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ACÁCIO BARRADAS
 
«A Tribuna»: uma cilada político-financeira
 

Último órgão onde José Craveirinha fez jornalismo efectivo, embora mantendo a qualidade de funcionário público como revisor na Imprensa Nacional (ambivalência que nessa época era bastante comum e não apenas em Moçambique), «A Tribuna» foi criada em Lourenço Marques pelo jornalista João Reis, que embora figurasse no cabeçalho como editor era o verdadeiro proprietário do periódico.

Não cabe aqui fazer o historial deste matutino, que só por si justificaria um longo trabalho de investigação, eventualmente a efectuar noutra oportunidade. De momento, referiremos apenas que «A Tribuna», cuja publicação se iniciou em 7 de Outubro de 1962, teve desde início uma vida financeiramente atribulada. Os gastos com a instalação e o equipamento, agravados com o pagamento de alguns salários sem produtividade durante o período excessivo em que se arrastaram as diligências para a concessão do alvará, esgotaram praticamente as reservas financeiras do fundador. E como, após a publicação do jornal, os recursos da venda ao público e da publicidade não chegavam para cobrir os encargos fixos, a derrapagem foi inevitável.

As dificuldades atingiram de forma drástica muitos trabalhadores, entre eles o próprio chefe de Redacção, Gouvêa Lemos, poeta de mérito e um dos grandes jornalistas de Moçambique, mas que, conforme nos disse Adrião Rodrigues, «passava fome para ter a espinha direita». Não tendo outra saída senão demitir-se, valeu-lhe na emergência - segundo Eugénio Lisboa -, o facto de o célebre eng.º Jorge Jardim, cuja personalidade ambígua dava azo a estas surpresas, ter feito «vista grossa» à sua reconhecida hostilidade ao regime colonial-fascista, dando-lhe emprego no jornal que então controlava, o «Notícias da Beira». Mais tarde, Gouvêa Lemos abandonaria Moçambique com destino ao Brasil.

O quadro de colaboradores permanentes do jornal era então um verdadeiro luxo, dele fazendo parte, entre outros, os poetas Rui Knopfli e Rui Nogar, além dos já referidos Eugénio Lisboa e Adrião Rodrigues, este último especialmente encarregado de comentar a política internacional. Todos se empenharam no projecto de alma e coração, «apenas por amor à causa e sem nunca receberem um chavo», afirma Eugénio Lisboa.

Por isso, diz ele, «a desilusão foi enorme», sentindo-se «ludibriados» quando souberam que o proprietário tinha vendido «A Tribuna» ao Banco Nacional Ultramarino (BNU).

As coisas, porém, não foram tão lineares, conforme nos foi dado apurar. De facto, as cartas que João Reis nesse tempo dirigiu ao advogado Eurico Ferreira, seu amigo residente em Lisboa, demonstram inequivocamente que ele tudo fez para não perder o controlo do jornal. Essas cartas foram interceptadas e copiadas pela PIDE, em cujos arquivos, depositados na Torre do Tombo, tivemos agora oportunidade de as consultar.

De acordo com a sua leitura concluímos, em síntese, que o aumento de capital efectuado pelo BNU conferia a João Reis uma posição minoritária (apenas um terço das acções), mas sob promessa de que manteria as prerrogativas anteriores e que, durante dois anos, o Banco se abstinha de transacionar os dois terços de acções de que dispunha, por forma a dar-lhe preferência na aquisição.

A verdade é que tais promessas não passaram de um «31 de boca». Entre o prometido e o sucedido interpôs-se o intuito político de silenciar uma voz que, ao pretender-se independente, não agradava à classe dirigente. E não deixa de ser curioso que o mesmo governador-geral, almirante Sarmento Rodrigues, que em 4 de Agosto de 1962 deferira a autorização para o lançamento d'«A Tribuna», 18 meses depois evidenciasse satisfação em vê-la mudar de rumo, como se prova por esta informação da PIDE datada de 31 de Janeiro de 1964:

«O Banco Nacional Ultramarino tem presentemente a posição chave deste jornal na mão, podendo considerar-se para já sua propriedade. Sua Excelência o Governador-Geral disse há dias a determinados funcionários superiores directamente interessados em problemas africanos que, dada esta presente posição do banco, poderá o Governo contar com o apoio político-jornalístico da "Tribuna".»

Como se vê, houve uma cilada político-financeira para retirar todo o poder a João Reis, aproveitando para o efeito as grandes dificuldades económicas em que se dabatia e ludibriando a sua boa fé. O certo, porém, é que muitos dos que o acompanharam nesta aventura sentiram-se igualmente ludibriados ao serem surpreendidos com o desfecho do caso.

 
Polémica dá origem a demissão compulsiva
 

Apanhado no turbilhão que constituiu esta mudança editorial, José Craveirinha ficou desenquadrado e desprotegido, envolvendo-se numa polémica que ditaria a sua sorte. O caso foi contado, de forma bastante esclarecedora, na já referida correspondência de João Reis para o seu amigo Eurico Ferreira, pelo que achamos preferível dar-lhe a palavra. Em carta de 11 de Março de 1964, escrevia ele:

«O público perdeu a confiança no jornal. Os melhores elementos, entre os quais um José Craveirinha, grande poeta e grande jornalista, de quem já lhe falei, afastaram-se ou foram obrigados a afastar-se.»

E depois de algumas derivações sobre outros problemas relacionados com «A Tribuna», João Reis retomava o assunto:

«Um parêntesis para dizer alguma coisa sobre a demissão praticamente compulsiva do José Craveirinha. Há meses, um poeta local, de tendências e filiações nacionalistas, Nuno Bermudes (neto, julgo eu, do poeta Félix Bermudes), funcionário do Ultramarino, foi convidado a ir ao Brasil por conta duma dessas organizações semi-oficiosas portuguesas ali radicadas. Foi e disse para lá umas barbaridades sobre diversos assuntos, entre os quais o famigerado colonialismo, etc.

«O Craveirinha fez um artigo, aliás excelente, em que punha o Bermudes em face de várias contradições, não só de atitudes anteriores, como nas mesmas palestras feitas no Brasil. O elemento reaccionário ficou de sobreaviso, porque embora ele fosse muito esperto para o não mencionar, a verdade é que ficaram à mostra várias implicâncias de ordem política, o que alarmou os chamados poderes.

«O Bermudes, semanas mais tarde, vem à estacada defender a sua dama e os seus dizeres, atacando a pessoa (mulato) do Craveirinha pela sua raça, etc. Este responde, aliás magistralmente, e a publicação do artigo seria definitiva. A Censura leva o artigo ao Governador, que não se atreve - em presença do Craveirinha, a quem mandou chamar para discutir e levá-lo a modificar o que escreveu (sem o conseguir) - a não autorizar. Consente na sua publicação. Mas o Craveirinha a virar costas e o Governador a chamar primeiro o director do Banco [João Raposo de Magalhães] e depois o director do jornal [dr. Frederico Mittermeyer Madureira], para lhes deitar responsabilidades se o artigo fosse publicado. (...)

«O director do Jornal, que aliás não gostava nem gosta do Craveirinha (como é que poderia gostar!) e recebia inúmeras sugestões para o eliminar, inclusivamente do presidente da União Nacional, Gonçalo Mesquitela, que pertence a organizações comerciais e industriais de que o dr. Madureira é advogado) manda-lhe uma carta proibindo-o terminantemente de publicar tal artigo, e aduzindo considerações de ordem política perfeitamente identificadas, aliás, com a sua posição e a dos seus amigos e correligionários. Mas a carta não tem categoria, embora seja um documento precioso...

«Coarctado assim no direito, que eu nunca lhe negara, de escrever, o Craveirinha apagou-se, passou a ser um burocrata no Jornal, como de resto deveria e parecia convir ao director (...) e seus mentores. Semanas mais tarde voltou a escrever, mas desta vez sobre o tiro aos pombos, na secção desportiva, reprovando tal prática - artigo, aliás, sem a menor sombra de insinuação política.

«Foi, porém, o bastante. Foi igualmente proibido de continuar a escrever e, não contentes com isso, acusaram-no de pouco interesse pelo jornal e falta de colaboração escrita. Levaram-no assim a demitir-se (o que ele estava a evitar fazer, a meu pedido, e no interesse do próprio jornal).

«Este episódio» - conclui João Reis - «deve ser como um iceberg: dele se viu e conheceu apenas a parte de cima, a que fica à superfície, e, mesmo assim, o que se viu dele foi bastante pouco digno.»

 
A dificuldade de ser profeta na própria terra
 

Na sequência da sua demissão d'«A Tribuna», José Craveirinha terminaria a actividade como jornalista, gorada que foi a hipótese de obter uma bolsa de estudo para frequentar em Paris a Escola Superior de Jornalismo, até porque não tinha habilitações académicas para tal. A ideia fora-lhe apresentada pela correspondente d'«A Tribuna» em Paris, Carmen Gonzalez, que lhe escreveu na sequência de diligências realizadas na capital francesa, durante as férias, pelo poeta Rui Nogar, o qual, a pedido de Craveirinha, efectuara contactos exploratórios junto do poeta Gualter Soares e do escritor Castro Soromenho, com vista à sua eventual deslocação para a Europa.

Entretanto, continuou a colaborar literariamente noutras publicações, designadamente no semanário «Voz de Moçambique», cuja secção cultural era particularmente viva graças ao contributo de personalidades como Eugénio Lisboa, Rui Knopfli e outros.

Segundo declarações que nos prestou Adrião Rodrigues, este semanário era propriedade da Associação dos Naturais de Moçambique (maioritariamente brancos), da mesma forma que a Associação Africana, proprietária de «O Brado Africano», era maioritariamente constituída por mestiços. Daí que o «O Brado Africano» fosse pejorativamente referido como «jornaleco de mistos», dando origem a que esta designação chegasse a ser analisada num dos seus editoriais, servindo-lhe de título. Havia ainda a Associação de Negros, cuja caracterização racial o próprio nome indica. Ou seja: uma tríade associativa perfeitamente talhada segundo o típico figurino do «apartheid».

Ainda segundo Adrião Rodrigues - cuja permanência em Moçambique se prolongou até 1979, chegando a ser vice-governador do Banco Central -, com o encerramento da Associação dos Negros e a decadência da Associação Africana, à qual foi imposta uma comissão administrativa nomeada pelo Governo, a Associação dos Naturais passou a ser o respaldo das demais, visto dispor ainda de «alguma liberdade».

Isso reflectia-se no jornal «A Voz de Moçambique», em grande parte graças ao eng.º Homero da Costa Branco, que era simultaneamente presidente da Associação e director do jornal. Adrião Rodrigues refere-o como «um tipo fabuloso, que embora escrevesse raramente no jornal, sacrificou-lhe tudo, empenhando-se na defesa da sua independência, bem como na da Associação dos Naturais, a ponto de perder o emprego.»

Como se vê, José Craveirinha seria um, entre muitos, que em Moçambique seriam imolados na fogueira da liberdade de expressão. Mas no seu caso com a agravante de, após a independência por que lutou com as armas da palavra - e que a justiça político-militar da era colonial castigou com quatro anos de prisão -, só muito tarde ter visto o seu valor oficialmente reconhecido na Pátria que ajudou a fundar.

Mas isso é outra história.

 
Fontes
 

Além das fontes citadas no texto, cumpre referir que, nos arquivos da PIDE/DGS existentes na Torre do Tombo, os processos consultados referentes a José Craveirinha e instituições ou publicações com ele relacionadas, foram os seguintes:

. Proc.º 5501- CI (2) NT 7396
Proc.º 3429 NT 7266 Fundo SC, Série CI (2)
Proc.º 2668/54 NT 2752 Grupo AC, Fundo SC, Série SR
Proc.º 1361 NT 1220 Grupo AC, Fundo SC, Série CI (1)
Proc.º 7935-SR NP 5241

Quanto aos periódicos referidos no texto, a sua consulta verificou-se na secção de microfilme da Biblioteca Nacional («O Brado Africano» e «Voz de Moçambique») e na Hemeroteca Municipal («O Oriente», «Notícias», «Notícias da Tarde» e «A Tribuna», neste último caso com grandes lacunas)