BENTO DOMINGUES, O.P.
Escusam de continuar com as ameaças de cisma.
Não o desejo, mas não me assusta e rezo para que não aconteça.
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O acontecimento mais importante, na liderança da Igreja Católica, nos últimos tempos, não pode passar despercebido ou dissolvido no ruído dos noticiários acerca do Vaticano.
O Papa Francisco, ao regressar da última viagem apostólica a vários países africanos (Moçambique, Madagáscar e Ilhas Maurícias), não se limitou a responder às perguntas e curiosidades dos jornalistas, de forma aberta e desinibida, como sempre faz. Desta vez, foi muito mais longe. Decidiu colocar um ponto final na chantagem que se arrastava, dentro e fora do mundo católico, desde o começo do seu pontificado: a ameaça de um Cisma.
Para quem conhece alguma coisa da história do cristianismo, não pode ignorar os efeitos terríveis que essa palavra evoca, efeitos que ainda hoje persistem, apesar de todas as iniciativas ecuménicas.
Dada a desenvoltura com que se pronunciou, terá Bergoglio esquecido as catástrofes dessa “bomba atómica” no tecido da Igreja? Essa ameaça não deveria aconselhar o Papa a ter mais cuidado com o que diz e faz e, sobretudo, com o modo provocador como fala e actua? Não saberá que está sempre a pisar terreno armadilhado?
Neste caso, essas perguntas não conseguem esconder uma solene hipocrisia. Dito de outro modo: o Papa Francisco para não causar um cisma na Igreja deve renunciar a cumprir o programa do seu pontificado, tornar-se prisioneiro do medo, asfixiar a liberdade de expressão e concordar que o Vaticano continue num regime de monarquia absoluta!
Teria de anular tudo o que fez e desistir do futuro: da reforma da Cúria; do combate ao clericalismo e ao carreirismo eclesiástico; da denúncia da economia que mata e da religião que manda matar; do acolhimento das vítimas da guerra e dos que fogem da miséria; deixar de ver o mundo a partir dos excluídos e marginalizados; de aceitar que haja cidadãos de primeira e de segunda; de incitar a Igreja a deslocar-se para as periferias; da revisão do papel dos colégios e das universidades católicas; das alterações nas práticas teológicas para que recusem o papel de ideologia da dominação económica, política e religiosa; da encíclica Laudato Si sobre a ecologia integral; da irradicação da pedofilia no seio das instituições eclesiásticas e seus responsáveis; das conclusões do Sínodo sobre a Família reunidas no documento polémico Amoris Laetitia; de incentivar o debate sobre os ministérios das mulheres na Igreja; de renegar o caminho sinodal como reclamam os opositores vaticanistas à opção dos Bispos alemães; da convocatória para o estudo de alternativas económicas; dos passos gigantescos nos caminhos do ecumenismo e do diálogo inter-religioso; de nunca procurar nas suas deslocações pelo mundo poder para a Igreja católica, mas que se torne exemplo desinteressado para os mais pobres, etc. etc..
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Acontece, porém, que longe de renunciar ao programa do seu pontificado, de bloquear em si e nos outros a criatividade, alarga-a e estimula-a cada vez mais.
A 15 de Outubro de 2017, abriu uma nova frente de inquietações e trabalhos, cujas consequências vão muito para além dos seus previsíveis anos de vida.
O melhor é dar-lhe a palavra: «Acolhendo o desejo de algumas Conferências Episcopais da América Latina, assim como ouvindo a voz de muitos pastores e fiéis de várias partes do mundo, decidi convocar uma Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a região Pan-amazónica. O Sínodo será em Roma, em Outubro de 2019. O objectivo principal, desta convocatória, é identificar novos caminhos para a evangelização daquela porção do Povo de Deus, especialmente dos indígenas, frequentemente esquecidos e sem perspectivas de um futuro sereno, e por causa da crise da Floresta Amazónica, pulmão de capital importância para o nosso planeta. Que os novos Santos intercedam por este evento eclesial para que, no respeito da beleza da Criação, todos os povos da terra louvem a Deus, Senhor do universo, e por Ele iluminados, percorram os caminhos da justiça e de paz».
A 17 de Junho deste ano, foi publicado o documento de trabalho, Amazónia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral[i].
O Papa reunirá, no Vaticano, entre os dias 6 e 27 de Outubro, bispos dos nove países que abrangem a região Pan-amazónica.
Desde a corajosa convocatória em Outubro de 2017, tudo se agravou. De Janeiro a Setembro deste ano, já foram contabilizados 106.141 focos de incêndios florestais na Amazónia. De um assunto que alguns teimavam em considerar puramente regional transformou-se numa questão global.
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Estamos todos na mesma Casa Comum. Como diz o teólogo brasileiro L. Boff, voltamos do exílio, depois de milhões de anos, e agora estamos todos juntos no mesmo lugar, no planeta Terra. Esta não pertence a ninguém em particular. É um bem comum de toda a humanidade e de toda a comunidade de vida (animais, árvores, microorganismos, etc.). Amazónia é parte da Terra. L. Boff insiste: O Brasil não é senhor da Amazónia. Possui apenas a gestão dessa parte que administra mal e de forma irresponsável.
As causas da redução da área natural da Amazónia são múltiplas e essencialmente económico-sociais. Há grandes interesses ligados ao agro-negócio, à criação da soja, à produção da carne de vaca, à indústria madeireira e não só. Segundo a investigação do Ministério Público brasileiro, algumas destas forças organizaram-se para promover um horrendo “dia de fogo” em Agosto passado[ii].
No próximo dia 22 de Setembro, no âmbito da quinta edição do Átrio de Francisco, serão projectadas, na fachada da basílica superior de S. Francisco de Assis, as imagens do novo projecto fotográfico de Sebastião Salgado, sobre essa vasta região da América do Sul que tem estado no epicentro das notícias devido à acelerada desflorestação.
Voltemos à questão do começo. O Papa Francisco não deseja abafar as críticas que lhe fazem. Ajudam-no sempre e não vêm apenas dos americanos, vêm da própria Cúria! “Não gosto quando surgem de debaixo da mesa e te fazem sorrisos a mostrar os dentes e, depois, espetam-te a faca nas costas. Isso não é leal, nem humano. Disso não gosto!” Escusam de continuar com as ameaças de cisma. Não o desejo, mas não me assusta e rezo para que não aconteça.
Basta de chantagens!
in Público, 22.09.2019
https://www.publico.pt/2019/09/22/sociedade/opiniao/acabar-chantagem-1887348
O Público lembrou outro artigo:
[i] Vaticano, Instrumentum laboris, Amazónia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral. O Papa veta políticos com mandato entre os convidados do referido Sínodo.
[ii] Cf. Viriato Soromenho-Marques, Sete teses sobre a Amazónia, in Jornal de Letras de 11 a 24 de Setembro de 2019; ver a entrevista de Leonardo Boff, O futuro da humanidade e da terra está ligado ao futuro da Amazónia http://www.ihu.unisinos.br/
FREI BENTO