PERSISTÊNCIA DE CONCEITOS ALQUÍMICOS
NOS DIAS DE HOJE
Maria Elisa Maia

Departamento de Química e Bioquímica - Faculdade de Ciências de Lisboa
Centro Interdisciplinar de Ciência Tecnologia e Sociedade
da Universidade de Lisboa

Numa época que privilegia a rapidez e a eficiência, em que a pressa preside a um quotidiano em que não há tempo sequer para viver, parece um contra-senso falar de alquimia e da sua lenta procura da pedra filosofal, sem resultados práticos reconhecidos, mas sem desistir da paciente pesquisa, numa tentativa incessante de aperfeiçoamento da matéria que trabalha e, ao mesmo tempo, do próprio indivíduo. A alquimia não pode classificar-se como ciência pois não obedece a critérios de rigor estabelecidos pela comunidade científica, nem se conforma com metodologias aceites. Não é também apenas arte nem técnica, embora tenha contribuído decisivamente para o desenvolvimento das técnicas, em particular da química preparativa e de análise química qualitativa. Partilha com a metafísica a procura do conhecimento, não só da natureza, como do próprio indivíduo que a pratica, numa busca do absoluto do Universo, numa procura da globalidade do Ser. Tal como as actuais disciplinas possui um código altamente simbólico só acessível a iniciados, mas ao contrário delas, a simbologia é voluntariamente cheia de mistério, pelo que a sua descodificação é extraordinariamente difícil devido às ambiguidades de interpretação que surgem constantemente.

A alquimia parece assim ser uma expressão do passado, sem qualquer relação com a actualidade, apenas com interesse para alguns (bem poucos) historiadores ou estudiosos da evolução do pensamento da humanidade. No entanto, talvez haja motivos para abordar no ensino actual, embora de forma simplificada, dada a enorme complexidade do assunto, o estudo do pensamento alquímico. A influência que teve no desenvolvimento das ciências, em particular da química, e as marcas que deixou na cultura, marcas na linguagem e em algumas estruturas conceptuais, que ainda hoje perduram, são razões suficientes para que não deva ser posto de lado

As origens da alquimia são obscuras, tal como as do próprio nome a que se atribuem etimologias várias. As incertezas são múltiplas. Faltam documentos em que basear a sua história e principalmente faltam investigadores – historiadores e linguistas que têm além disso que saber química. Muitos arquivos e bibliotecas são de difícil acesso, no Próximo e Médio Oriente, Índia e China. Mesmo quando são mais acessíveis, na Europa, não é fácil arranjar financiamento para projectos de estudo nesta área, em relação à qual, a par de um certo fascínio, existe uma profunda desconfiança por parte da comunidade científica, que a conota com charlatanismo e magia.

Entre as diversas heranças que deram corpo à alquimia são fundamentais as concepções gregas da constituição do mundo e da matéria, em particular a teoria de Aristóteles dos quatro elementos, que serviram de quadro teórico geral onde se foram inserindo muitas outras influências, ao longo do tempo e em espaços geográficos por onde alastraram impérios. A ciência grega espalhou-se para Oriente, desenvolveu-se em contextos diferentes, mantendo alguma unidade devido à língua comum culta, sendo conhecidas, muito para alem da Grécia, as grandes obras de ciência e filosofia gregas. No entanto, para Ocidente, o conhecimento científico declinou mesmo antes do fim do Império Romano, pois, com a diminuição do poder central e a migração das populações para os campos, fecharam as escolas e foi-se perdendo o domínio do grego. A instrução das populações rurais praticamente desapareceu, quase não havendo elites intelectuais, e a ciência passou a um nível muito rudimentar. Ficaram apenas algumas obras que foram sendo copiadas e recopiadas em mosteiros.

A situação foi muito diferente a Oriente onde o Império Romano se manteve cerca de mil anos mais. O grego era a língua oficial sendo conhecido pelos sábios, embora se falassem também outras línguas cultas como o siríaco. As escolas mantiveram-se e existia actividade científica, em geral não muito original, baseada principalmente em comentários e compilações, nomeadamente em Constantinopla, Atenas, Antióquia e Alexandria.

Alexandria foi certamente um local privilegiado de encontro de culturas pois que as conquistas de Alexandre estabeleceram laços entre o mundo ocidental e o Oriente. Assim, poderá ter sido nessa cidade-encruzilhada que as teorias Aristotélicas se confrontaram com práticas milenares chinesas, indianas, egípcias e mesopotâmicas, originando-se daí uma tradição que se chama actualmente alquimia.

No século VII deu-se uma profunda transformação geopolítica que alterou o equilíbrio de forças vigente: a expansão extremamente rápida dos árabes, povo até então praticamente sem importância estratégica. Começando em 632 o Islão unificou a península arábica, em seguida tomou Damasco, Jerusalém, o império persa, a Mesopotâmia, a Arménia, o Iraque, o Irão, o Egipto, modificando a ordem estabelecida e impondo uma nova religião. Depois de um tempo de pausa expandiu-se também para Oeste, até à Península Ibérica e a Leste avançou até às fronteiras da Índia. O Império Romano do Oriente, muito mais enfraquecido, manteve-se no entanto ainda durante muito tempo.

A conquista de diversos pontos chave da actividade cultural e científica deu aos árabes acesso às mais importantes bibliotecas do mundo greco-romano em que existiam os principais textos gregos, também correntemente traduzidos em siríaco e outras línguas como o hebreu. O estabelecimento da língua árabe como língua de cultura e administrativa que unificou todo o Islão, levou a que as diversas obras passassem a ser traduzidas em árabe, muitas vezes indirectamente, passando pelo siríaco, elo fundamental nesta cadeia de traduções e transferências. A introdução em Bagdad, capital do império, do papel produzido segundo tecnologia chinesa, favoreceu a edição e difusão de livros, até então escritos em papiro, mais frágil ou pergaminho, mais dispendioso. Mas os árabes não se limitaram a ser tradutores. Uma política de mecenato científico, introduzida pelos governantes de diversos níveis, promoveu também o desenvolvimento de uma ciência, designada habitualmente por ciência árabe, dado ser o árabe a língua de comunicação, o traço de união entre os que a praticaram, que, para além de traduzir e copiar, também adaptava, criava novos termos e inovava. Esta política de mecenato, permitindo criar uma cultura científica de nível equivalente à de outras civilizações, de que também é herdeira, mas com a sua própria originalidade, procurava, para alem do mais, desenvolver e dar poder ao Islão.

De entre as ciências árabes destacam-se a matemática, a astronomia e a medicina e a que nos interessa aqui particularmente, a alquimia. A tradição alquímica árabe parece ter evoluído a partir da alquimia praticada em Alexandria, verdadeiro cadinho de mistura de práticas orientais, técnicas e mágicas, e das teorias gregas sobre constituição da matéria. Apropriando-se desses saberes, os árabes construíram a sua alquimia, acreditando na transmutação dos elementos, mas não se alheando da vida quotidiana, procurando aplicações na medicina, na metalurgia, na fabricação de tintas e em muitos outros produtos com utilidade prática. Inventaram técnicas de separação e purificação e produziram equipamentos ainda hoje usados em laboratórios de química. Não quer isto dizer, como é óbvio, que os árabes utilizavam laboratórios semelhantes aos actuais, nem que a alquimia seja uma química rudimentar. O quadro conceptual em que a alquimia se inscreve é profundamente diferente do da química, não sendo fácil de entender actualmente. As maiores dificuldade não provêm talvez do facto de as teorias envolvidas nos serem estranhas, mas sim da forma obscura como estão escritas e representadas simbolicamente, e ainda das sucessivas alterações e adulterações introduzidas por tradutores e copistas.

A alquimia árabe teve cultores notáveis conhecidos no Ocidente por nomes diferentes dos seus nomes originais. De entre eles devem ser destacados Jabir ibn Hayan (Geber) , Ibn Sina (Avicena) e al-Razi (Razhès) autores de diversos textos de alquimia e medicina, dos quais vários chegaram até nós e que influenciaram de forma decisiva a evolução alquimia bem como da medicina e farmácia europeias.

Enquanto a ciência árabe florescia, a Europa Ocidental continuava num denso marasmo cultural e o seu desenvolvimento, que ainda tardou, recorreu ao saber importado do Oriente. Curiosamente essa importação veio por uma porta ocidental, pois que foi a Espanha a principal via de penetração da influência árabe. Através de traduções de textos árabes, feitos umas vezes por moçarabes outras por judeus, a partir do século X, mas principalmente nos séculos XII e XIII, a ciência árabe penetrou lentamente na Europa, acompanhada por uma verdadeira massa de textos gregos ou traduzidos do grego ou do latim. Assim, os árabes serviram de intermediários, em todas as disciplinas científicas, entre a ciência grega que conservaram e traduziram, mas também que transformaram, modificaram e melhoraram a partir dos seus próprios recursos culturais.

A alquimia inicialmente praticada por monges em mosteiros, quase únicos pólos culturais na Europa medieval, espalhou-se mais tarde para as cortes onde floresceu aliada ao poder, ou perseguida por um poder que a temia por não a entender ou dominar. Ao longo desse período em que se desenvolveu sofreu também muitas transformações não tanto no seu enquadramento teórico, mas principalmente na forma como era praticada. Além dos seus cultores autênticos, místicos e sonhadores, apareceram inúmeros praticantes, a quem o domínio de técnicas e materiais misteriosos aos olhos dos leigos, conferia uma aura de fascínio e de poder que lhes permitia defraudar quem neles ingenuamente acreditava. O uso sistemático do fogo, os enormes foles necessários para o manter aceso e bem vivo no forno (o atanor), os alambiques e retortas, os balões com líquidos coloridos e borbulhantes, os fumos e odores estranhos e agressivos, tornavam os laboratórios, locais de trabalho dos alquimistas, quase inacessíveis aos profanos pelo receio que infundiam.

Aos alquimistas são atribuídas ligações a poderes ocultos e mágicos para o bem e para o mal, domínio sobre a vida e a morte. O mistério que os rodeia favorece a conotação de charlatanismo que se estabelece, sendo muito difícil de distinguir actualmente, a tantos séculos de distância, as práticas autênticas de busca alquímica de verdade e perfeição, as tentações de domínio do poder e a procura de lucros materiais, entre outras formas, pela apregoada fabricação de ouro por transmutação de vis metais, como o chumbo.

A partir dos conhecimentos que através do mundo árabe foram sendo introduzidos na Europa, inicialmente apenas traduzidos, copiados e recopiados, mas posteriormente também adaptados e transformados, num percurso geograficamente quase oposto mas com analogias evidentes com o anterior, a ciência europeia foi tomando corpo, num processo de racionalização e autonomização progressivo, em particular no que se refere à astronomia e à física.

Em relação à alquimia, o caso é mais complexo. Conceptualmente, por um lado, existe nela uma ideia de unicidade de sentido contrário à disciplinaridade nascente, e por outro, uma tendência mística que se contrapõe à racionalização. O percurso que leva da alquimia à química é lento e pouco claro. A química não pode considerar-se herdeira directa da alquimia pois existem grandes diferenças nas suas estruturas conceptuais e é difícil estabelecer marcos divisórios.

A primeira definição de elemento químico como resultado último da análise química, apresentada de forma ainda incipiente por Boyle, poderia ser considerada como um destes marcos, mas em muitos outros aspectos não é ainda possível considerar uma ruptura com a alquimia.

A estrutura conceptual da alquimia está ainda bem presente, se bem que já algo modificada, na teoria de Stahl, conhecida por teoria do flogisto, princípio do fogo, responsável das combustões, que ao libertar-se produziria luz e calor. A teoria de Stahl é porém mais abrangente, constituindo o primeiro sistema químico adoptado em toda a Europa, que permite integrar dois fenómenos aparentemente muito diferentes que são as combustões e as calcinações de metais, bem como explicar diversos fenómenos como a formação de sais, por combinação de terra e água, que se unem por afinidade com os seus semelhantes. O enorme sucesso da teoria de Stahl, que granjeou inúmeros e muito conceituados adeptos, levou a que, em pleno século XVIII, a antiga concepção dos quatro elementos, princípios constituintes universais da matéria, portadores de qualidades, fosse ainda actual como base essencial para interpretar transformações e propriedades químicas.

As descobertas da química dos gases – o oxigénio por Priestley e Scheele, o hidrogénio por Cavendish e a decomposição do ar em ar flogisticado (azoto) e ar desflogisticado (oxigénio) – contribuem para reforçar a teoria, considerando que o hidrogénio seria o próprio flogisto, visto arder sem produtos visíveis.

Mesmo os trabalhos iniciais de Lavoisier, habitualmente considerado como o iniciador da química como ciência, se inscrevem na química dos princípios, que interpreta de outra forma, usando a ideia de um princípio ácido – o oxigénio (gerador de ácidos). Reforça assim a ideia de um ácido universal – o ácido pingue. Só mais tarde ataca a fundo a teoria do flogisto, apresentando uma nova teoria para combustões e calcinações e uma moderna definição de elemento, na linha de Boyle. A sua tabela de elementos químicos já apresenta os que são considerados substâncias não decomponíveis por análise química. No entanto, nesta tabela ainda aparecem como elementos a luz e o calórico.

Os adeptos da teoria do flogisto não se renderam de imediato às ideias de Lavoisier, e mesmo alguns químicos eminentes como Priestley e Cavendish, nunca abdicaram das suas ideias, mantendo-se numa posição irredutível. Para a construção da nova química foi fundamental a introdução de uma nova nomenclatura racional, que tenta romper com o passado. No entanto, apesar da ruptura não ser total, as ideias de Lavoisier e a nova nomenclatura prevaleceram e foram a base de uma verdadeira revolução química.

Com o passar dos anos a ciência química ganhou os seus contornos de ciência experimental e construiu as suas bases teóricas modernas. Porém, vagos traços da alquimia, talvez gravados tão fundo na memória da humanidade que se tornaram indeléveis, ressurgem aqui e ali, de forma mais ou menos explícita. Aparecem na linguagem corrente, podendo mesmo admitir-se que a sua persistência venha a ter influência nas aprendizagens de química de alguns alunos, nomeadamente nos primeiros anos de ensino formal da disciplina.

Nas últimas décadas verificou-se uma tendência crescente em centrar o ensino nos alunos. De um ensino totalmente baseado em aulas magistrais ministradas por professores que quase se podia dizer ignoravam a presença dos alunos, passou-se gradualmente para aulas mais activas. A preocupação com o sucesso (ou insucesso) escolar levou a que começassem a ser investigadas as razões das dificuldades de ensino/aprendizagem de diversos tópicos constantes dos currículos, em particular nas áreas de ciências. Em muitos estudos levados a cabo com alunos de diferentes graus de ensino, mas principalmente para a faixa etária dos 14-18 anos, vários investigadores vieram a concluir que, de entre as razões possíveis de dificuldades para que os alunos aprendam os conceitos e teorias actualmente aceites pela comunidade científica, uma das fundamentais seria a existência de quadros conceptuais anteriores a um ensino formal, nos quais as concepções que se pretendem ensinar se não "encaixam".

De acordo com as modernas teorias de aprendizagem, teorias de raiz construtivista, ao longo da vida vamos construindo os nossos próprios conhecimentos, mesmo antes de qualquer exposição a um ensino formal, através das nossas experiências e pela organização de quadros conceptuais que nos permitam dar explicações dos fenómenos que observamos. Segundo alguns modelos de construtivismo, nesses quadros há ainda a inclusão de conhecimentos de senso comum e de outros de origem social veiculados pela linguagem do dia a dia e também pelas diversas formas de comunicação social. Estes quadros conceptuais designados na literatura da especialidade por quadros (conceptuais) alternativos (em inglês alternative frameworks) ou simplesmente concepções alternativas, ou preconcepções, ou ainda mais um certo número de outras designções dependentes dos autores, criariam como que barreiras, impedimentos conceptuais à aprendizagem dos conceitos e teorias que se pretende ensinar.

Inicialmente quase só desenvolvidos na área da física, os trabalhos de investigação sobre concepções alternativas depressa se estenderam a outras áreas, incluindo a química, e tornaram-se verdadeiramente moda, havendo inúmeras publicações de qualidade variável, em diferentes línguas, mas principalmente inglês, de investigações levadas a cabo com amostras mais ou menos alargadas de populações mais ou menos diversificadas. Há também investigações cruzadas, comparando culturas ou sexos. Muitos dos estudos limitam-se a fazer levantamento das concepções alternativas apresentadas por alunos, quase que tentando fazer uma espécie de enciclopédia, outros apoiam-se em quadros teóricos parcialmente diferentes ou propõem estratégias para o que chamam mudança conceptual, ou seja substituição das concepções alternativas pelas bona fide.


A química não é excepção, havendo também muitos estudos destes vários tipos sobre concepções alternativas relacionadas com diversos tópicos. É de notar que nem sempre as alegadas concepções alternativas merecem essa designação se nos basearmos num construtivismo mais radical, pois que podem radicar-se preferencialmente em aprendizagens mal construídas num ensino formal anterior. Por outras palavras, estas concepções construídas numa aprendizagem formal deficiente, em vez de alternativas deveriam considerar-se erróneas (assim chamadas de preferência a concepções erradas e tentando traduzir a designação inglesa misconceptions). As fronteiras entre estes diferentes tipos de concepções não são bem definidas pois se, por exemplo, parece absurdo considerar que há concepções alternativas em relação às equações da mecânica quântica, já é discutível qual a proveniência de dificuldades de aprendizagem do equilíbrio químico. Assim, diversos autores optam por não fazer distinções e referem-se sempre a concepções erróneas, todas as que por uma razão ou outra se não conformam com as que são actualmente aceites pela comunidade científica.

Os estudos feitos na área da química têm procurado identificar estas concepções relativamente a diferentes tópicos e por vezes propor estratégias de remediação, mas raramente se têm preocupado com investigar as razões profundas da sua existência e persistência.

Ao fazer, porém, uma análise sistemática de concepções erróneas de alunos reveladas em estudos sobre tópicos como reacção química, combustão, natureza da matéria, conservação da massa e reacções ácido-base e redox, parece poderem detectar-se traços de quadros conceptuais anteriores aos do ensino formal e que se podem interpretar no quadro geral simplificado da alquimia.

Alguns exemplos ajudarão a esclarecer esta afirmação, embora de momento se trate apenas de apontar pistas para um trabalho de investigação mais alargado e sobretudo mais em profundidade a realizar com alunos a partir do início da sua aprendizagem de química, ou mesmo de ciências. Assim, numa transformação química, os produtos podem aparecer como que libertando-se dos reagentes ou por transmutação, as reacções químicas podem ser vistas como uma espécie de luta, o que é muito referido nas reacções ácido-base, em que parece haver um reagente principal, como que um princípio masculino, que é o ácido, forte, que ataca e corrói e um reagente secundário, a base, passiva, assimilável a um princípio feminino. Esta reacção é uma neutralização, resultando por isso daí uma solução neutra. Nas combustões o oxigénio ou o ar não são importantes, são secundários ou nem sequer são considerados intervenientes, há libertação de luz e calor (ainda o flogisto?) e há diminuição de peso dos reagentes. Mais ainda, o princípio da conservação da massa, mesmo quando conhecido, parece não se aplicar a sistemas em que intervenham gases. A não conservação da massa e a aceitação, no quadro da química "vulgar", da possibilidade de transmutação dos elementos, a par com a dificuldade de compreensão dos conceitos de substância, elemento, composto e mistura, traduzem-se na dificuldade de compreender o que são reacções químicas, e de escrever e acertar equações químicas, conhecimentos básicos, sem os quais não se pode construir o edifício da química.

Outros exemplos, descritos na literatura, de concepções dos alunos encontradas por vários investigadores, poderiam aqui ser apresentados. Mas estes já ilustram o que se pretendia focar – a resistência de alguns (muitos?) alunos em aceitarem o quadro conceptual da química moderna, preferindo um quadro pré científico que em determinados aspectos parece ter influências da alquimia poderá estar na origem de algumas das dificuldades de aprendizagem desta disciplina.

O conhecimento, por parte dos professores, das concepções erróneas dos alunos, não consideradas simplesmente más ou não aprendizagens do que lhes "foi ensinado correctamente nas aulas, mas eles não entenderam ou não estudaram" e mais ainda das razões dessas concepções pode auxiliar os professores a desenvolver estratégias diferentes para abordar o ensino de tópicos de que à partida conhecem as dificuldades inerentes. Advoga-se assim o estudo da história e filosofia das ciências como parte integrante de uma boa formação de professores, quer inicial quer em serviço. No caso da química a história da alquimia incluindo obviamente o estudo dos seus quadros conceptuais e a sua evolução, não devem ser esquecidos, nem simplesmente remetidos a um pequeno capítulo de curiosidades, como acontece a maior parte das vezes em livros de texto. Fala-se por vezes da teoria do flogisto, como de algo quase ridículo, mostrando que se atribuía ao flogisto um peso negativo que resultava da necessidade de explicar a diminuição de peso verificada nas combustões, e apresenta-se Lavoisier, como "pai da química" que com a sua balança destruiu mitos e conceitos confusos e não científicos. Quanto à alquimia acentua-se o seu carácter mágico, não científico nos termos actuais e focam-se aspectos de uma prática considerada menos ética e mesmo de charlatanismo. As referências à alquimia são assim quase sempre com conotação negativa, fazendo-se muito raramente, ou mesmo nunca, ressaltar a sua enorme influência cultural que durou muito mais de um milénio e que foi praticada por cientistas tão notáveis como Isaac Newton, para só citar um dos nomes maiores de toda a história das ciências.

É fundamental atribuir à alquimia o seu lugar justo na história do pensamento humano, fazendo uma análise do seu percurso e influências. É indispensável tentar levar mais longe o estudo dos seus textos, o que não é fácil. Mas, talvez ainda mais importante, é olhar para a alquimia de uma forma desapaixonada, olhar para os objectivos que se propunha e contrapô-los aos das ciências actuais, ver o que foi alcançado e como isso influiu nos percurso da humanidade, e ver o que nos deixou como herança material e cultural.

Alguns dos objectivos da alquimia foram alcançados, outros sob novos aspectos continuam a ser actuais. Hoje é possível fabricar ouro a partir de outros metais – é uma mera questão técnica, sem qualquer interesse prático, pois que o processo é mais dispendioso que o da sua extracção das minas. Mas a transmutação de outros elementos tem enorme interesse por exemplo em medicina e na produção de combustível para centrais nucleares ou para outros fins menos nobres. E a procura do elixir da longa vida não continua na ordem do dia? Não pretende a medicina prolongar a vida humana, e os grandes mitos da moda não se baseiam no prolongamento da juventude através de cosméticos que retardam o envelhecimento ou a sua aparência? São grandes sonhos da humanidade que encontraram expressão na alquimia e que perduram para alem dela.

Num outro plano, de há alguns anos para cá, começou a considerar-se que os grandes problemas da humanidade têm dimensões globais, não só na sua extensão como na interpenetração das suas diferentes vertentes. Qualquer tentativa de resolução tem que ter em conta estes dois aspectos – a escala global, ao considerar o nosso mundo, e mesmo o universo como um todo, e a imprescindível colaboração interdisciplinar entre as mais variadas áreas do conhecimento para se poder ter uma visão alargada dos problemas com vista a possíveis soluções. As diferentes ciências isoladamente não conseguem dar resposta, havendo necessidade de trabalho de equipa, mas a partilha de saberes para a construção de uma verdadeira interdisciplinaridade não é um caminho fácil. O percurso, não tendo propriamente o sentido oposto, é inverso do que correspondeu nos últimos séculos e principalmente nas últimas décadas à separação das ciências, e à ultra especialização que caracteriza os nossos tempos, e encontra fortes resistências intelectuais conscientes ou subconscientes. A discussão está longe de ter terminado, quase só começou ainda a busca de possíveis vias. Um exemplo de um dos mais agudos problemas com que a humanidade se defronta neste momento é o da poluição generalizada do nosso planeta. É necessário mudar as mentalidades, considerar que é um problema, ou melhor, conjunto de problemas, que afecta o mundo inteiro e que só uma abordagem holística, tanto do ponto de vista disciplinar, como do territorial, integrando também aspectos económicos e sociais, pode contribuir para reverter situações que se espera não sejam ainda irreversíveis. Terá que considerar-se, como em velhos escritos alqimicos que o todo é o uno e o uno é o todo.


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