LIVROS COM MÚSICA
Programa de Maria Estela Guedes com realização de Sara Sousa
Guião para Rádio Transforma . 18 de Setembro de 2022
1 – Balada do estudante – 3:03
2 – SARA – ADRIANO CORREIA DE OLIVEIRA, VOZ DO NÃO EM PORTUGAL – programa de Maria Estela Guedes com realização de Sara Sousa
3 – Adriano Correia de Oliveira – Fado da Sé Velha – 2:45
2 – ESTELA – adriano_01 – áudio – 1 minuto mais ou menos
Adriano Correia de Oliveira nasceu em 1942 e morreu em 1982, bem jovem. Ele é um dos cantores mais diretamente conectados com o 25 de Abril, a revolução portuguesa ocorrida em 1974 que acabou com a ditadura vigente e instaurou a democracia.
De modos vários Adriano representa essa linhagem, e não apenas quando canta as baladas de poetas manifestamente apoiantes e até membros de partidos de esquerda, caso de Manuel Alegre ou Manuel da Fonseca. Na qualidade de intérprete do fado de Coimbra, em aparência não politizado, ele enverga a tradicional capa e batina de uma juventude que por diversas vezes se manifestou contra regimes opressivos e se dotou inclusivamente de um Batalhão Académico. Uma das instituições que mais lutou contra a monarquia, em defesa da República, sinónimo quase de Democracia, foi a Maçonaria Académica. Desde pelo menos a Universidade Reformada, no século XVIII, preparatório das independências americanas, que a Universidade de Coimbra gerou manifestantes opositores de regimes opressivos. Então o fado de Coimbra não pode ser visto apenas como veículo da manifestação amorosa, com as típicas serenatas à amada.
3 – Adriano Correia de Oliveira – “Minha mãe” do disco “Fados de Coimbra II” (EP 1962) – 3:10
4 – Adriano Correia de Oliveira – “Fado da Mentira” do disco “Noite de Coimbra” (EP 1960) – 3:30
5 – Estela – adriano_02 – áudio – 2 ‘ mais ou menos
As canções de Adriano Correia de Oliveira mais politizadas, que o inserem na categoria de cantor de intervenção, têm letra de importantes escritores, caso de Manuel da Fonseca, um dos mais representativos poetas e ficcionistas do neorrealismo, autor de numerosas obras, entre elas o livro de contos “O fogo e as cinzas” e romances como “Cerromaior” e “Seara de vento”.
Urbano Tavares Rodrigues, outro escritor cantado por Adriano Correia de Oliveira, filia-se no mesmo espírito estético, tomando rumos próprios no correr da vida e da carreira; Urbano é sobretudo ensaísta literário e romancista. Dos seus numerosos títulos citemos apenas Uma pedrada no charco, Bastardos do Sol e As máscaras finais.
Manuel Alegre, nosso contemporâneo, é um poeta luxuriante, de grande fôlego, cujas tendências só na política se aproximam dos anteriores.
E temos ainda, como suporte literário da música de Adriano, um poeta muito singular, em cuja obra se notam centelhas da sua atividade no setor das ciências. E é precisamente em espírito de laboratório que se desenvolve o mais famoso dos seus poemas, anti-fascista pelo seu repúdio do racismo, “Lágrima de preta”.
Manuel da Fonseca foi membro do Partido Comunista, Urbano Tavares Rodrigues desenvolveu combate tão aguerrido ao fascismo que participou na tentativa de tomada do Quartel de Beja, e Manuel Alegre pertence às fileiras do Partido Socialista. Todos têm o peso da luta e suas consequências no currículo, pois era implacável a censura e a perseguição da PIDE, nome da polícia secreta de então. Comecemos por ouvir a canção “Tejo que levas nas águas”, de Manuel da Fonseca.
6 – Adriano Correia de Oliveira – “Tejo que levas as águas” do disco “Que Nunca Mais” (LP 1975): 3:44
7 – SARA – Poemas para Adriano é um conjunto de nove poemas de Manuel Fonseca escritos de propósito para o álbum “Que nunca mais”, de Adriano Correia de Oliveira. Foi lançado em 1975. Em resultado, o músico foi eleito o Artista do Ano, pela revista inglesa Music Week.
É de Manuel da Fonseca o poema da canção anterior, que agora repetimos como leitura.
8 – SARA —
Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar
Lava-a de crimes espantos
De roubos fomes terror
Lava a cidade de quantos
Do ódio fingem amor
Lava bancos e empresas
Dos comedores de dinheiro
Que dos salários de tristeza
Arrecadam lucro inteiro
Lava palácios vivendas
Casebres bairros da lata
Leva negócios e rendas
Que a uns farta e a outros mata
Leva nas águas as grades
De aço e silêncio forjadas
Deixa soltar-se a verdade
Das bocas amordaçadas
Lava avenidas de vícios
Vielas de amores venais
Lava albergues e hospícios
Cadeias e hospitais
Afoga empenhos favores
Vãs glórias, ocas palmas
Leva o poder dos senhores
Que compram corpos e almas
Das camas de amor comprado
Desata abraços de lodo
Rostos corpos destroçados
Lava-os com sal e iodo
Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar.
9 – Adriano Correia de Oliveira – “Lágrima de preta” do disco “Cantaremos” (LP 1970) – 1:30
10 – ESTELA – áudio_03 – 2:10’ mais ou menos – Ouvimos Adriano Correia de Oliveira cantar o poema “Lágrima de preta”, de António Gedeão, um manifesto anti-racista expresso na análise da lágrima em laboratório. O resultado garante que as lágrimas são compostas por água e sal, independentemente de quem as chore. Conclusão: somos todos iguais.
O poema da canção seguinte, “Fala do homem nascido”, do disco “Cantaremos“, é igualmente de António Gedeão. É um grito de vida e pela vida, tão curta que não há tempo a perder. Grito também de vitória antecipada, pois nada há capaz de vencer o poder da vida, sendo ela a natureza. Escreve o poeta:
Venho da terra assombrada
Do ventre da minha mãe.
Não pretendo roubar nada
Nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
Por me trazerem aqui.
Que eu nem sequer fui ouvido
No acto de que nasci.
Trago boca pra comer
E olhos pra desejar.
Tenho pressa de viver
Que a vida é água a correr.
Tenho pressa de viver
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo
Não tenho tempo a perder.
Minha barca aparelhada
Solta o pano rumo ao Norte.
Meu desejo é passaporte
Para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
Nem marés que não convenham.
Nem forças que me molestem
Correntes que me detenham.
Quero eu e a natureza
Que a natureza sou eu.
E as forças da natureza
Nunca ninguém as venceu.
Com licença! Com licença!
Que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença
Mesmo morto hei-de passar.
Não há poder que me vença
Mesmo morto hei-de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.
11– “Fala do homem nascido”. Poema de António Gedeão – 3:45
12 – SARA
Prosseguimos com “Margem Sul”, canção sobre poema de Urbano Tavares Rodrigues. Pertence ao disco “Rosa de Sangue”, editado em 1968. Tem por tema o Alentejo, terra de gente muito pobre, explorada no seu trabalho pelos ricos latifundiários. Outra terrível exploração do povo português foi a guerra colonial, que Adriano também denunciou pelo canto.
11 – Adriano Correia de Oliveira – “Margem Sul – 2:27
Poema de Urbano Tavares Rodrigues
12 – SARA
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
o vento nada me diz.
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
13 – ESTELA – áudio_04 –
Com poemas de Manuel Alegre, ouviremos agora Adriano Correia de Oliveira cantar a “Canção com lágrimas” e a “Trova do Vento que Passa”, das mais familiares da esquerda em tempos de combate ao fascismo. Aludem ambas à falta de notícias de Portugal em tempos de emigração, exílio e guerra colonial, à desgraça dos excluídos pela política opressiva, mas também à esperança de que tudo mude, como afinal mudou. A esperança é uma luz na noite escura a mostrar que a resistência vale a pena, que vale a pena dizer não ao regime que prendia, torturava e cortava a palavra aos artistas e intelectuais. O poeta regressará a Lisboa um dia, e se não for em Maio há de ser em Abril. Ambos esperam o regresso à pátria, pátria e exilado. São poemas muito belos, de resistência, paciência, sofrimento em solidão e dependência, quantas vezes!, da generosidade de outros para sobreviver.
Estes temas – exílio, emigração, guerra colonial – feriam profundamente o regime colonialista. Eram as suas chagas abertas. Temas também de um livro famoso, as Novas Cartas Portuguesas, das Três Marias, cuja primeira edição, em Lisboa, foi apreendida pela Polícia. Graças a Simone de Beauvoir, Marguerite Duras e outros famosos escritores, depressa o romance foi traduzido e publicado em França. É um dos grandes marcos da luta contra a ditadura, tal como as canções de intervenção.
14 – “Trova do vento que passa” – 3:31
Poema de Manuel Alegre
15 – “Canção com Lágrimas” – 3:45
Poema de Manuel Alegre
SARA – Nem a emigração era drama exclusivamente português, nem Adriano Correia de Oliveira cantou só poetas portugueses. Por isso, vamos ouvi-lo agora no “Cantar da emigração”, com poema de Rosalía de Castro, a bem conhecida escritora da Galiza.
16 – Cantar de Emigração – 2:50
Poema de Rosalía de Castro
17 – ESTELA – adriano_05 – áudio – 3:00’ mais ou menos
A par de fados de Coimbra, baladas e canções de intervenção, Adriano Correia de Oliveira também cantou músicas populares ou que popularizaram textos bem eruditos. É o caso da “Cantiga partindo-se”, de João Roiz de Castel-Branco, coligida no Cancioneiro Geral por Garcia de Resende. Este cancioneiro reúne poemas dispersos dos séculos XV e XVI. A “Cantiga partindo-se”, sendo popular em sentido genérico, até por tantos a terem glosado, musicado e cantado, é muito erudita, aliás o Cancioneiro Geral reúne a poesia palaciana da época, e escusado será dizer que palaciano diz respeito a palácios, o contrário da morada da gente do povo. É um poema complexo e por isso pouco popular. Em primeiro lugar, pelo registo de língua portuguesa da época renascentista; depois, pela complexidade das figuras literárias. Porém, trata-se de uma cantiga que se popularizou na voz de cantores populares, como Amália e Adriano Correia de Oliveira. É um poema de amor, de despedida de um enamorado, e por isso de saudade. Entretanto, reparemos em como o homem se desfaz em lágrimas, o que será no futuro mais próprio do romantismo, lágrimas que a moral doméstica prefere que saiam dos olhos das mulheres. Nos homens, reza essa moral felizmente ultrapassada, que são sinal de fraqueza. Os homens não choram, dizia-se. Mas sim, os homens choram e podem chorar, já demos conta disso ao longo deste programa.
Lerei o poema primeiro, deixando o ouvinte depois com esse tema e “Rosinha”, uma cantiga verdadeiramente popular .
De João Roiz de Castel-Branco, a “Cantiga, partindo-se”
Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
partem tão tristes os tristes,
tão fora de esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
18 – Adriano Correia de Oliveira – “Rosinha” do disco “Cantigas Portuguesas” (LP 1980) – 1:59