. 242-250.

 3 Já estudámos estes textos de Cassirer na nossa obra A Consciência Sacra, Sintra, Mar.Fim, 1987, pp. 47-‑70.

 4 Haveria aqui alguma coisa a dizer acerca, também, da criação involuntária de Caeiro no tão falado Dia Triunfal...

 5 PETCL, pp. 281-284; idem, pp. 67-69 ; PIAI, pp..106-7.

 6 Como nota, refira-se que isto está, de certo modo, em contradição com o que escreverá, dois meses e meio depois, a 30 de Março, na nota biográfica, a respeito da sua posição iniciática. Escreve ele: «Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal». E aqui há outra contradição pois, no mesmo parágrafo da carta que temos vindo a utilizar, mas mais abaixo, escreve ele : «Quanto a ?iniciação? ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema ?Eros e Psique?, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente ? o que é facto ? que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1888. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em Trabalho». Ora se estava em dormência, como é que se diz iniciado nela ? A solução está, porventura, nesse «aparentemente extinta»...

  7 Transcrito por Yvette Centeno in Fernando Pessoa e a filosofia hermética, Lisboa, Presença, 1985, p.54.

 8 Como escreve Berthelot, «o Um torna-se Dois, o Dois torna-se Três e do terceiro surge o Um como Quatro» (citado por Jung, Psychologie et Alchimie, Paris, Buchet/Chastel, 1970, pp. 209-210).

 9  Por não termos tempo para analisar a simbologia da quaternidade aplicada à heteronímia, e por já o termos feito noutro escrito nosso, remetemos para esse nosso ensaio intitulado «A estrutura mandálica da obra de Fernando Pessoa:Uma reflexão em torno do seu horóscopo», in Pensar Pessoa: A dimensão filosófica e hermética da obra de Fernando Pessoa, Porto, Lello & Irmão, 1997, pp. 105-125.

 10 PETCL, p. 121.

 11 H. Leisegang, La Gnose, Paris, Payot, 1971, p. 230.

 12 Ibidem, p. 131.

 13 Este esquema quadrifuncional também está presente no sonho de uma criança de 8 anos, analisado por Jung : «Then God came, but there were really four Gods in the four corners».

 14 No doc. 54A-61r, que citámos acima, mas mais à frente, escreve Pessoa: «Na Gnose, onde empregamos o intelecto, temos, pelo menos, o lastro do raciocínio; podemos, pelo menos, comparar um ?resultado? com outro, examinar se eles são contraditórios, quer cada um em si, quer em referência um ao outro. Se errarmos, é porque nos enganamos e não porque estejamos errados, como nos outros dois caminhos. É como quando se soma mal; a falha não está em somar, mas em não somar bem; somar é, porém, o sistema correcto para obter um total.» E, de seguida, dá exemplos: compara o  «palpite» («tipo comum de intuição») com o Misticimo; e o espiritismo com a Magia.

 15 Cf. Luís Filipe B. Teixeira, O Nascimento do Homem em Pessoa: A heteronímia como jogo da demiurgia divina, Lisboa, Cosmos, 1992, cap. II, pp. 47-139.

 16 E. Underhill, Mysticism, Londres, Methuen & Co.,Ltd. (citado in Yvette Centeno, Literatura e alquimia,, Lx., Presença, 1987, pp. 11-12. Ver, igualmente, Eliade, Ferreiros e alquimistas, Lx., Relógio d?Água, 1987, pp. 129-130.

 17 Documento transcrito por Yvette Centeno, Fernando Pessoa :o Amor, a Morte, a Iniciação, Lisboa, Regra do Jogo, 1985, pp.125-6.

 18 Texto transcrito nos Textos filosóficos, II vol., Lx., Ática, 1968, pp. 77-8.

 19 Sobre o desenvolvimento deste ponto, ver o cap. II do nosso livro O nascimento do Homem em Pessoa, pp. 47-139, já referido em nota anterior e onde se estuda, aprofundadamente, o problema orgânico da heteronímia tomando por base o paradigma da «origem da tragédia» e a ludicidade (ditirâmbica) das máscaras, necessariamente, por relação com a questão da histeria e histeroneurastenia.

 20 Yvette Centeno, Fernando Pessoa : Tempo. Solidão. Hermetismo, Lisboa, Moraes, 1978, p. 124.

 21 Sobre o depoimento de Ophélia a respeito do carácter «confuso» com que, por vezes, este se lhe apresentava, veja-se Fernando Pessoa, Cartas de Amor, 1ª ed., Lx., Ática, 1978, p. 37.

 22 A este respeito, veja-se o excelente estudo de Yvette Centeno «Ophélia-bébézinho ou o horror do sexo» in Fernando Pessoa: o Amor. A Morte. A Iniciação., p. 11-21.

 23 Fernando Pessoa, PETCL, 2ª ed., Lx., Ática, 1973, p. 283.

 24 Fernando Pessoa, PETCL, p. 284.

 25 Fernando Pessoa: Os Trezentos e outros ensaios, Lisboa, Presença, 1988, p. 7