MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov
Tertúlia «Artes e Letras». Biblioteca Municipal de Lamego, 25 de Novembro de 2023.
Naturalistas ou filósofos naturais são aqueles que praticam a religião natural ou que se dedicam a estudar a Natureza, seja de um ponto de vista amador, seja em correlação com as universidades. No século XVIII, esta atividade ocupa até poetas como Goethe, autor de vários trabalhos na área, a exemplo de “A metamorfose das plantas”, que antecipa a teoria da evolução de Charles Darwin. Os naturalistas começam a ficar vinculados às Luzes, num meio intelectual de mudança de paradigma: procura-se descartar a escolástica para entrar no conhecimento da Natureza de uma forma objetiva, racional, sem primado da opinião dos mestres, sim através da experiência e da experimentação. Esta experimentação tem lugar nos laboratórios, de uma parte, de outra no contacto direto do naturalista com o objeto do seu interesse, adquirido no horto botânico, no parque do palácio, e sobretudo na viagem. Os filósofos naturais são viajantes, sempre o foram, mas neste período a viagem intensifica-se e a sua amplitude é intercontinental – depois do descobrimento dos novos mundos, veio a necessidade de tirar partido das suas matérias-primas, e isso fez-se num primeiro passo através do conhecimento científico.
Clúsio, no século XVI, durante o seu périplo botânico pela Península Ibérica, descobriu em Lisboa um exemplar de dragoeiro, no jardim de um convento de religiosos agostinhos. A partir desse exemplar, redige a primeira descrição da espécie, que fica na História da Ciência. No período pombalino, temos Domingos Vandelli a redescrevê-la, na sua Dissertatio de Arbore draconis. Vandelli gostava dos dragoeiros, espécie endémica das ilhas da Macaronésia, mas que viajou um pouco para todo o mundo, já desde o tempo dos Descobrimentos, como se deduz da descrição de Clúsio. Vandelli importou-os como árvores ornamentais, pelo que chegou a ser criticado no seu tempo por ter enchido Lisboa de dragoeiros. A espécie foi incluída no Systema Naturae e por isso ficou com a autoria de Lineu. Lineu, e não Pombal, é o astro que ilumina a História Natural, fundada agora no Systema, a obra fundamental do naturalista sueco.
Havia muitos naturalistas em campo no tempo de Pombal; eles começam a sistematizar o conhecimento da Natureza sobretudo em colaboração com a Universidade reformada em 1772. Com a expulsão dos jesuítas e o encerramento de escolas, o país vira-se com graves problemas no Ensino. Daí a importação de professores, um dos quais, Domingos Vandelli, vindo da Universidade de Pádua, terá papel absolutamente revolucionário na História Natural do nosso país, para além de ações importantes no campo da política, e noutros. Vandelli veio para Lisboa chamado pelo próprio Pombal, com o fim de dar aulas numa instituição que não vingou, o Colégio dos Nobres, no lugar onde hoje funciona o Museu Nacional de História Nacional e da Ciência, em Lisboa. Mais tarde passa para a Universidade de Coimbra, onde terá de medir forças com o Marquês, para o convencer de que a reforma exigia um jardim botânico, e não apenas um horto para cultivo de plantas medicinais, como Sebastião José de Carvalho e Melo teimava ser mais do que suficiente para as aulas de Medicina. O Jardim Botânico da Universidade de Coimbra, no seu essencial, permanece ainda hoje como Vandelli o projetou. Outros fundou além deste: o do palácio do Marquês de Angeja, onde funciona o Museu do Traje, em Lisboa, e o Jardim Botânico da Ajuda, outrora adstrito ao Palácio da Ajuda e hoje ao Instituto Superior de Agronomia.
Além dos jardins botânicos, outras instituições foram reclamadas para atingir os objetivos da reforma, a mais importante das quais foi o Laboratório Químico, onde Vandelli formou os mais conhecidos discípulos, aqueles que partiriam para as «conquistas», como ele escreve: João da Silva Feijó para Cabo Verde e Guiné, João Álvares Maciel para Angola e Brasil, onde terá a oportunidade de industriar o Tiradentes nas ideias independentistas, Manuel Galvão da Silva para Moçambique e Brasil, e o mais estudado deles, por lhe ter cabido a Amazónia, Alexandre Rodrigues Ferreira. Entretanto, aquele que é famoso já sem relação conhecida com o seu mestre, José Bonifácio de Andrada e Silva, foi o descobridor e autor da descrição de várias espécies mineralógicas, entre elas a petalita, da qual se extrai o lítio. Deu aulas de Metalurgia, cadeira criada expressamente para ele. Porém não é por causa do lítio nem das aulas de Metalurgia que José Bonifácio é o mais famoso de todos, sim por ser o patrono da independência do Brasil. Deixando de lado esse assunto, informo que uma filha sua casou com Alexandre Vandelli, filho de Domingos Vandelli, que faria no Brasil um resto de carreira.
Falta a terceira importante estrutura de ensino para se passar do magister dixit à observação e experimentação, o museu de História Natural. Havia muitos, em casas particulares, porém cabia-lhes mais apropriadamente a designação de “gabinetes de curiosidades”. Como instituição académica, fundou-se então na Universidade de Coimbra o Museu de História Natural, em boa parte constituído pelo museu particular de Domingos Vandelli, que juntara muitos exemplares, uns comprados, outros obtidos por permuta, e a maioria coligida por ele nas suas viagens por Itália. Realmente o Estado não comprou o museu de Vandelli, trocou-o por um terreno no leito do Mondego, em Coimbra, negócio que só granjeou dissabores e despesas ao professor paduano.
Ora, para remate da minha intervenção, vou ler o índice de uma obra que julgo nunca ter sido publicada – tive eu esse projeto mas deixei-o de lado. A obra existe apenas como manuscrito vermelho na Academia das Ciências de Lisboa. Está assinada com as iniciais D.V., Domingos Vandelli, é um maço de 190 páginas, datado de 1779, intitulado Viagens Filosoficas ou Dissertação Sobre as importantes regras que o Filosofo Naturalista, nas suas peregrinações deve principalmente observar. Frei Vicente Salgado, no final, assina, com a informação de que copiara o manuscrito em 1796. Este manuscrito, que pus em linha no Triplov, julgo eu que era a sebenta pela qual aprenderam todos os discípulos de Domingos Vandelli.
Leituras
Domingos Vandelli (1779) – Viagens Filosoficas ou Dissertação Sobre as importantes regras que o Filosofo Naturalista,
nas suas peregrinações deve principalmente observar. Por D.V.. 1779 . Manuscrito conservado na Academia das Ciências de Lisboa. Em linha no Triplov:
https://www.triplov.com/hist_fil_ciencia/vandelli/viagens/index.html
Domingos Vandelli (1768) – Dissertatio de Arbore Draconis, seu Dracaena. Accedunt: Dissertatio de Studio Historiae Naturalis Necessario in Medicina, Oeconomia, Agricultura, Artibus, & Commercio; et Conspectus musei Dominici Vandelli. Lisboa.
Domingos Vandelli – ver artigos dele e sobre ele no Triplov, em: https://www.triplov.com/hist_fil_ciencia/vandelli/index.html
Fernando Taveira da Fonseca (s/d), O Jardim Botânico no contexto da Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra (1772). Em linha: https://core.ac.uk/download/pdf/304707438.pdf .
José Pinto Casquilho (2010) – Entre a terra e o céu: árvores sagradas. IX Colóquio Internacional «Discursos e Práticas Alquímicas». Revista Triplov, Nova Série, Tomo IV. Em linha: http://novaserie.revista.triplov.com/numero_04/index.html
Maria Estela Guedes (1997) – João da Silva Feijó: viagem filosófica a Cabo Verde. Asclepio, Vol. XLIX-1-1997, Madrid.
Maria Estela Guedes (2008) – O apocalipse de Domingos Vandelli. In: “GabineteTransnatural de Domingos Vandelli”. S/l [Coimbra ] Artez. 2008. Org. de Paulo Bernaschina, p. 135-144. Catálogo da exposição homónima no Museu Nacional de História Natural. Rio de Janeiro. Outubro de 2008-Janeiro de 2009.
Maria Estela Guedes & Nuno Marques Peiriço (2000) – O gaio método. Actas do Congresso Luso Brasileiro “Portugal-Brasil: memórias e imaginários”, v. II, 2000.
Teresa Nobre de Carvalho (2014) – Notícias sobre os dragoeiros de Lisboa. A árvore ferida. E2014, em linha:
https://www.meer.com/pt/11657-noticias-sobre-os-dragoeiros-de-lisboa
Veridiana de Azevedo Boschiroli (2006) – O naturalista Manuel Galvão da Silva. UNIRIO. Em linha:
https://eeh2012.anpuh-rs.org.br/resources/rj/Anais/2006/ic/Veridiana%20de%20Azevedo%20Boschiroli.pdf