Ainda n' «O Brado Africano», mas já fora do âmbito desportivo, José Craveirinha - que continuaria a colaborar nesse jornal, mesmo quando passou a trabalhar noutras redacções - , fez publicar os seus primeiros poemas (um dos quais, «Tambor», se tornou bandeira de revolta e grito de emancipação), vários contos (alguns deles editados pela Caminho no livro «Hamina e outros contos»), além de muitas crónicas e artigos que, no seu conjunto, equivalem a uma declaração de princípios de inabalável coerência.
Como traves-mestras desses princípios, distinguem-se os valores da negritude a cujo movimento aderiu, bem como ao emergente nacionalismo africano, sem menosprezo dos méritos que reconhecia a certos aspectos do Portugal europeu e, em especial, à Língua Portuguesa.
Ao manifestar a sua identificação com os princípios da negritude, José Craveirinha publicaria n'«O Brado Africano», em 6 de Novembro de 1954, um artigo esclarecedor intitulado «Consciência de raça». Nele, começava por dizer: «Em Moçambique, a não ser a consagrada Noémia de Sousa, nada temos que se possa classificar de forma literária de expressão genuinamente negro-afro-portuguesa. Porquê?»
E em resposta à sua própria pergunta, afirmava que Noémia de Sousa (por coincidência falecida em Portugal, onde era jornalista da agência Lusa, poucos meses antes de José Craveirinha) só deixaria de ser excepção «quando o homem de cor intelectualmente preparado não desdenhar acintosamente o influxo de correntes culturais de origem africana».
Nesse sentido, advogava não a prevalência dos valores africanos sobre os europeus, mas a sua coabitação sem preconceitos. Nas suas próprias palavras, «trata-se muito simplesmente de não abdicar de uma cultura indígena, nem renegar uma corrente europeia».
E para ser mais explícito, acentuava: «Deste princípio surgiu o grito do poeta Senghor, do Senegal: "Porque não unir as nossas duas claridades, a fim de suprimir todas as sombras?"»
Esta posição de Craveirinha - que se ajustava aliás à sua própria origem, fruto do amor de «um belo algarvio bem moçambicano» por uma «tombasana [isto é, rapariga] de pés descalços») -, era tudo menos radical, na medida em que se limitava a repudiar o desprezo dos africanos pela sua própria cultura, exortando-os a descobri-la e revalorizá-la, sem qualquer hostilidade à cultura europeia, salvo nos aspectos em que esta pretendia impor a sua hegemonia.
No entanto, para a mentalidade reaccionária que pontificava entre a maioria da população branca e até de boa parte da população mestiça, tal propósito era inadmissível. E, paradoxalmente, manifestavam o seu racismo intolerante acusando os defensores da negritude, como José Craveirinha, de serem... racistas.
Por isso não será de admirar que os incómodos de José Craveirinha com as autoridades policiais, cujos antecedentes remontam a 1946 (quando, aos 24 anos, foi enviado pela primeira vez a tribunal, por injúrias e ofensas corporais), tenham sido substancialmente agravados a partir do momento em que começou a escrever na Imprensa.
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Se, em 1949, durante a campanha eleitoral para a Presidência da República Portuguesa, foi preso uma semana por militar no MUD Juvenil de Moçambique e fazer propaganda do candidato da oposição, general Norton de Matos; e se, em 1952, voltou a ser preso por «emigração clandestina» para a África do Sul, a partir do momento em que as suas ideias ganharam letra de forma tornou-se alvo privilegiado da vigilância policial.
A sua correspondência (quer recebida, quer expedida) passou a ser rigorosamente vigiada, mesmo antes da instalação da polícia política nas chamadas «províncias ultramarinas». Assim, logo em 1952, o Comando da Polícia Civil de Moçambique enviava para a Direcção-Geral da PIDE, em Lisboa, uma cópia da carta que Noémia de Sousa escrevera a José Craveirinha, dando-lhe conta das suas leituras e contactos em Portugal, para onde entretanto se deslocara.
Outras cartas posteriormente recebidas, entre elas do amigo e futuro quadro da Frelimo, Marcelino dos Santos, foram igualmente interceptadas pela polícia, que assim estava a par dos convites irrecusáveis (mas obrigatoriamente recusados) que o poeta de Moçambique recebia frequentemente para participar em eventos internacionais, como o 2.º Congresso de Escritores e Artistas Negros (1958) e o 1.º Festival Internacional de Artes Negras (1960).
Entretanto, Craveirinha estava permanentemente sob suspeita, mesmo que eventualmente pudesse ser inocente. Uma prova disso verificou-se em 1961, quando o jornal «Daily Nation», de Nairobi, publicou, em 10 e 11 de Julho, dois artigos de um «correspondente especial» de Moçambique, não identificado.
Segundo um ofício enviado ao Ministério do Ultramar pelos Serviços de Coordenação e Centralização de Informações de Moçambique (que transcreviam uma informação da PIDE de Lourenço Marques), as razões da suspeita decorriam do facto de Craveirinha, «em tempos, ter abordado um colaborador desta Delegação para que lhe traduzisse os seus escritos, que se destinavam a um jornal do Quénia.» Todavia, acrescenta, «não chegou a utilizar os serviços desse indivíduo, por o mesmo ter sido transferido para a Beira.»
Como se vê, Craveirinha, sem o saber, tinha-se metido na toca do lobo, pois solicitara os serviços de um tradutor que, afinal, estava ao serviço da polícia política! E apenas o facto de tal tradutor ter sido transferido evitou que a PIDE soubesse realmente o teor do trabalho que Craveirinha desejava enviar para um jornal do Quénia.
Assim, embora nada o pudesse provar, ninguém o livrou da suspeita de ter sido ele o «correspondente especial» que redigira os artigos publicados no «Daily Nation» de Nairobi, artigos esses obviamente críticos em relação à política portuguesa em Moçambique.
Agora, que Craveirinha morreu, é tarde para lhe pedir que esclareça o mistério. |