Acromia da lágrima

 

DAVID  BENE


There is nothing to writing. All you do is sit down
at a typewriter and 
bleed. – Ernest Hemingway

A rua. Perto da escola. Continua morta. Deve ser, disse o Dr. Gonçalves, amnésia psicogénica. Apagou-me como se eu tivesse morrido contigo. É bem possível que ela esteja certa. Essas mãos que te escrevem não são feitas de carne e sangue. São de arame farpado. Lavam-me a cara com antissépticos. Ainda acho que teria tudo graça se eu tivesse adormecido no teu lugar. Guiguí teria uma sombra por abraçar. As tuas mãos não existem. Os teus dedos idem. Os teus ossos estão presos numa argila vermelha que não conheço. Ouço-te quando vou à cama e escrevo-te quando dela saio. A minha janela está sempre aberta, Philomela. Talvez seja por isso que acho que isso teria mais graça se fosses tu a escrever. Não tenho talento para isso. A minha vocação está na inexistência. No silêncio. No não fazer nada. Sou muito bom em morrer. Morri ontem contigo. Se acordei hoje é para morrer de novo. Com elegância. Aqui, neste papel branco. Que não te conhece pelo nome.


DAVID  AUGUSTO BENE (Moçambique, Manica, 1993). Começa muito jovem a escrever os primeiros textos, por influência do pai. Colabora com diversos jornais e revistas literárias em Moçambique, Brasil, Portugal, Galiza e Japão. É autor de Akeldama e Campos de Imiscibilidade (ambos no prelo).

Bene é doutorando em Engenharia de Recursos Naturais na Universidade de Kyushu. Reside actualmente no Japão.


DÉCIMO ENCONTRO TRIPLOV