Agostinho da Silva, um pensador lusófono

ADELTO GONÇALVES*


Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira – volume I, de Agostinho da Silva, com introdução de Paulo Alexandre Esteves Borges. Lisboa: Âncora Editora, 1ª edição, 350 páginas, 2000, 19,50 euros. E-mail: ancora.editora@ancora.editora.pt  Site: www.ancora-editora.pt


I

O filósofo, poeta e ensaísta Agostinho da Silva (1906-1994) sempre teve múltiplos interesses, mas concentrou-se em áreas como literatura portuguesa e brasileira e as questões portuguesas, deixando obras, artigos e ensaios que o colocam hoje como um dos maiores – senão, o maior – pensadores luso-brasileiros do século XX. Em Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira, volume I (Lisboa, Editora Âncora, 2000), que te m merecido reedições, o leitor encontrará textos pedagógicos e filosóficos, especialmente aqueles que apareceram a partir da década de 1950, embora possam ser encontrados alguns de décadas anteriores, mas que são suficientes para dar uma ideia geral do pensamento agostiniano.

Um dos textos que se destaca entre os 28 artigos, prefácios de livros e ensaios aqui reunidos é aquele que carrega o título “Ensaio para uma teoria do Brasil”, publicado originalmente na revista Espiral, nºs. 11-12, de 1966, em que o autor diz que “a grande base do retardamento do Brasil como civilização nova vai estar no ciclo do açúcar e, mais que tudo, no ciclo do ouro, que provoca o quase despovoamento de Portugal em homens, fixa no Brasil uma tão elevada percentagem de europeus que o equilíbrio anterior se rompe e se perde aquele hibridismo de cultura que se apresentava como tão promissor”.

Para Agostinho da Silva, a partir daqui, “o indígena passa a ser uma minoria que se elimina rapidamente e a lei de Pombal, banindo o uso do tupi, é o ponto culminante do drama brasileiro, que consiste essencialmente em ver-se arrastada pelas correntes de um mundo europeu, que lhe é estranho, a nação que estava ensaiando um teor de vida inteiramente novo”. Dessa maneira, passou o Brasil a ser o que Portugal foi a partir do século XV, “um país ocupado pelo estrangeiro, quer a ocupação se faça com o direito romano, a arquitetura renascentista ou a poesia do tipo italiano, quer se processe com instituições da Contra-Reforma, a política de linha ma quiavélica e, mais diretamente, as tropas de ordenação austríaca trazidas pelo duque de Alba”.

Segundo o pensador português, “a melancolia portuguesa que nitidamente se estabelece nesta altura, embora haja, e devido a outras ocupações, raízes anteriores, passa ao Brasil, ocupado também por uma característica de vivência que de nenhum modo correspondia aos seus anelos íntimos e às suas mais profundas disposições”.

II

Pois é essa melancolia que se faz cada vez mais intensa neste Brasil do início do século XXI, em que o País parece destinado a um futuro pouco promissor, de violência urbana desenfreada, sem políticos confiáveis que possam conduzir a Nação. O resultado disso é uma diáspora que pode repetir o fenômeno do século XVIII ao inverso, com os brasileiros seguindo cada vez em maior número para Portugal, em busca de uma vida mais tranquila, a ponto de hoje a outrora pacífica vila de Cascais estar a ponto de virar um bairro carioca. Até quando o pequenino Portugal vai aguentar essa “invasão” é que não se sabe.

Nesse ensaio, Agostinho da Silva alertava ainda para a necessidade que o Brasil tinha de oferecer uma educação de massas, mas, como se vê, o alerta caiu no vazio. Hoje, a carreira de professor não atrai mais os jovens porque deixou de ser uma profissão digna, constituindo apenas um “bico”, ou seja, uma atividade-extra para reforçar o orçamento doméstico. E, como o professor está pouco capacitado para ensinar, aquele que aprende a ler (quase sempre apenas para ver o que aparece no visor do aparelho celular ou telemóvel), geralmente, mal entende o que lê porque, como dizia o pensador, não lhes cultivaram o hábito de “joeirar criticamente o que l&e circ;”.

Em outras palavras: sem educação de massas, enquanto as elites digladiam-se na rinha para arrombar os cofres públicos, para o resto da população sobra apenas o caos social, até porque a tecnologia – especialmente, a informatização – está reduzindo drasticamente os empregos e, por consequência, eliminando os consumidores do mercado interno. Ou seja, o que se afigura hoje para o Brasil é um futuro sombrio, de desregramento social, bem diferente daquele que Agostinho da Silva gostaria que fosse.

III

Nascido no Porto, George Agostinho Baptista da Silva, depois de concluído o ensino secundário, fez o curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade do Porto de 1925 a 1928, diplomando-se doutor em Filologia Clássica em 1929, com apenas 23 anos de idade.  Naquele mesmo ano, publicou a sua tese de doutoramento e a obra Breve Ensaio sobre Pérsio, além de lecionar no Liceu Alexandre Herculano. Depois, partiu para Lisboa onde fez estágio na Escola Normal Superior (1930-1931).

Obteve bolsa para estudar História e Literatura na Sorbonne e no Collège de France (1931-1933). Em 1932, fundou em Lisboa o Centro de Estudos Filológicos da Universidade Clássica e passou a atuar também no Liceu José Estêvão, em Aveiro. Porém, em 1935, ao tempo do regime salazarista (1933-1974), foi demitido da função pública por ter se recusado a assinar declaração de repúdio ao comunismo. Ganhou bolsa para estudar em Madri, mas deixou a Espanha devido à aproximação da guerra civil (1936-1939).  De regresso a Lisboa, voltou a ensinar, desta vez no setor privado, no Colégio Infante Sagres.

Em julho de 1943, foi preso pela polícia política do regime salazarista, a Pide, e ficou na cadeia do Aljube, permanecendo incomunicável durante 18 dias. Depois de libertado, foi-lhe imposta pena de residência fixa que cumpriu em Portimão. Em 1944, partiu com a mulher e um casal de filhos para o exílio, na América Latina. Em 1945, foi para o Uruguai, onde lecionou História e Filosofia em escolas de Montevidéu.

Em 1946, já na Argentina, organizou cursos de Pedagogia Moderna para a Escola de Estudos Superiores de Buenos Aires. Em 1947, fixou-se definitivamente no Brasil, onde viveu até 1969 com a sua segunda mulher, a professora Judith Cortesão (1914-2007), filha do historiador Jaime Cortesão (1884-1960), da qual teve seis filhos.

Entre 1948 e 1952, fixou-se no Rio de Janeiro, onde trabalhou no Instituto de Biologia Oswaldo Cruz, dedicando-se à investigação nas áreas de Zoologia, Entomologia e Parasitologia, além de ter lecionado Filosofia da Educação na Faculdade Fluminense de Filosofia. Associou-se a outros exilados portugueses, entre os quais se destacava Jaime Cortesão, com quem colaborou num estudo da obra de Alexandre de Gusmão (1658-1753).

Em 1952, mudou-se para João Pessoa a fim de ajudar a fundar a Universidade Federal da Paraíba, onde deu aulas de História Antiga e Geografia Física até 1955. Em 1959, juntou-se ao professor Eduardo Lourenço na Universidade da Bahia, onde ensinou Filosofia do Teatro e pôs em marcha o projeto de conhecimento da África Negra pelo Brasil, tendo fundado o Centro de Estudos Afro-Orientais.

Em 1961, foi nomeado assessor para a política externa do presidente Jânio Quadros (1917-1992). Em 1962, com Darcy Ribeiro (1922-1997), dedicou-se ao projeto da fundação da Universidade de Brasília e criou o Centro de Estudos Portugueses naquela instituição. Em 1963, com bolsa da Unesco, viajou para o Japão, onde deu aulas de Português. Conheceu ainda Macau e Timor e visitou os Estados Unidos e o Senegal.

Só regressou a Portugal após a morte de António de Oliveira Salazar (1889-1970). Depois do 25 de Abril de 1974, passou a lecionar em diversas universidades portuguesas, tendo dirigido o Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Técnica de Lisboa e desempenhado funções de consultor do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, atual Instituto Camões.

Na década de 70, o governo brasileiro o aposentou do ensino. Mais tarde, ele dirigiu o Centro de Estudos Latino-Americanos. Tempos depois, o governo português restituiu-lhe os salários retroativos aos anos da ditadura salazarista. Despreocupado com a questão financeira, viajou, escreveu, recebeu medalhas e títulos, além de ter concedido muitas entrevistas a órgãos de imprensa. Faleceu em 1994, em Lisboa, aos 88 anos. Pouco antes de falecer, havia sido homenageado pelo embaixador do Brasil em Lisboa, José Aparecido de Oliveira (1929-2007).

É ainda autor de A vida de Pasteur (Seara Nova, 1938), Sanderson e a escola de Oundle (Inquérito, 1941), Moisés e outras páginas bíblicas (1945), Um Fernando Pessoa (Agir, 1958), Um Fernando Pessoa e Antologia de Releitura (Guimarães, 1959), Quadras inéditas (Ulmeiro, 1990), Do Agostinho e m Torno do Pessoa (póstumo, 1997) e Uns poemas de Agostinho (póstumo, 1997), entre outros.


(*) Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.