Frei BENTO DOMINGUES, O.P.
Há muitos anos, na minha aldeia, a Quaresma era um tempo muito especial. Era marcado pelo ritual das cinzas. Ritual obrigatório, assumido por toda a gente. O padre fazia o sinal da cruz com as cinzas, na cabeça das pessoas, dizendo: «Tu és pó e em pó te hás de tornar». Agora, a frase que acompanha este ritual pode ser substituída: «Arrepende-te e acredita no Evangelho».
Em todos os dias da Quaresma, ao fim da tarde, havia um vizinho que, num ponto estratégico da aldeia, gritava: «Alerta, alerta: a vida é curta e a morte é certa». Observava-se o jejum e a abstinência. Para ser dispensado, comprava-se a Bula. Os preceitos da Santa Igreja não eram muitos: confessar-se uma vez por ano e comungar na Páscoa da Ressurreição. Era a desobriga. Antes da reforma litúrgica, o sábado anterior era designado como Sábado da Aleluia. Mas era no Domingo de Páscoa que havia as grandes manifestações de alegria. Com música e foguetes, a Cruz iluminada visitava todas as casas. Havia sempre um mordomo que organizava essa visita que, muitas vezes, se prolongava até ao Domingo da Pascoela. Certas particularidades dependiam dos costumes locais.
- O Papa Francisco pediu que o dia 2 de Março deste ano – Quarta-feira de Cinzas – fosse um dia de oração e jejum pela paz na Ucrânia. O líder da Igreja Greco-Católica,o arcebispo-mor Sviatoslav Shevchuk, convidou sete cidades da Ucrânia a unirem-se em oração para derrotar o que divide. Eis as suas palavras:
«Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, queridos irmãos e irmãs em Cristo.
Saúdo-vos da capital da Ucrânia livre, da nossa cidade de Kiev. Hoje estamos no sétimo dia da guerra. Neste dia 2 de Março de 2022, a convite do Papa Francisco, o mundo inteiro se une em oração e jejum pela paz na Ucrânia.
Trata-se de um dia especial para todos nós, pois entendemos que não estamos sozinhos na nossa tragédia. Apesar de tudo, a guerra continua. Ontem à noite a nossa cidade de Zhytomyr foi bombardeada, e eles continuam a disparar contra as nossas cidades e vilarejos.
Estamos particularmente preocupados com as cidades de Kharkiv, Sumy, Chernihiv, Kherson e outras cidades ucranianas sitiadas, onde hoje há falta de alimentos, medicamentos e ainda hoje a população local precisa de ser salva. Renunciando à comida, somos solidários com eles.
Mas hoje unimo-nos em oração. Mas o que significa: unir-se em oração? Nos últimos dias temos falado que só quando estivermos unidos, coesos, nos tornaremos fortes e conseguiremos resistir nesta guerra. A força do povo está na união. Deus, dai-nos a unidade, diz o hino popular.
No entanto, a união na oração é algo que vai muito além. Unir-se em oração significa transmitir vida uns aos outros, significa partilhar a própria força vital com o próximo, dar a própria força vital ao próximo e, consequentemente, tornar-se mais forte com aquela força vital que recebemos daquele com quem nos unimos na oração.
Nestes dias, recebemos muitas cartas de todo o mundo que nos asseguravam: estamos convosco! Devemo-nos unir em oração, unir-nos em nome da paz, em nome d’Ele, para que a nossa vida possa vencer a morte.
O exemplo desta união interior na oração são as palavras de Cristo ao Pai: Deus Pai, tudo o que é meu é teu, e o que é teu é meu. Hoje temos tanta necessidade dessa força recíproca, porque essa força e unidade nada mais são do que a força e a ação do Espírito Santo. Unindo-nos na oração, unindo-nos com o mundo e a vida espiritual interior, temos consciência de que somos filhos da única Igreja, do corpo de Cristo cuja cabeça é Ele mesmo. Neste dia rezamos e jejuamos juntos.
Jejuar significa romper tudo o que nos divide, o que nos impede de partilhar a nossa vida com os outros. É por isso que jejuar hoje é tão importante para poder remover o que divide: o diabo, o espírito da guerra, o espírito da morte.
Hoje convido todos vós a permanecerem em oração comum que começa às 14h, horário de Kiev, da cidade de Pokotylivka, perto de Kharkiv, para depois abraçar Odessa, Drogobych e a famosa Hrushiv, Zarvanytsia, nosso Hoschiv, a nossa Univ, para então se concluir aqui, em Kiev.
Deus, acolha o nosso jejum e as nossas orações, Deus, una-nos a todos, para que a vida vença a morte e a oração comum de todo o mundo traga paz à Ucrânia. Eu concedo a bênção divina sobre vós e para sempre».
- O mapa da violência e das guerras é vastíssimo e, como ficam muitas vezes longe de nós, é como se não existissem. Somos indiferentes. É guerra dos outros. Agora, já não está garantida a paz na Europa. Julgávamos que, na Europa, depois da tragédia de duas guerras mundiais, se devia dizer:guerra nunca mais. Não só na Europa, mas em todo o lado. Agora, sentimos a sua proximidade, a sua agressão.
O teólogo José I. Gonzáles Faus, numa carta aberta a Putin, lembra que «o ser humano, de qualquer país que ele seja, tem uma grande capacidade para o péssimo e para o óptimo. Há nele uma solidariedade interna com o pior e com o melhor. Irmão Putin, quero dizer-te que não manches a memória daqueles nossos e teus irmãos: Dostoievski, Tolstoi, Tchaikovsky, Rachmaninov e a santa María Skobtsova que salvou tantos russos do nazismo e cujo livro mais conhecido se titula precisamente: O sacramento do irmão. Não substituas o sacramento do irmão pelo sacramento das bombas»[1].
O espírito cristão, o espírito de Cristo, é reafirmado, hoje, contra qualquer imperialismo. Jesus recusou a tentação que agitava os movimentos messiânicos: a dominação económica, religiosa e política.
A tarefa desta Quaresma, por todo o lado onde se celebra a Páscoa, deve ser a tomada de consciência da fragilidade e devemos lembrarmo-nos do horror das guerras que são alimentadas, ano após ano, e é necessário refazer os caminhos da paz, não só na Europa, mas em todos os países.
O grande retiro de preparação para a Páscoa deste ano, dos cristãos em todo o mundo, deve ser um tempo para semear comunidades de paz.
Fratelli Tutti, todos irmãos. Por isso mesmo, não podemos estragar a Casa Comum. São convicções muito humanas que o Papa Francisco não se cansa de evocar para todo o mundo. De facto, somos nós que estamos sempre tentados, por miragens de dominação, a expulsarmo-nos do paraíso. Não é Deus. Deus não tenta para o mal.
O apóstolo S. Tiago interroga: de onde vêm as guerras e as lutas que há entre vós? Não vêm precisamente das vossas paixões que se servem dos vossos membros para fazer a guerra?[2]
A Quaresma não é para fazer sacrifícios, para semear tristeza, mas para nos convencermos que tudo, no Cristianismo, deve anunciar que não somos para a morte, mas para as exigências da Alegria, as exigências da Ressurreição.
Rezemos como S. Francisco de Assis: Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa Paz, que a minha vida seja uma sementeira do amor, do perdão, da união, da fé, da verdade, da esperança, da alegria, da luz!
[1] Religión Digital, 01.03.2022
[2] Tg 4, 1
Público, 3 de Março 2022