A última rosa de Júlio Dinis

 

Guião para a Rádio Transforma, em radiotransforma.net.

Programa de Maria Estela Guedes com realização de Sara Sousa.

Ouvido a 10 de julho de 2022

 


Martha, de Friedrich von Flotow. Abertura


Na novela O canto da sereia, de edição póstuma, Júlio Dinis refere a ópera Martha, de Friedrich von Flotow, e em especial a mais famosa das suas árias, “A última rosa do Verão”. No original do poema, assinado por Thomas Moore, um poeta irlandês, “The last rose of  summer”. Inúmeros cantores já a interpretaram, em várias línguas, e alguns compositores apresentaram variações dela, quer no âmbito da música clássica, quer noutros géneros. Ouviremos alguns no decurso do programa, que terminará com o tom soul e jazz de Nina Simone.

A novela apresenta Ovar como cenário, importante porto na época, e os pescadores como principais personagens, além da sereia, que é a protagonista. Quem conhece a Odisseia, sabe que as sereias são perigosas: o seu canto é tão arrebatador que os marinheiros se aproximam delas e naufragam nos rochedos. O único mareante que conseguiu ouvi-las e sobreviver, Ulisses, teve de obrigar os seus marinheiros a taparem os ouvidos com cera. A ele, pediu que o amarrassem a um mastro. Por muito que gritasse, os homens não o ouviriam, com os ouvidos tapados. Em suma, a sereia é sempre anúncio de morte.

Júlio Dinis, que morreu com 32 anos apenas, passou em Ovar, em casa de uma tia, o Verão de 1863. Com a mudança de ares, buscava a cura da tuberculose, já ela ia em fase muito avançada. Com efeito, morreria oito anos depois, em 1871. Este cuidado com as datas decorre da minha tentativa de identificar o local onde ele ouviu a ópera Martha, e sobretudo a quem ouviu ele cantar a famosa ária “The last rose of summer”, pois a novela parece tecer-se de experiências vividas de Júlio Dinis, e muito frescas, transpostas para a personagem do Pedro, o jovem pescador que ouve a sereia. Não revelaremos o desenlace da história.

Perante a preocupação de um velho pescador, Pedro conta o que ouviu, e ouvirá, até ao fim, de noite e sempre de noite:

É uma música de anjos que vem das ondas. Uma música como ainda a não ouvi em parte alguma. Não é alegre e divertida, como a das festas e arraiais;  nem séria e de devoção, como a que cantam as mulheres na vila à missa-do-dia, ao consagrar da hóstia e do cálix; mas é uma música triste, saudosa, uma música que me faz chorar. A voz que canta parece de mulher, mas, ao ouvi-la, até chego a esquecer-me do lugar onde estou. Sabe? A praia, o mar, as estrelas, o céu, tudo desaparece diante de mim. Parece-me que então só sei viver para ouvir aquela voz no meio do barulho das ondas, que não conseguem abafá-la. Procuro, apesar da escuridão da noite, descobrir a mulher, se é mulher, eu sei? a fada, talvez o anjo, que canta assim, mas nada pude ainda ver. Sinto em mim uma coisa que não sei bem dizer o que é. Queria seguir aquela voz. Tenho sentido desejos de me deitar às ondas para ouvir de mais perto aquele cantar divino. É quase uma tentação tão forte que lhe tenho resistido a custo e não sei se alguma vez…


Montserrat Caballé. – “The Last Rose of Summer”


O canto da sereia é uma história dominada pelo som, aquilo que os ouvidos reconhecem ou tentam identificar: de um lado o mar, o vento, as vozes dos pescadores; de outro, a música e o canto da sereia, acredita Pedro, a princípio; mais tarde são os olhos a identificar a cantora, mas já será tarde: a sereia, nessa altura, já terá feito muito estrago.

É tudo muito triste e sentido, de uma parte, muito verídico, de outra. A costa de Ovar, até Espinho, as praias, entre elas a de Fontoura, a Barrinha, tudo concreto como uma carta geográfica. Então, pensei, quem sabe se Júlio Dinis foi à ópera e ficou encantado com a cantora que interpretou o papel de Martha, na obra de Flotow? Pedi ajuda a um amigo e co-autor, Fernando Camecelha, testa dos teatros nacionais do Porto, entre eles o de São João, provável sala de espetáculo onde o escritor assistira à ópera. O Fernando não sabia, mas por sua vez pediu auxílio a uma especialista, a professora Luísa Cymbron, do Departamento de Ciências Musicais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Luísa Cymbron, a quem desde já agradeço a camaradagem, tal como agradeço a Fernando Camecelha, enviou gentilmente as seguintes informações:

“A ópera Martha de Flotow foi cantada no Teatro de S. João na década de 1860, nas temporadas de 1862-63, 63-64 e 69-70. Em 62-63, quem cantou o papel principal foi a soprano Eugénie Julienne-Dejean e existe um libreto dessa produção, pois foi a estreia. No ano seguinte, essa ópera pode ter sido cantada por Isabella Alba, Amalia Fabrini ou Vittoria Luzzi Ferrali, que foram os três sopranos que estiveram no Teatro São João nessa temporada. Em 69-70, é possível que tenha sido Ida Benza, que foi uma cantora conhecida, a cantá-la. No livro sobre o São João, que coordenei com a Ana Isabel Vasconcelos, há pelo menos uma referência. Nessa temporada ela fez furor no Porto. É muito provável que seja ela a cantora que procura.“

Júlio Dinis põe na boca da sua sereia uma pequena autobiografia. Numa das noites em que sai para o mar com os pescadores, e estes a advertem do perigo, ela conta, estabelecendo os necessários elos de ligação com as sereias, habitantes do mar:

– Parece-lhes tudo isto uma loucura, não é assim? Pobres homens! E talvez tenham razão. Mas eu quero satisfazer as minhas loucuras todas. Sinto nisto um prazer!… Mas não se inquietem. Eu conheço alguma coisa do mar e sei ler na direção do vento e no aspeto das nuvens as mudanças prováveis do tempo. Estudei as tempestades da minha terra. Nasci como vós à beira-mar. Meus pais eram pescadores também. O berço que me embalou nos meus primeiros sonos foi o barco em que toda a minha família se transportava; a rede a coberta única em que muita vez me envolveram para dormir; pronto aprendi assim, de pequena, esta música das ondas, de pequena me acostumei a cantar com elas. Depois que a sorte me impeliu nesta vida artística, errante e aventureira que tenho seguido, não esqueci nunca as predileções dos meus primeiros anos. Sou como as aves aquáticas; ando sempre junto às costas marítimas. A escola em que aprendi foi a escola do mar; não me quero longe deste mestre inspirado que me ensinou a arte sublime da música. Parece-me que lhe sei já compreender os segredos todos; cada praia revela-me um novo mistério de arte. As ondas do Adriático, o mar da minha terra, não cantam como as outras. O mar é como o povo. Em cada país tem a música popular um génio próprio, uma índole especial. Assim também o mar. Tenho escutado as ondas de quase todas as praias da Europa. O Mar Negro, o Mediterrâneo, o Báltico, a Mancha, o Atlântico, todos têm uma modulação sua e que me parece já saber distinguir.


Orquestra de André Rieu – “The last rose of summer”


Em suma, Júlio Dinis afirma que a sua personagem é italiana e que as árias são traduzidas do italiano. Ida Benza, a cantora que fez furor no Porto, era húngara. Nada obsta, no entanto, a que Júlio Dinis tenha deliberadamente ocultado a sua identidade. Simplesmente, a geografia de Ovar está identificada na perfeição, o que leva a pensar que o escritor recorreria ao mesmo procedimento realista para tratar a personagem da sereia, o que aliás é um dos fatores de interesse literário da obra: sendo romântica, ou mesmo ultrarromântica no domínio emocional, ela é realista no plano descritivo. Enfim, é melhor deixar para musicólogos interessados no assunto a identificação da cantora.

Na sua personagem de sereia, já vimos que a cantora ama as ondas e as tempestades e anda à noite no mar encapelado, apesar da desaprovação dos pescadores que a conduzem na pequena embarcação poveira, ou “esquife”, nas palavras de Júlio Dinis. Ela desafia a tempestade, ignorando que Pedro, o jovem pescador, vai definhando de amor cada vez mais, ao ouvir-lhe o canto. Numa dessas noites, escreve Júlio Dinis, sem indicar fontes, o que passo a citar:

… a conhecida voz feminina principiou cantando uma evocação à tempestade, que se poderia traduzir assim:

 

Vinde! Soprai furiosos,

Ventos de tempestade!

Ergue-te, majestade!

Ergue-te, ó vasto mar!

Passai, legiões de nuvens!

Velai o céu de estrelas!

Ó génio das procelas!

Vem, quero-te saudar!

A luz fatal do raio

Guie o meu barco apenas!

E rujam como hienas

As vagas ao redor…

Pairem, nos ares fatídicos

As aves da carnagem.

E cave-se a voragem

Com súbito fragor!

 

Surjam do fundo abismo

Os pavorosos vultos

Dos náufragos sepultos

Dos mares na amplidão!

Responda à voz das águas

Frementes, agitadas,

O silvo das rajadas

Os brados do trovão!

Do arcanjo de extermínio

O gládio chamejante

Ostente-se radiante

De ameaçadora luz!

Da tempestade às fúrias

Assistirei sorrindo

E bradarei: Bem-vindo!

Ao génio que a conduz!

 

Bem-vindo, sim, que eu sinto

No seio mais violenta,

Uma cruel tormenta

A luta das paixões!

Procuro o mar furioso

Como um seguro asilo!

Arrosto-o, e não vacilo

Das ondas aos baldões!


Luciano Pavarotti – Flotow – “M’Appari” – Martha


Júlio Dinis parece transferir para o enamorado Pedro, jovem pescador, toda a sua fragilidade. Pedro, a personagem, antecipa a morte do escritor, e não parece que tal se deva à pressão do movimento romântico. Sentimos que é Júlio Dinis quem sofre, quem ouve os sons do mar e se inebria com o canto, quem se enamora da cantora que, se for Ida Benza, morrerá quase tão jovem como ele: aos 34 anos. Júlio Dinis morreu aos 32, da doença que então matava tantos jovens, a tuberculose. Por isso esta novela é muito comovente. Mas vejamos, afinal, o que escreve Júlio Dinis sobre a famosa canção que decerto ouviu no Teatro Real São João do Porto, e também sobre a cantora que, como os rouxinóis, comenta um pescador, só canta de noite.

Cito, de O canto da sereia:

Agora o estilo da música era suave e melancólico; era a canção da rosa, a ária formosíssima da qual Flotow fez o motivo de toda a sua ópera, a Marta, e que raros têm o poder de escutar sem que se sintam possuídos de uma profunda comoção e com disposições para lágrimas.

A artista cantava-a na letra italiana da ópera, cuja tradução é, aproximadamente, a seguinte:

 

Aqui, só, virgínia rosa

Como podes florescer!

Inda em botão, desditosa,

E já próxima a morrer!

 

Em vez do orvalho da vida

Cresta-te a neve e o tufão,

E já sobre a haste pendida

Inclinas a fronte ao chão!

Escutando aquela música elegíaca e sentida, Pedro experimentou uma comoção ainda mais profunda que das outras vezes; não compreendendo a letra italiana do canto, tal era a expressão da cantora e a eloquência da música que ele ouvia-a com intenso recolhimento, como se escutasse a voz do seu próprio coração.

Quem seria a cantora que inspirou Júlio Dinis tanto como os lugares por onde passeou, nas praias de Ovar? E a que ópera pertencerá a invocação à tempestade que ele diz ter traduzido? Deixamos a resposta aos musicólogos, já foi deleitoso para nós formular as perguntas, ouvindo música e palavras envoltas na saudade do autor de Uma Família Inglesa, A Morgadinha dos Canaviais e de Os Fidalgos da Casa Mourisca.


Nina Simone – “The Last Rose of Summer”


FORA DO AR

1.
The Last Rose of Summer
Thomas Moore (1779-1852)

‘Tis the last rose of Summer,
Left blooming alone;
All her lovely companions
Are faded and gone;
No flower of her kindred,
No rose-bud is nigh,
To reflect back her blushes
Or give sigh for sigh!

I’ll not leave thee, thou lone one,
To pine on the stem;
Since the lovely are sleeping,
Go sleep thou with them.
Thus kindly I scatter
Thy leaves o’er the bed
Where thy mates of the garden
Lie scentless and dead.

So soon may I follow,
When friendships decay,
And from Love’s shining circle
The gems drop away!
When true hearts lie withered,
And fond ones are flown,
Oh! who would inhabit
This bleak world alone?

 

2.

Edição utilizada de O canto da sereia:

JÚLIO DINIS
O canto da Sereia
Ilustração: Pedro Podre
Estudo: Ana Soares Ferreia
Ed. ORO
Câmara Municipal de Ovar & Museu Júlio Dinis
2021


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