Frei BENTO DOMINGUES, O.P.
- O Papa Francisco fez 10 anos de pontificado. Que esta data tenha sido celebrada em muitas comunidades da Igreja Católica, parece normal, embora também haja algumas que continuam a lamentar a sua eleição. O mais espantoso é a alegria manifestada pelos grandes líderes de outras confissões religiosas: o patriarca ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu I e até o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, Cirilo; o primaz da Igreja Anglicana, Justin Welby; o grande imã de Al-Azhar do Egipto, Ahmad al-Tayeb; o rabino chefe da comunidade judaica em Roma, Abraham Skorka; sem contar que o Papa Francisco se tornou a grande referência mundial para crentes e não crentes.
É preciso percorrer os acontecimentos e os gestos mais marcantes, assim como a qualidade e oportunidade dos documentos publicados, como fez o Frei José Nunes, numa assembleia do Instituto S. Tomás de Aquino (ISTA), para perguntar como é que foi possível, apenas em 10 anos, abrir tantas portas e janelas na Igreja Católica para todos os mundos. Tudo isto, percorrendo os caminhos mais humildes de Francisco de Assis, no seguimento do Evangelho de Cristo para o nosso tempo.
A reforma da Igreja a partir das reformas da Cúria vaticana e do conjunto da cristandade, desenhadas no programa do seu pontificado, A Alegria do Evangelho, não contava com as dimensões do fenómeno da pedofilia na própria Igreja e que o obrigou a enfrentá-lo com tolerância zero e, mesmo depois, talvez não contasse com tantas resistências da parte das hierarquias das igrejas de todo o mundo, mas que não o têm feito recuar.
A esperança do presidente da Assembleia da República Portuguesa, Augusto Santos Silva, e certamente de muitos portugueses, é «que a Igreja saiba superar esse problema, agindo. Há várias propostas que têm sido feitas quer no interior da Igreja quer na comissão independente e julgo que os responsáveis vão tomar as medidas necessárias para que esta página possa ser virada» (11.03.2022).
Entretanto, chamaram-me a atenção para um artigo notável de Gustavo Carona[1] – médico sem fronteiras – que, na abordagem da pedofilia na Igreja, não alinha com a tendência de tomar a parte pelo todo, porque a sua experiência, nos mundos mais abandonados, só contou com a presença actuante da Igreja Católica e de outras religiões. «O humanitarismo como o conhecemos tem os seus pioneiros no cristianismo. …A religião teve e tem pessoas, espalhadas pelo mundo fora, a fazer obras de um humanismo e de um impacto nas populações mais vulneráveis que me faz arrepiar de inspiração».
- Hoje, na celebração da Eucaristia, deparamos com uma longa passagem, do Evangelho segundo S. João, sobrea cura de um cego de nascença. A narrativa começa assim: Jesus encontrou no seu caminho um cego de nascença. Os seus discípulos perguntaram-lhe: Mestre, quem foi que pecou para este homem ter nascido cego? Ele ou os seus pais? Jesus respondeu: Isso não tem nada a ver com os pecados dele ou dos seus pais, mas aconteceu assim para se manifestarem, nele, as obras de Deus.
Gostamos de ter respostas prontas para tudo. Para a maioria dos fenómenos, seria preciso dispor do percurso de todas as ciências, pois, não temos, à partida, respostas para tudo. Temos de as procurar. Com as questões do mal tudo se complica, porque o mal – a falta de um bem que devia existir – suscita muitas discussões.
Os discípulos de Jesus, perante um cego, desejavam uma resposta de Jesus, partindo de um falso pressuposto: aquela cegueira era efeito do pecado. Só faltava saber se foi devido ao pecado dos seus pais ou dele próprio. Jesus afasta a questão do pecado. Nem foi ele nem foram os pais. E acrescenta, o mal não se explica, combate-se. É o que Deus nos pede. Foi o que Jesus fez.
A narrativa do Evangelho apresenta Jesus a usar uma técnica muito rústica, muito inadequada para curar uma cegueira. A cura aconteceu, não por causa da lama, como é evidente, mas por ser uma intervenção de Jesus. O facto é que o cego não via e passou a ver pela acção de Jesus. A questão grave é que não podia ter sido por acção de Jesus porque este aumentava o mal na sociedade em vez de ser um bom judeu, um obediente à lei de Moisés. Ora Ele não respeitava o Sábado como um bom israelita deve fazer. Atribuir a Jesus uma acção extraordinária, milagrosa, era impossível, mas contra factos não há argumentos e o facto é que tinha havido uma cura e fariseus não tinham uma explicação para ela. Em tudo isto, a maior cegueira é não querer ver o que se está a ver, por razões de ideologia religiosa. Jesus, ao violar preceitos que julgavam sagrados – a observância do Sábado sacralizado – ficava desautorizado no plano religioso.
Dada a extensão desta fantástica narrativa, não posso transcrevê-la para esta crónica. É maior do que o espaço que me é dado[2].
- O nascimento da Igreja – a não confundir com a hierarquia – é celebrado por um acontecimento que vem explicitado no próprio Baptismo de Jesus, superando o de João que tinha recebido. Todos os Evangelhos contam que, tendo Jesus saído das águas do Jordão, entrou em oração. Dessa abertura ao Espírito Santo recebeu a declaração mais espantosa de Deus:Tu és o meu Filho muito amado, em Ti me revejo[3]. É a este Baptismo que a Igreja tem de ser sempre fiel.
Foram conservados dois gestos, desde o começo. Um deles é a entrega da luz. Sem a luz de Cristo andamos nas trevas. Um outro é a unção dos ouvidos e da boca para significar que, antes falar, é preciso aprender a ouvir, a escutar e testemunhar, usando a expressão Effetha (abre-te). É significativo que não exista um baptismo para mulheres e outro diferente para homens, como diz S. Paulo[4]. Todos nós somos Igreja!
Entre os poemas litúrgicos musicados de José Augusto Mourão, O.P., destaco este, especialmente para hoje: Abre meus olhos, meu Senhor, e verei o Dia / visitação do sol, ó luz, ilumina a vida / quia-me pela mão, sê a lâmpada dos meus pés / que em tudo vacilam. // À fonte vou que vem da cruz vou lavar meus olhos / de lá caminha o meu senhor, de lá vem a Páscoa / venha o sol, venha o azul, venha o corpo / ressuscitado, recomece o mundo. // Abre meus olhos, meu Senhor, ao rumor do nome / que eu caminhe para Ti sem olhar vendado / venha a fé desatar os meus olhos e meus pés / e verei o rosto. // Abram-se as portas do que é breu / sobre os campos verdes / e floresçam mil flores onde a morte cresce / Vem clamor da manhã vem gritar que um fogo arde / em nós e a promessa avança.
É, para o meu gosto, uma das melhores expressões da poética litúrgica.
[1] Público, 11 de Março de 2023. Ver também a Entrevista a Felícia Cabrita, Máxima, 14.03.2023
[2] Cf. Jo 9
[3] Cf Mt 3, 13-17; Mc 1, 9-11; Lc 3, 21-22; Jo 1, 29-34
[4] Gal 3, 26-28
Público, 19 Março 2023