Aglaia Souza: poesia que resgata o sentido da vida

 

 

 

 

 

 

ADELTO GONÇALVES


Adelto Gonçalves é mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), e O Reino a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


Novo livro da poeta de Brasília denota influência
de José Régio e Fernando Pessoa

 

I

Desde o seu primeiro livro, Gota de barro (São Paulo, Poeco Editora, 1982), nunca faltaram a Aglaia Souza (1943) leitores encantados e admirados com a simplicidade e a beleza de sua poesia. E, mais de 40 anos depois, ainda é esse mesmo sentimento de admiração com o seu discurso poético que essa musicista, professora e diretora de escola de música desperta, ao publicar Canto marinho (Brasília, Observatório do Texto, 2022), novo livro em que exercita sua arte, exibindo uma poesia de caráter marcadamente musical, como assinalou o poeta Anderson Braga Horta no prefácio que escreveu para esta obra.

Além disso, a autora deixa explícita a influência que recebeu de poetas portugueses consagrados, especialmente de José Régio (1901-1969), a quem o grande ensaísta, professor filósofo luso Eduardo Lourenço (1923-2020) definiu como “o último dos grandes solitários”. É o que se vê no poema que dá título ao livro no qual evoca também a fadista Amália Rodrigues (1920-1999):

José Régio, que sabe / de caminhos, nos diz: / “o marinheiro, estando triste, / cantava”. / O fado, a soluçar / na Mouraria, canta: “o marinheiro, estando triste, / cantava”. /Amália, a chorar, / hoje eu te digo: tristes, cantamos, / tu, eu e o marinheiro.

Uma influência que vem também de Fernando Pessoa (1888-1935), a quem evoca no poema “Máscaras” e cuja sombra é visível em quase toda a sua obra:

Pessoa diz que o poeta / é um fingidor, chega / a fingir que é dor / a dor que deveras sente. / Ao contrário, eu digo: / o ator finge alegria / escondendo a dor / sob um sorriso. / Qual palhaço, que / coloca o riso na cara, / sua máscara,/  para esconder a dor. / A lua só mostra / o lado claro, / ocultando o breu / na escuridão do caos.

II   

Dividida em nove blocos, a obra trata de temas universais sob uma visão essencialmente feminina, o que não quer dizer sempre suavidade, como alerta Braga Horta, destacando a “garra e vigor” nos versos de uma poeta que descrevem “uma psicologia erótica masculina/feminina em confronto”.  Em outras palavras: em seu fazer poético, a presença da autora é discreta, mas não deixa de ser observadora e até implacável, como se verifica neste poema que tem por título “Fora da roda” em que as palavras se tornam uma meditação sobre a inevitabilidade da vida terrena:

Velhice é isso: os jovens dentro, / os velhos fora – / fora da roda. / Ninguém te chama / para dentro da roda. / O velho é estorvo, / fica de fora – / fora da roda. / O tempo passa / para toda a gente. / Se hoje são jovens, / amanhã estarão fora – / fora da roda.

O mesmo sentimento perpassa outro poema, “Coisas”, em que o olhar pungente da poeta recupera o sentido da vida que constata em cada pequeno objeto que traz em si a lembrança de um tempo que se foi e que, ao mesmo tempo, assinala a passagem dos anos rumo ao inevitável desenlace final:

Coisas. / Por que amar as coisas? / Não é apego! / É porque são / um pedaço de mim. / Sim, elas têm vida, / de mim roubada. / Cada uma conta / a minha história. / São lembranças / que levo pela vida / a dizer-me / quem fui, quem sou. / Coisas. Elas falam, / dizem coisas do passado, / dão testemunho / do presenciado. / Estou rodeada delas, / são companhia / no meu envelhecer. / Tornam-me viva, / fazem-me jovem / por trazerem / um pedaço de mim. / Quando se vão, / levam um pouco / da minha história, / vão contando o que sou / falam do que fui, / da alegria que viram brilhar / em meus olhos meninos.

Como observa a poeta, professora e tradutora Kori Bolívia, nascida em La Paz e radicada em Brasília desde 1976, no texto de apresentação que escreveu para este livro, as peças poéticas de Aglaia Souza soam como confissões, constituindo “um processo de fuga da vida vivida da protagonista, uma vida forte da qual consegue sobreviver, tendo a esperança no equilíbrio que a ajuda a não cair”.

Entre os vários poemas que exemplificam o que a escritora boliviana observou, está “Prisão” em que a poeta consegue tirar lirismo de um período que se tornou trágico na vida de tanta gente que perdeu para a doença muitos entes queridos, à época da pandemia de coronavírus (covid-19), que durou de 2000 a 2002:

Sou duas vezes prisioneira: / da casa e do corpo. / Se a quarentena me isola, / me impede de sair, / o corpo me aprisiona. / Sim, sou ainda jovem / dentro deste corpo / que envelhece a cada dia. / Qual um fruto, vai murchando, / secando a cada momento, / até o dia em que / a semente há de estourar / e sair em busca de novas / paragens onde florir.

O sentido agudo da solidão humana que se acentuou na vida de todos àquela altura está também reproduzido com todas as letras neste poema intitulado “Degraus”:

Esta quarentena me envelhece. / Cada dia sem o sol / é um ano no escuro. / Cada lágrima derramada / é um dilúvio. / Cada palavra trocada / é abraço não dado. / Cada vez que o sangue sobe / é um número oco. / Cada foto revisitada / é saudade que pesa. / Cada gole deste fel / amarga a vida. / Cada fruto maduro / se esborracha no chão. / Cada gota de flores / preenche o vazio. / Cada aperto de mão / é virtual, simbólico. / Cada chamada de vídeo / é tristeza exibida. / Cada receita ou série / engana as dores. / Cada irmão que se vai / me leva cem anos. / Cada degrau destes dias / me leva ao fim.

Como se vê, embora seja extremamente pessoal, a poesia de Aglaia Souza é anti-individualista, pois reproduz com afeto o sentimento que está no fundo da alma de cada um.

III

Nascida no Rio de Janeiro, Aglaia Souza estudou música ainda quando menina. Ao se transferir para o Planalto Central já adulta, tornou-se professora de piano da Escola de Música de Brasília, tendo se desenvolvido também nas artes de declamação e da representação teatral. Ingressou na Associação Nacional de Escritores (ANE), em Brasília, onde também desenvolveu trabalho administrativo. Pertence à Academia de Letras do Brasil (ALB), exercendo a função de diretora de divulgação. É uma das fundadoras da Academia Taguatinguense de Letras. Também trabalha como revisora de textos.

Dona de vasta obra publicada, é ainda letrista e parceira de músicos como Avena de Castro, Cayê Milfont, Carlos Bivar, Flávio Fonseca e outros. Entre os prêmios literários que conquistou, está o primeiro lugar no 1º Concurso de Contos Luiz Beltrão, patrocinado pela ANE, com o livro O anjo da morte (Fundo da Arte e da Cultura, da Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Verano Editora, 2003).

Participou de numerosas coletâneas, como Água I (São Paulo, Editora Scortecci, 1982); Ofício do agora (Brasília, Editora Thesaurus, 1985); Caliandra – poesia em Brasília (Brasília, André Quicé Editor, 1995); Sociedade dos poetas vivos: mulher, vol. VIII (Rio de Janeiro, Editora Blocos, 1995); Antologia de haicais brasileiros, organizada por Napoleão Valadares (Brasília, André Quicé Editor, 2003); Antologia do conto brasiliense, organizada por  Ronaldo Cagiano (Brasília, Projecto Editorial, 2004); Poesia de Brasília, organizada por Joanyr de Oliveira (Brasília, Editora Planetário, 1998); Todas as gerações – o conto brasiliense contemporâneo, organizada por Ronaldo Cagiano (Brasília, Editora LGE, 2006); Geografia poética do Distrito Federal, organizada por Ronaldo Mousinho (Brasília, Editora Thesaurus, 2007); e Pensamentos da Literatura Brasileira (Brasília, André Quicé Editor, Brasília, 2002). Organizou a antologia Cronistas de Brasília, volumes I e II (Brasília, Editora Thesaurus, 1995-1996).

É autora também de Artesã, poesia (Brasília, Editora Thesaurus, 1989); Vida fêmea, contos (Brasília, Editora Thesaurus, 1991; Murmúrio, poesia (Brasília, Editora Thesaurus, 1993); Rondó ao mar, prosoema, narrativa em prosa rítmica (Brasília, Editora Regional, 1996); Canção tagoriana – poemas e orações (Rio de Janeiro, F.V. Lorenz, 2000); Moto-contínuo, crônicas (Brasília, Verano Editora, 2007), e Cantaria (Brasília, Verano Editora, 2010), entre outros. Alguns de seus livros podem ser encontrados no formato digital (e-books).

 

Canto marinho, de Aglaia Souza
Prefácio de Anderson Braga Horta e texto de apresentação de Kori Bolívia.
Brasília, Editora Observatório do Texto,

154 páginas, 2022.

E-mail: aglaiasouza@gmail.com
Site da editora: observatoriodotexto@gmail.com