A violência dos deuses

FILOMENA BARATA
Filomena Batara. Arqueóloga. Técnica superior do Museu Nacional de Arqueologia (Lisboa).


A complexidade e ancestralidade do tema Violência não me permite senão tentar abordá-lo numa tentativa de fazer a arqueologia da sua representação entre algumas das divindades greco-romanas, em tempos bem mais próximos do que a sua origem, pois ela acompanha-nos, desde sempre, na nossa natureza animal.

Habituada que estou a tentar olhar a Mitologia na sua perspectiva mais ecológica, pois Divino e Natureza não se compartimentam nela, este repto fez-me equacionar velhos mitos conhecidos de outra forma, pelo que o meu contributo é apenas o de quem abraça um novo caminho: o da violência dos deuses e heróis.

Ao ler a Teogonia e os Trabalhos e Dias de Hesíodo, somos confrontados com a genealogia dos deuses que nos remete a uma sucessão de violências exercidas por Titãs e Deuses a fim de obterem a soberania. É através da violência que se consolida o poder de Urano, Cronos e Zeus.

Cronos/Saturno é, de algum modo, um expoente da violência, no momento da criação dos seres divinos. Era a principal divindade da primeira geração de titãs. Estava relacionado com a agricultura e também o tempo. Filho de Urano (Céu) e Gaia (Terra) era o mais jovem da primeira geração de titãs. Com uma foice dada por sua mãe, mutilou o pai, tomando o poder.

Cronos devorando os filhos. Peter Paul Rubens

 

«Quantos tinham nascido da Terra e do Céu,

Os mais terríveis filhos, todos odiaram o seu progenitor,

desde o início. Pois, quando estavam prestes a nascer, logo

os escondia a todos e os privava da luz,

nas entranhas da Terra. Este feito hediondo comprazia-o a ele,

o Céu; mas, ela, a enorme Terra, gemia, com as entranhas

cheias, e concebeu uma cruel e pérfida vingança.

Depressa criou uma espécie de aço brilhante

E com ele fez uma grande foice e dirigiu-se aos filhos queridos.

Então, incitou-os, dizendo, com o coração ensombrecido:

“Filhos, meus e de um pai cruel; se quiserdes,

fazei o que vos peço; vamos castigar a cruel ação do vosso

pai, pois foi ele quem primeiro se lançou em obras infames”.

Assim falou. O terror apoderou-se de todos, mas nenhum deles

Disse palavra. Só o grande Cronos de pensamentos tortuosos, destemido,

Se dirigiu de imediato com estas palavras à mãe veneranda:

“Mãe, eu vou tomar a meu cargo executar

tal tarefa; não tenho medo de um pai cujo nome não deve pronunciar-se,

O nosso, pois foi ele quem primeiro se lançou em obras infames” =.

Hesíodo, Teogonia, (tr. Ana Elias Pinheiro e José Ribeiro Ferreira,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2014

 

Cronos retirou assim o poder ao seu pai, tendo-se casado com a irmã Reia e governou durante a Idade de Ouro. O seu poder perdurou até ser derrubado pelos filhos Zeus, Poseidon e Hades.

Cronos ficara assim conhecido como o rei dos titãs, sobretudo associando-se ao seu aspecto destrutivo, o tempo que rege os destinos e que tudo pode devorar.

De acordo com a mitologia, Cronos temia uma profecia, segundo a qual seria também ele destronado do poder por um dos seus filhos. De temperamento violento e negativo, Cronos passou a matar e devorar todos os filhos gerados com Reia. Porém, a mãe conseguiu salvar um deles, Zeus, escondendo-o numa caverna da ilha de Creta.  Para enganar Cronos, Reia deu-lhe uma pedra embrulhada num pano que ele comeu sem perceber.

Ao crescer, Zeus libertou os Titãs e com a ajuda deles fez Cronos vomitar os irmãos (Hades, Hera, Héstia, Poseidon e Deméter).

Zeus, com a ajuda dos irmãos e dos Titãs, expulsou Cronos do Olimpo e tornou-se o “Pai dos deuses e dos homens, cujo raio faz tremer a terra imensa” (Hesíodo, Teogonia)

Como tinha derrotado o pai Cronos, que simbolizava o tempo, Zeus tornou-se imortal, poder estendido também aos irmãos.

Zeus, representa de algum modo, o triunfo de uma época de «Justiça», não deixando, contudo, de ser de uma violência absolutamente trágica e extrema a sua vitória contra os Titãs e conquista do poder.

Conta também a mitologia grega história do titã Prometeu e a desgraça que sobre ele recaiu. Prometeu, amigo dos homens, havia roubado o fogo de Zeus para o oferecer aos mortais. Para o punir, o deus dos deuses Zeus manifesta a sua ira e mandou-o acorrentar a um rochedo, por entre desfiladeiros, onde uma águia vinha devorar o seu fígado, que tinha a capacidade de se regenerar a cada noite. Prometeu padece assim os males dos humanos face a um poder tirano.

«O peso da presente dor sempre te há-de consumir e ainda está para nascer quem será capaz de consolar-te (…). Difícil de aplacar, ó Prometeu, é o coração de Zeus e sempre se mostra cruel quem há pouco tempo está reinando».

Ésquilo, Prometeu Agrilhoado, Editorial Inquérito, Lda.

O pai dos deuses do Olimpo sentindo-se ameaçado no seu poder pelos homens, não podia deixar passar em branco a afronta de Prometeu e concebeu um castigo terrível para a humanidade: teve então a ideia de criar a mulher, a partir de uma estátua de bronze.

Zeus ordenou então que, com a ajuda de Atena, Hefesto, o deus ferreiro, criasse a primeira mulher, Pandora, a partir de uma estátua de bronze, que significa ‘todos os dons’.

Cada um dos deuses a presenteou e dotou com uma das suas características: Afrodite deu-lhe beleza e o poder da sedução; Atena fê-la arguta e concedeu-lhe a habilidade dos lavores femininos, tendo-lhe ainda oferecido um belíssimo vestido que permitia ver as suas formas suaves; Hermes deu-lhe a língua e a capacidade de mentir e de enganar os outros. Apolo deu-lhe a voz macia.

De Zeus, Pandora recebeu uma caixa que deveria entregar aos homens. Com a missão de destruir a raça humana, Pandora desceu à terra, encontrando Epimeteu que se apaixonou perdidamente por ela. Esquecendo a promessa que havia feito ao seu irmão Prometeu que nunca receberia nada que fosse dado por Zeus, Epimeteu recebe de Pandora a caixa na qual foram colocados todos os males da humanidade, como o orgulho, a ambição, a crueldade, a traição, as doenças, as pestes. No fundo da caixa havia um único bem capaz de salvar a humanidade, a esperança.

Mas, após saírem todos os males, Pandora fecha a caixa impedindo que a esperança fosse recebida pelos homens. Assim, perdeu a raça humana, o “paraíso”, sendo, doravante a mulher culpada dos males, como nos descreve Hesíodo:

«Antes de facto habitava sobre a terra a raça dos homens,

a resguardo de males, sem a penosa fadiga

e sem dolorosas doenças que aos homens trazem a morte.

Mas a mulher, levantando com a mão a grande tampa da jarra,

dispersou-os e ocasionou aos mortais penosas fadigas.

E ali só a Esperança permaneceu em morada indestrutível

dentro das bordas, sem passar a boca nem para fora

sair, porque antes já ela colocara a tampa na jarra,

por vontade do deus da égide, Zeus que amontoa as nuvens.

Outras infinitas tristezas vagueiam entre os homens;

e cheia está a terra de males, cheio se encontra o mar;

as doenças entre os homens, de dia e de noite,

vão e vem por si, trazendo males aos mortais

em silencio, já que da voz as privou o prudente Zeus».

Hesíodo, Trabalhos e Dias, (Introdução, Tradução e Notas Ana Elias Pinheiro e José Ribeiro Pereira). Ed. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. 2014.

 

E poderíamos ainda falar da violência de Zeus, quando constantemente se tem que metamorfosear e esconder da sua esposa oficial Hera, a Juno entre os Romanos para poder fazer as suas inúmeras conquistas, contribuindo para que ela se tornasse numa figura cruel e vingativa.

Mas Zeus não será o único que exerce o seu poder sobre as divindades. Conhecidos são tantos outros exemplos em que as figuras masculinas praticam estupro e violência contra a mulher.

Medusa será o expoente dessa violência masculina, mas também feminina.

Ficou conhecida na Mitologia como por ser um mostro ctónico terrível, do sexo feminino, sendo representada com serpentes no lugar dos cabelos com o poder de petrificar apenas com o olhar.

Mosaico da Medusa no Museu Paul Getty

Contudo Medusa não teria sido sempre assim. Seria uma mulher de corpo perfeito e de belos cabelos dourados.

Ela e as duas irmãs eram virgens sacerdotisas de Atena, Deusa da guerra e da justiça. Poseidon, deus do mar, havia desposado Medusa (algumas versões dizem que ela foi violada) no templo de Atena. A Deusa furiosa pelo desrespeito praticado no seu templo castigou Medusa, transformando- a num mostro mortal. Os seus belos e invejados cabelos transformaram-se em serpentes, o seu corpo foi deformado e a pele criou escamas e ficou pegajosa, e os seus os dentes tinham o aspecto de um javali.

Perseu, filho de Zeus com a ajuda de Atena, será o herói que decapitará Medusa, matando-a. Em seu auxílio vão Hades e Hermes que presentearam Perseu com um elmo, que o deixava invisível, sandálias aladas, um escudo feito de bronze brilhante, uma espada e ainda um alforje chamado quíbisis para poder carregar a cabeça cheia de serpentes. A sua cabeça será oferecida à justiceira Atena que, doravante, a usará na sua égide.

«Dela, quando Perseu lhe decepou a cabeça,

Surgiram o grande Criasor e o cavalo Pégaso»

Hesíodo, Teogonia.

Pátera com cena do Mito de Perseu, Lameira Larga, Penamacor (pormenor).  Museu Nacional de Arqueologia. Fotografia José Pessoa . A partir de:  http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=118335&EntSep=5#gotoPosition

 

Mas também os deuses se disfarçam e perseguem as ninfas, enganando-as, estuprando-as, ou obrigando-as à fuga.

Entre essas muitas histórias, podemos lembrar a paixão de Apolo por Dafne que acaba por se transformar num loureiro, recusando o amor da divindade.

«Já que minha esposa não podes ser,
serás ao menos a minha árvore. Os meus cabelos sempre
te terão, e a minha cítara, ó loureiro, e a minha aljava. […]

O primeiro amor de Febo foi Dafne, filha de Peneu. Não foi
o acaso ignaro a induzir-lho, mas a cólera cruel de Cupido.
[…] Logo este se enamora, a outra foge à ideia de um amante.
[…] Febo está apaixonado. Ao ver Dafne, deseja desposá-la,
e tem esperança no que deseja: os seus oráculos iludem-no.

[…] Ela foge mais veloz

que a leve brisa, nem pára quando ele a chama de volta […].

«Ajuda pai», gritou, «se vós, os rios, tendes poder divino!
Extingue e transforma esta figura, demasiado atraente!»
Mal termina a prece, um pesado torpor invade o corpo.
O macio peito da jovem é envolto por uma fina casca,
os cabelos alongam-se em folhas, os braços em ramos,
os pés, há pouco tão lestos, fixam-se em indolentes raízes;
o rosto faz-se copa: só o seu esplendor permanece nela.
Ainda assim Febo a ama. E apoiando a mão no tronco,
sente o peito ainda a palpitar debaixo da casca recente.
Abraça nos braços os ramos, como se membros fossem,
cobre de beijos o lenho; mas o lenho aos beijos se esquiva».

Ovídio, Metamorfoses, (trad. P. Alberto), Lisboa, Cotovia, 2004

Mosaico de Apolo e Dafne, Villa tomana de Torre de Palma. Monforte. Fotografia José Pessoa. Museu Nacional de Aqueologia

 

Ou ainda Pã que enamorado por Siringe a obriga a refugiar-se num caniçal, onde Pã encontrará inspiração para a sua flauta.

A violência, não, é, contudo, apenas atributo das divindades masculinas.

Tecedeira como nenhuma, Atena, cuja homóloga romana é Minerva, aceitou competir com a sua rival na arte de trabalhar a lã, Aracne que «não era famosa pela terra nativa nem pela origem da família, mas sim pela arte» e que

«Quantas vezes para contemplar os seus admiráveis lavores não abandonaram as ninfas os arvoredos do seu Timolo, não abandonaram as suas águas as ninfas do Pactolo. E não era só um prazer contemplar as vestes por ela tecidas, mas também vê-la trabalhar (tal encanto presidia à sua arte!) » como nos relata Ovídio, Metamorfoses, Livro VI).

Aracne será assim vítima da orgulhosa Atena que não consegue conceber que a sua tapeçaria seja menos bela do que a que ela havia concebido. A pobre Aracne termina por suicidar-se e Atena condoída acaba por transformá-la numa aranha.

Deusa da Sabedoria e da Razão, «Minerva, da oliveira a inventora», como a menciona Vergílio nas suas Geórgicas é também a deusa das artes da guerra, motivo pelo que se faz representar com uma lança.

Minerva é «filha de Zeus detentor da égide, Atena de olhos garços» (Hesíodo, Teogonia, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2014).

«Zeus, rei dos deuses, tomou por primeira esposa Métis,
a que mais sabe sobre os deuses e os homens mortais.
Mas, quando ela estava prestes a dar à luz a deusa Atena de olhos garços,
nessa altura, ele enganou o seu espírito,
com palavras ardilosas, e engoliu-a no seu ventre,
por conselho da Terra e do Céu coberto de estrelas.
Ambos o aconselharam assim, para que o poder régio
não pertencesse a nenhum dos outros dos deuses
que vivem sempre, senão a Zeus.
Porque estava predestinado que dela nascessem filhos
muito inteligentes:
a primeira, a filha de olhos garços, a Tritogénea,
detentora de força e de uma sábia vontade igual à do pai;
depois seria a vez de um filho, rei de deuses e de homens,
que ela daria à luz, um filho de coração soberbo.
Mas, antes, Zeus engoliu-a no seu ventre,
para que a deusa lhe pudesse aconselhar o que é bom
e o que é mau»

(Hesíodo, Teogonia, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2014)

E no seio dos “deuses supremos” do Olimpo vemos também a possessiva e ardilosa Hera, sendo sua homóloga a romana Juno, esposa de Zeus; a poderosa Atena, a caprichosa Afrodite/Vénus, a protectora das margens, da natureza selvagem das mulheres, Artemisa/Diana, e a discreta Héstia. Estas personagens femininas desempenham um papel fundamental na trama que se constrói entre as entidades divinas, bem como entre estas e os Humanos.

Dioniso, segundo a tragédia de Eurípedes, manifesta o seu lado violento, quando castiga Penteu, rei de Tebas, que não aceita o seu culto, ao ponto ser dilacerado e morto às mãos da própria mãe e irmãs.

«É dele este corpo que aqui trago, depois de ter penado em buscas infinitas, e de o ter encontrado desfeito em pedaços nos recessos do Citéron. Não houve um só bocado que apanhasse no mesmo lugar do solo: jaziam pela floresta, em sítios inacessíveis».

Eurídepes, As Bacantes, (tr. Maria Helena Rocha Pereira) Edições 70, 2018

Mas também os heróis não estão isentos dessa violência, lembrando os doze Trabalhos de Hércules a que nos dedicaremos noutro momento.


NONO ENCONTRO TRIPLOV