NICOLAU SAIÃO
Começara a chuviscar. Uma daquelas chuvinhas desagradáveis de Inverno extremenho e de pequena trovoada típica.
A noitinha de Badajoz, timidamente, agarrava-se à sombra dos prédios, ao reluzir da avenida a esvaziar-se de pessoal e onde os automóveis, com agilidade castelhana, passavam vertiginosamente.
Eu, como grande parte dos intelectuais da nossa terra que por vezes lá encontramos, tinha ido “visitar o museu de arte contemporânea da linda localidade extremenha” (ou seja, tinha ido comprar charutos, que ficam mais baratos, ao “Corte Inglês” e conservas asturianas ao “Carrefour”). E àquela hora bendita senti um certo apetite.
Na rua silenciosa, ao pé da Calle don Pedro, abria-se uma porta de tasquinha convidativa. Entrei, relanceei o mostrador de vidro limpo, as substâncias comestíveis, a face rubicunda e afável do tasquero. As tapas pareciam ser de boa qualidade, os comensais ao balcão tinham um ar civilizado (nem sequer estavam a falar no Coronavírus nem no Serviço Nacional de Saúde – provavelmente por nunca terem ouvido falar destas duas realidades paralelamente lusitanas e internacionais) e eu resolvia-me a encomendar um pratito de presunto pata negra quando uma voz varonil, poderosa e bem timbrada, se fez ouvir vinda da penumbra de uma mesa do canto:
“Fala à malta e guarda a massa, caramba… Ou estás-te a armar em deputado?”.
Surpreendido – pois reconhecera o timbre daquela voz célebre – virei-me de supetão:
“Jagodes! Pois és tu? Mas que fazes meu maroto em Badajoz?”, disse efectivamente perplexo. Se tivesse recebido a notícia de que o Dr. Centeno se tinha demitido da sua reconfortante vilegiatura estrangeira não ficaria tão surpreso.
“Vim por aqui por estas alegres espanhas a espairecer, Nicolau! “ retorquiu-me o célebre pensador “ Arejar a alma e a tristeza!”.
Fitei-o embasbacado! O Jagodes triste, ele que tem a fama de ser um dos intelectuais portugueses mais bem-dispostos, um dos novelistas mais esfuziantes? E ao ver o meu ar de perplexidade, ele explicou com benevolência e fecundidade:
“Então tu não sabes que, segundo as últimas estatísticas da Agencia Internacional para o Desenvolvimento, os portugueses são os membros mais tristes da Europa? Que só são, no primeiro/terceiro mundo, ultrapassados pelos venezuelanos (se calhar por causa das últimas cenas políticas que lá tem havido)? Eu, como bom patriota, podia sentir-me de outra maneira?
Ri um pouco, com alguma fraternal ironia. E atirei-lhe: “Ora ora, Jagodes, não brinques comigo! Que tu és um excelso patriota, quase tão notório como o dr. Alegre, isso ninguém duvida. Mas estares assim em baixo só por isso…Desculpa mas parece-me exagero!”.
O Jagodes escorripichou a caña, levantou o dedo a pedir outra e confidenciou sensatamente: “Só por isso, com efeito, não será. Também me andam a entristecer alguns factozinhos enervantes. Por exemplo, o código do trabalho, que na sua ratice autoritária e discriminatória é uma bela vergonha; os aumentos sucessivos do custo de vida enquanto no areópago nacional se exibe a demagogia, a insensatez e a falta de sentido de Estado que propicia que num assunto de alta responsabilidade, como a eutanásia, se vote velozmente como que nas costas do povo soberano. E a questão de altos magistrados juízes que afinal se descobre que andaram alegadamente a cometer burlas e corrupções em tribunal supremo! E repara nesta frase, difundida por todos os mídias, duma senhora cujo nome de momento não me lembra: ‘O discurso não bate certo com a realidade e o que se espera de alguém com a responsabilidade de doutor Costa é que avise, alerte e prepare todo um país para o estado em que está e para aquilo que aí vem’. Aquilo que aí vem…Ai meu deus!.
Mas o que mais me entristece é o caso daquele coronel que de repente perdeu a memória, bem como o assunto peculiar daquele homem bom, que tanto tem ajudado a família com generosidade e carinho, e que continua a ser nas redes sociais marotamente acusado de nepotismo açoriano…! Estou triste a valer e…”.
Interrompi-o com um gesto peremptório da minha mão espalmada. Peremptório e desvalido. Retorcidamente contraído.
E o grande Jagodes, arvorando um ar compassivo, compreendeu o meu começo de grande amargura. E mandou vir, sem timidez e de uma só vez, três cañas para mim, para me animar.
É que, inteligente como é, talvez mesmo mais sagaz que o conhecido manguelas político que disse sem corar que os portugueses são maioritariamente calaceiros (os que lhe pagam o ordenado de pai da pátria!) notou que sobre a minha face tombara, pesado e reconhecível, absoluto e irresistível – um ricto de uma profundíssima tristeza…
ns