A resistência da Natureza ao amontoar da energia no Universo

 

A.M. AMORIM DA COSTA

Dept. Química, Universidade de Coimbra . Coimbra – Portugal
acost@ci.uc.pt


 1. Os medos da Natureza 

A Natureza age com base no medo? Os medos da Natureza, as suas “fobias” serão mesmo as leis naturais que regem o Universo? Serão elas a expressão, no dia a dia, da vontade divina em acção?

Não foi fácil, nem curta, a caminhada do homem até se afirmar-se como ser distinto e autónomo da própria Natureza. Indeciso entre o mundo visível que o rodeava e de que toda a sua vida parecia depender, em simbiose aceite e não por si criada,  e um ser que o transcendia, que não via, mas em que acreditava e a quem prestava culto e vassalagem., aceitando-o como seu deus e senhor, o caminho do homem fez-se durante muitos e muitos séculos, sem que conseguisse diferenciar-se da natureza, aceitando que a constante mutabilidade desta era também uma característica da sua própria humana.

No dizer de Heráclito de Éfeso (535 a.C – 475 a.C), o homem seria tão mutável quanto o cosmos no qual está inserido, não havendo distinção entre um e outro[i].

Durante séculos a fio, a Natureza for para o homem a “Mãe Natureza”, a fonte e origem  da fertilidade, dos ciclos e do cultivo. Imagens de uma mulher representativa da mãe terra, da mãe natureza, são atemporais.

Já no século XVI, La Complainte de Nature à l’Alchimiste errant[ii] é disso claro e expresso testemunho: o homem, o verdadeiro filósofo, o alquimista que opera e trabalha de todos os modos e em todos os momentos, no fazer da “Obra Magna”, nada faz que não seja em coerência total com a Natureza e seguindo todos os cânones e modalidades que ela lhe dita.

“Toda a acção natural é engendrada pela Natureza e nada nem ninguém o consegue fazer melhor nem por método mais apropriado, como o disse Leonardo Da Vinci ao debruçar-se sobre o texto  de Jean Pérreal.

Subjugado à força da Natureza a que se sente ligado simbioticamente, o Homem  projecta nela os seus próprios medos e fobias  e neles procura a razão de ser para tudo quanto vê acontecer à sua volta.


Hilozoismo

Sem conseguir diferenciar o seu modo de ser e existir do modo de ser e existir da Natureza, não surpreende que uma das primeiras e grandes concepções do universo tenha sido o chamado hilozoísmo (do grego hyle, matéria, e zoo, vida), uma concepção da matéria que considera ser o Universo todo ele um ser vivo, e, por extensão, toda a Natureza: toda a matéria do universo é viva, sendo o próprio cosmos um organismo material integrado, onde toda a acção se deve a forças imanentes à própria Natureza.

Os hilozoístas consideram que toda a realidade, inclusive a inerte, está dotada de sensibilidade  e, portanto, animada por um princípio activo.

Na origem desta doutrina estão os filósofos da da escola jônica, na Antiga Grécia (séculos VII-VI a.C.),  conhecidos comummente como os filósofos pré-socráticos. Depois deles, mas ainda na Antiga Grécia, os Estoicos consideravam também que toda a matéria era não apenas activa como  viva, isto é, dotada de espontaneidade sensibilidade.

Esta ideia hilozoísta sobreviveu ao longo dos séculos e encontrámo-la defendida em muitos pensadores do mundo Ocidental e não só. Só o mecanicismo dos filósofos modernos a combateu e tem combatido com eficácia bastante. Mesmo assim, ainda hoje é atractiva e sedutora a chamada «hipótese de Gaia» também conhecida como hipótese biogeoquímica, avançada pelo britânico James Lovelock (1919-?) na década de sessenta do século XX: “A Terra é um ser vivo do qual somos o sistema nervoso” defendendo a chamada “ scala naturae (“escada da natureza”) ou, a cadeia dos seres, segundo a qual todos os organismos podem ser ordenados de maneira linear, contínua e progressiva, começando pelo mais simples até alcançar o mais complexo, que normalmente se identifica com o ser humano[iii].

Pensada como «um grande organismo vivo», a Natureza era tida como um grande deus, a grande força que determinava e comandava todos os acontecimentos do Universo. O seu agir teria sempre como móbil de acção o amor e o ódio; seria sempre uma acção consertada de sedução e horror, determinada pela dicotomia dos opostos que se atraem irresistivelmente e dos iguais que se repelem por ser impossível a sua natural reconcialização.


  1. O Horror ao vácuo

A expressão “a natureza tem horror ao vácuo”, é uma expressão nascida na Idade Média para explicar o movimento, na sequência de teorias que vinham da Antiguidade grega: uma porção de matéria retirada de qualquer lugar logo seria ocupada por outra.

No século V a.C. Parménides de Eléia dizia ser o universo preenchido completamente pela presença do “ser”, o eon, aquilo que dá sentido à existência das coisas materiais. O vazio absoluto seria uma contradição lógica ou o “não- ser”, cuja existência não fazia qualquer sentido e seria de todo impossível. A simples ideia de que em algum lugar no espaço haveria o “nada” foi apodada por muitos de absurda, dando origem a uma celeuma que se manteve ao longo da história da ciência entre os que defendiam a existência do vácuo e os que acreditavam que haveria sempre alguma coisa permeando tudo. Ao longo dos séculos, adeptos da ideia do vácuo e plenistas,os defensores da matéria omnipresente, degladiaram-se em fóruns académicos, trocando os seus argumentos em prol ou contra a existência do vazio e a sua natureza[iv].

Ainda na Grécia, pelos anos 420 a.C., Leucipo e Demócrito, seu aluno, tentaram explicar a essência de todas as coisas com base naquela que podemos considerar a primeira  teoria atómica, defendendo que  todas as coisas  seriam  compostas de átomos, partículas indivisíveis, que teriam existido sempre e sempre existiriam, inalterados e diferindo entre si pelas suas formas geométricas. Estas partículas juntar-se-iam, ao acaso, formando a matéria e não permitindo que existisse entre elas qualquer coisa. Tudo quanto poderia existir entre ela era o vazio, o vácuo. Nesta sua concepção, a matéria seria um conjunto de átomos impenetráveis, em contínuo movimento no espaço vazio. “Sem o vácuo –  diziam  – não poderia haver  movimento”.

Pouco tempo depois, Aristóteles (385-323 a.C), na sua Física, obra com oito livros, combateu acerbamente as ideias “atomistas” de Leucipo e Demócrito e seus sequazes negando por completo a existência do vácuo e não admitindo sequer a sua própria possibilidade. E fê-lo apoiando-se na experiência da queda dos corpos. Os corpos ao caírem sofrem uma resistência do meio em que caem, resistência do ar, da água, etc. Alguns meios oferecem maior resistência que outros, mas nunca é nula; é ela que limita a velocidade da queda. Se houvesse vácuo, os corpos não encontrariam resistência alguma e a sua velocidade de queda cresceria indefinidamente chegando a uma velocidade infinita.

Ao concluir que o vácuo não poderia existir, ele consagrou esta sua conclusão numa expressão que perdurou como crença inquestionável durante longos e longos séculos, afirmando que a Natureza tem horror ao vácuo. A sua negação do vácuo e a sua afirmação clara de que a Natureza tem horror ao vácuo, tal como o resto da sua filosofia, foram  aceites, sem grande objecções, nem alternativas, no mundo ocidental,  durante toda a Idade Média. É já no século XVI que assistimos ao reviver da polémica pré-Aristóteles sobre o vácuo, que se manteve com discussões acesas, particularmente no século XVII e se mantiveram nos séculos seguintes e, podemos dizê-lo, ainda hoje não conseguiram atingir um consenso geral entre os estudiosos. Para a discussão, muito contribuiu, nomeadamente, todo o questionamento sobre a possibilidade de o ar ter ou não ter peso e exercer ou não pressão.

Sem entrar em grandes pormenores sobre as questões não consensuais com que s debate, ainda hoje, a chamada física do vazio, não podemos deixar de referir alguns marcos importantes que marcam o seu desenvolvimento, nomeadamente, os estudos de Simon Stevin (1548 – 1620) mostrando  que os corpos imersos na água são pressionados por todos os lados, e os estudos do seu aluno, Isaac Beeckman (1588–1637), considerando, por analogia, que o mesmo poderia ocorrer, com a imersão dos mesmos no ar. Num caso e noutro, a matéria seria impulsionada pelo ar como pela água, em direção aos espaços vazios. Isso ocorreria, por exemplo, em bombas de água, segundo Beeckman. As bombas de aspiração, já conhecidas pelas civilizações antigas, conseguiam elevar uma coluna de água até determinada altura. Durante muito tempo, os estudiosos do fenómeno explicavam-no com base do princípio afirmado por Aristóteles de que “a natureza tem horror ao vácuo” : como não poderia haver vácuo entre o êmbolo da bomba e a coluna de água, esta seguia sempre o êmbolo. A explicação foi aceite sem contestação por muito tempo, por parte da maioria dos estudiosos do fenómeno, entre os quais se conta Galileu..

Já no século XVI, o italiano Giovanni Baliani (1582-1666) ao tentar transferir água de um reservatório situado nos baixios de um vale para um outro colocado num ponto bem mais alto, usando o método que então era tradicional, o conhecido método do sifão, enchendo um tubo com água, fechando as suas extremidades e abrindo-as já quando ambas estavam mergulhadas dentro dos dois reservatórios, verificou que a transferência não se dava, não obstante as repetidas tentativas para obviar a todos os pormenores que era preciso cumprir. Tentando encontrar uma explicação para o fracasso, levou o problema a Galileu-Galilei que debruçando-se sobre o assunto, atribuiu à altura entre os reservatórios a causa do que estava a acontecer. Para Galileu, a Natureza no seu horror ao vazio, teria uma força limitada, já que as porções de matéria dentro do sifão tendiam a ficar juntas de forma a evitar o vazio. Devido a essa juntura, a força do vácuo não seria capaz de as vencer para além duma certa altura, altura essa que a experiência mostrava ser cerca de 10m, a partir da qual a coluna de água se romperia. 

Embora reconhecendo a sumidade e a autoridade de Galileu no domínio de questões científicas, a razão pela qual a ele recorrera em busca de uma explicação para o não funcionamento do seu sifão para elevar água entre dois pontos num vale cuja diferença de altura rondava os 20m, G. Baliani não ficou de todo satisfeito com a resposta do Piseano. Na sua opinião a questão continuava em aberto e exigia um estudo mais minucioso para melhor fundamentar uma explicação mais cabal. De facto, esse estudo manteve-se na ordem do dia.

Interessado por estas questões, Evangelista Torricelli (1608-1647) realizaria, em 1644, uma experiencia que se tornou notável: encheu um longo tubo de vidro com mercúrio, fechou sua abertura e emborcou-o dentro de uma bacia, também com mercúrio. Verificou que a coluna do líquido dentro do tubo desceu até certo ponto e parou. No topo do tubo, portanto, ficava uma área aparentemente sem nada. O que havia lá? Eis a pergunta que intrigou os observadores. O próprio Torricelli não se arriscou a dizer que a resposta era o vácuo; mas supôs que o efeito era devido à pressão do ar sobre o mercúrio da cuba, que “empurrava” o mercúrio no tubo até um certo ponto – que é a explicação actual. Ele também notou que a altura da coluna de mercúrio variava de um dia para outro: era como se “o peso” do ar variasse. Estava esboçada a noção de pressão atmosférica e o princípio de funcionamento do barómetro. A experiência de Torricelli ficou tão famosa que foi repetida por inúmeros outros curiosos por toda a Europa. Em 1646, na cidade de Rouen na França, Pierre Petit fez uma experiencia semelhante para o conterrâneo Etiénne Pascal, pai de Blaise Pascal(1623-1662). O jovem Blaise Pascal (1623-1662) ficou verdadeiramente impressionado com essa experiencia. Reflectindo sobre o que nela vira, produziu várias as anotações e reflexões, que relatou em carta dirigida a M. Périer, datada de 15.Nov. de 1647, que se tornaram num precioso contributo para a definição do conceito da pressão atmosférica. Nela refere sobre o vazio: “este é o sentir de todos os filósofos sobre esta matéria; todos adoptam a máxima que a natureza tem horror ao vácuo e indo mais além, quase todos defendem que ela não o pode admitir e que se auto-destruiria antes de suportá-lo”[v].

De facto, defensor do éter, uma “matéria sutil que tudo permeia”, Descartes duvidava que na experiencia de Torricelli fosse o vácuo o que restaria no espaço no topo do mercúrio depois deste se ter esvaziado um pouco com regresso à cuba em em que a coluna estava mergulhada. Num estudo que intitulou “Novas experiências sobre o vácuo”, datado de 1647, Descartes afirma ter dado a Pascal a ideia de testar o barómetro no alto de uma montanha. A experiência foi feita pelo cunhado de Pascal comprovando a redução da pressão atmosférica com o aumento da altitude. Pese embora a discussão que então se gerou sobre a ideia da realização desta experiencia, com Descartes a afirmar que fora ele quem a sugerira, e Pascal a dizer que ela fora uma iniciativa sua, a conclusão de que a pressão variava com a altitude foi um precioso contributo para a sua compreensão do fenómeno e a força da pressão, base da explicaçao avançada por Torricelli.

Descartes continuou fiel à sua própria explicação. Continuou a defender acerrimamente a não-existência do próprio vácuo pois que, na sua opinião, o nada não pode existir e seria absolutamente impossível a existência de um espaço no qual não houvesse nada. Em seu lugar, defendia a existência do  éter, uma “matéria subtil” que tudo permeia”. Estava lançada a polémica sobre a existência do próprio vácuo e consequentemente sobre o “horror que a Natureza lhe vota”.

A opinião de R. Descartes, ganhou de imediato grande número de sequazes, voltando-se, pouco a pouco,  à tese de Aristóteles, o vácuo não existe; o perfeito vazio, um lugar completamente desprovido de matéria, é de todo impossível, e não há equipamento capaz de o produzir, pois não é possível reduzir a matéria, num certo volume, a zero.

Com o tempo, tornou-se possível  produzir um vácuo, que permitiria fazer demonstrações  espetaculares sobre fenómenos diversos que nele ocorrem, por exemplo, mostrar que a chama de uma vela se extingue no vazio ou que o som não se propaga no vácuo, etc.

A experiência de Magburgo, conhecida pela experiência dos «Hemisférios de Magdeburgo» de Otto Von Guericke, em 1672 com dois hemisférios de metal com juntas de vedação de couro, donde se extraira todo o ar possível depois de devidamente justapostos, tornando muito difícil separá-los não  seriam suficientes para provar o contrário. A utilização de oito cavalos puxando cada um dos hemisférios para separá-los, conseguiria a separação, com um grande estrondo!

Em 1657, Robert Boyle (1627-1691), informado dos estudos de Torricelli e de Guericke, aperfeiçou a bomba de vácuo de Guerick, colocando um barómetro na câmara de vácuo, com o qual podia fazer subir e descer a coluna de mercúrio desse instrumento, bastando para isso alterar a pressão atmosférica. Com este dispositivo realizou uma série de experiências medindo o volume de ar, sob várias pressões que o levaram a concluir que o produto desses volumes, pelas pressões correspondentes, era constante., conclusão essa confirmada pelo abade francês Edme Mariotte (1620-1684) e que ficou conhecida por lei de Boyle-Mariotte. Mas não conseguiu dizer muito mais sobre a existência do próprio vácuo.Nem as melhores bombas de vazio que se têm desenvolvido com um aperfeiçoamento e eficácia crescentes podem provar que conseguiram  o vácuo absoluto.

Quer dizer, depois das afirmações filosóficas de Aristóteles, na Antiguidade, e das polémicas suscitadas  por R. Descartes com a sua afirmação da não existência do vácuo absoluto e seu refúgio na afirmação da existência de um  “ éter”, uma matéria universal que permeia tudo quanto existe, a conclusão parece ser consensual: o vácuo absoluto não existe e consequentemente não faz sentido algum dizer que “a natureza tem horror ao vácuo”. Não faz qualquer sentido ter horror ao que nem sequer existe, e muito menos explicar seja o que for com base num tal horror!


4.Do horror ao vácuo ao horror do amontoar de energia

Todo o desenvolvimento doutrinal anti-vácuo que acabámos de referir deu-se, primeiro  no quadro da Física Aristotélica com um universo concebido como composto de um mundo sub-lunar, e um supra-estelar, o  mundo das estrelas fixas; e, depois, no quadro da Física Newtoniana. Num caso e noutro, não foram considerados os problemas trazidos para a ribalta pela Física e pela Química Quânticas desenvolvidas a partir de finais e início do século XX, nem da visão cósmica que entretanto se desenvolveu.

A novidade da nova cosmovidência daqui nascida, torna legítimo que nos perguntemos: será que o vácuo não poderá existir na incomensurável vastidão da esfera das estrelas fixas, lá longe em qualquer estrela? Será que ele não poderá existir, porventura, no mundo subatómico, onde é forçoso admitir a existência de fenómenos que a mecânica clássica nunca previu, mas que a mecânica quântica tem como possíveis e com consequências reais que é impossível negar? Está em causa, a revisão do próprio conceito de vácuo e com ela, a revisão  do sentido da afirmação “a natureza tem horror ao vácuo”[vi]

É o que vários estudiosos têm tentado nos últimos anos, referindo o que chamamos o vácuo quântico, um meio referenciado não como um meio onde não existe nada, mas um meio onde existem flutuações e energia tão pequenas e efémeras que ainda se não consegue extrai.las ou transformá-las; um meio que não pode ser tratado em termos da Mecânica Clássica que descreve satisfatoriamente os fenómenos do mundo macroscópico, mas apenas recorrendo à Mecânica Quântica a que recorremos para descrever e compreender satisfatoriamene os fenómenos do mundo sub-atómico. E por isso nos referirmos a ele como o vácuo-quântico.     

Muito recentemente. G. Todelli, no seu livro Génesis, discorrendo sobre a teoria do Big Bang, uma teoria que não sendo  de modo algum senão uma hipótese,  ainda com um grande número de opositores, é a teoria que hoje melhor parece explicar a origem do universo, reconhece não ser possível discutir o modo como nasceu o Universo, não importa qual seja a teoria mais sedutora ou cientificamente mais convincente para o fazer, sem discutir o que seja o vazio, como não é possível fazê-lo sem nos interrogarmos como nasceu o espaço-tempo  e qual seja o seu fim. Vamos servir-nos aqui, com o devido reconhecimento das suas considerações sobre o assunto[vii].

Começa por afirmar: “ao debruar-nos sobre a origem do universo, é forçoso que se pergunte: o que havia antes do universo nascer? E a resposta mais óbvia que a teoria oferece é “o universo nasceu do vazio”, um vazio que não é o nada, mas sim “como sistema físico, o seu contrário” (…) “um sistema material especial em que matéria e energia são nulas”, “um sistema que não obstante ter energia nula, é um sistema físico como todos os outros, passível de ser medido e caracterizado cientificamente, se não em termos deterministas da Mecânica Clássica, em termos do Princípio de Incerteza da Mecânica Quântica[viii].

De facto, cientificamente, em termos teoria da relatividade com a professada equivalência entre massa e energia traduzida na famosa fórmula E = mc2, a energia pode transformar-se em matéria e a matéria em energia. A nível da física quântica, as relações de incerteza, que afectam as flutuações de energia nestas transformações, desaparecem tão rapidamente que, caracterizadas na base do princípio de incerteza, ΔE x Δt < h,  há uma violação da lei da conservação da energia porque a variação de energia multiplicada pelo intervalo de tempo da sua existência é inferior ao valor da constante de Planck, h=  6.62607015×10−34 J⋅s[ix].

Podemos dizer que nestas situações, as partículas reais de matéria ou energia, se propagam num quase-ambiente borbulhante, sensível às partículas materiais que podem transferir sua energia. Isto é o que os cientistas causam num grande acelerador de partículas,o“colisor”de Hadrões, quando um electrão ou um positrão se encontram, se aniquilam e transferem a sua energia dando origem a uma espécie de jazida inesgotável de matéria e anti-matéria em que quanto menor for a massa do par partícula/anti-partícula maior será o tempo de livre-trânsito que tem à sua disposição. Percutindo o vazio com a energia dos feixes em colisão , produzem-se novas partículas, tanto mais maciças quanto mais elevada for a energia dos feixes em colisão. Desta forma, consegue-se extrair do vazio grandes quantidades de partículas e com os objectivos mais díspares, desde os isótopos radioactivos usados como marcadores em medicina nuclear até aos bosões de Higgs, com um período de vida de 10−22 seg. produzidos e observados no grande acelerador de hadrões (LHC), do Centro Europeu de Investigação Nuclear, o CERN, em Genebra. como se conseguem as flutuações quânticas do vácuo que assumem a forma de uma geração espontânea de pares de partículas partículas/antipartículas, o vácuo quântico”, um meio muito especial de energia nula. Ao dizermos que se trata de um meio de energia nula, queremos dizer que realizando um número muito elevado de medições, se obtém zero como valor médio dos resultados. As medições individuais fornecem valores fluctuantes, ora positivos, ora negativos, que se distribuem numa curva estatística de valor médio nulo. Quanto menor for o intervalo no qual se efectuem a medições, maiores serão as flutuações de energia obtidas”[x],[xi] .

Por outras palavras: quando dizemos que “o vácuo quântico é um sistema de energia nula”, estamos a dizer que ele assim o é quando observado numa escala de tempos longos, teoricamente infinita”, não assim se a observação for feita em tempos muito breves, para os quais observaremos que ele, tal como acontece no caso de todas as coisas, no conjunto de todos os seus possíveis estados, incluindo os menos prováveis, que se caracterizam por energia significativamente pouco diferente de zero, ora positiva, ora negativa, com a formação temporária de vazio de bolhas microscópicas de energia nula, que desaparecem rapidamente. Quanto menor a energia envolvida, mais tempo essas bolhas resistirão, pois são bolhas anómalas.

Pensado e caracterizado deste modo, no mundo do microscópico, o vácuo quântico é não só “algo real, mas algo vivo, qual substância dinâmica, incessantemente mutável, mas cheia de potencialidades e “grávida” de opostos. Não é o nada”; não é um meio onde não existe nada; é um meio onde existem flutuações e energia tão pequenas e efémeras que ainda se não consegue extrai-las ou transformá-las. Já foram designadas “fantasmas quânticos”, mas são tudo menos fantasmas. São já vários Laboaratórios, v.g. o Instituto de Óptica Quântica da Universidade de Harvard, e o Instituto de Electrónica Quântica da Austria, para não mencionar outros mais, que estão no seu percalço, tentando medi-los. A hipótese de que o Universo possa ter surgido de uma flutuação quântica do vazio torna-se aceitável, pois não será senão considerar que no instante inicial da sua formação, a energia negativa devida ao campo gravitacional terá anulado totalmente a energia positiva devida à massa nele actuante, durante uma simples fluctuação microscópica.

O vazio assim definido e aceite como meio físico material possível é o caos original da teogonia de Hesíodo e de outras teogonias da Antiguidade, quer do mundo Ocidental, quer do Oriente. Este caos inicial, entendido como vazio, está longe de poder ser confundido com a desordem conotada com o significado original da sua terminologia grega, primeiro por obra de Anaxágoras e depois de Platão, para quem o caos era o recipiente original da matéria informe que esperava ser ordenada por um princípio superior, a Mente ou o Demiurgo, que na construção do cosmos daria a forma necessária a esse material vil e rude. Não há sistema mais rigidamente ordenado, regulado e simétrico do que o vazio quântico. Tudo nele está estritamente codificado; cada partícula material anda de mão dada com a correspondente anti-partícula; cada fluctuação respeita disciplinadamente os vínculos do princípio de incerteza; nele, tudo se move segundo um ritmo cadenciado e frugal, numa espécie de coreografia perfeita, sem improvisos nem virtuosismos”[xii].

Assim aceite e definido, temos que o aforismo de Aristóteles “a Natureza tem horror ao vazio” deve entender-se como “a Natureza tem horror à ordem”, o que muda por completo o que devem ser as nossas considerações sobre o seu significado.

Sucinta e resumidamente, com Dan Brown,no seu livro Origem, podemos dizer: “em linguagem científica, dizemos: um sistema organizado inevitavelmente deteriorar-se-á”[xiii].

Podemos elucidar esta afirmação com mil e um exemplos comezinhos. Seguindo as reflexões de Dan Brown neste livro que acabámos de citar, podemos concretizar com vários exemplos comezinhos. Pensemos por exemplo no que acontece naturalmente a uma trabalhosa, muito artística e bela construção feita na praia por um grupo de jovens, com um lindo castelo rodeado de várias figuras o mais realistas e perfeitas de soldados e cavalos a tentar assaltá-lo, tantas vezes com figuras históricas bem caracterizadas, sejam elas, em Portugal, as figuras de Afonso Henriques, Nuno Alvares Pereira, Afonso VI, ou qualquer outro vulto da nossa história ou fantasia… O vento que sopra em redor da construção, por pouco e mais brando que seja, ou a àgua das ondas que dela se aproximem, não descansam enquanto não destruírem e arruinarem por completo a bonita e quase perfeita construção! A Natureza logo que localiza os grãos de areia organizados naquela construção, não pára enquanto os não desorganizar por completo e os não espalhe outra vez por toda a praia.

Do mesmo modo, para continuarmos a referir exemplos tirados do discurso de Da Brown no livro em citação: quando aquecemos uma chávena de café, seja num micro-ondas ou usando uma outra qualquer fonte de energia, o que fazemos é concentrar energia calorífica na chávena e seu conteúdo; mas, logo que paremos o aquecimento e retiremos a chávena com seu conteúdo para local em que deixe de ser aquecida, ao fim de algum tempo, o calor, a energia calorífica, que nela se havia concentrado ter-se-á dissipado pelo meio ambiente onde se distribuirá uniformemente. E tudo isto num processo irreversível: não importa quanto tempo seja preciso esperar para que tal aconteça, o universo nunca re-aquecerá magicamente o café depois de arrefecido, como nunca recomporá um ovo quebrado ou reconstruirá um castelo de areia que destruiu[xiv]. É o funcionar natural daquilo que a ciência, a  Química e a Física, designa por entropia, o dispersar natural da energia pelo universo, num evoluir natural da ordem para a desordem, num dispersar contínuo de energia. O seu estudo e caracterização, na sequência dos estudos de Rudolf Julius E.Clausius (1822-1888) quem, em 1865, utilizou pela primeira vez, o conceito, estão consagrados no chamado Segundo Princípio da Termodinâmica. “A entropia destrói a estrutura e cria o caos”. A entropia é uma forma elegante de dizer, em linguagem científica, que as coisas se desfazem naturalmente. Dizemos «um sistema organizado inevitavelmente deteriorar-se-á». Vivemos num universo entrópico: Quando nele se encontram áreas de concentração de energia, a Natureza como que dominada por um sentimento de horror, destrói-as, espalhando o mais possível a energia que nelas existe. A entropia reina em toda a Natureza e o universo está constantemente a desintegrar-se no sentido da desordem”. Uma realidade cujas leis da física aleatorizam, não organizam”[xv]. A Natureza tem horror à ordem, ao acumular de energia e tudo faz para a dispersar.

O vácuo como acima o definimos e aceitámos é um fenómeno contra-natura, como o são a vida, e todo e qualquer edifício que construimos por mais tosco ou artístico que seja, dado o seu conteúdo de ordem e não desordem.

Contra natura, há, todavia, no universo forças que se opõem a este dispersar natural da energia na Natureza. No seu esforço de promover a desordem, paradoxalmente, a Natureza cria aqui e ali, pequenas bolsas de ordem, diríamos, para ter o prazer de as poder destruir.A vida é uma dessas bolsas, podendo tomar-se como uma ferramenta excepcionalmente eficaz para que possa dissipar energia que nela se concentra[xvi]. E não é o único exemplo de criação de ordem no universo. O  nosso cérebro na organização contínua do ser humano é também ele um exemplo que contraria o natural agir da Natureza; a força directiva da sua acção é a força  directiva da organização de qualquer ser vivo. Contudo, há quem pense que os fenómenos da natureza em que um conjunto de moléculas se organizam, numa evolução de mais-ordem não passam de estruturas ditas dissipativas, através das quais a Natureza actua de modo a criar desordem de forma eficiente porque para criar desordem é preciso haver alguma ordem: pequenas bolsas de matéria cuidadosamente organizada são necessárias para se poder criar o desordenado. A vida, uma forma altamente organizada na natureza é uma forma excepcionalmente eficaz para dissipar energia, mas também e simultaneamente, para a dissipar, não importa o grau ou a forma em que se apresente, pois que a Natureza sob acção do seu horror à ordem, não desistirá no seu esforço enquanto não a destruir.

No mundo dos seres vivos, o Homem, é porventura o mais imaturo de todos aquando  do seu nascimento. Nasce com um cérebro que tem um grau de potencialidade muito superior ao cérebro de qualquer outro ser vivo, mas quando nasce está numa fase muito menos desenvolvida com o que acontece, comparativamente com a maioria dos outros seres vivos. De facto, quando comparado com qualquer outro animal, ao nascer ele parece ser muito mais incompleto que qualquer outro animal no momento do seu nascimento, relativamente a um grande número das capacidades que se desenvolverão com o decorrer do tempo, dando a impressão que nasceu antes de estar completamente formado: são precisos meses e até anos, para ser capaz de andar por si só; para ser capaz de nadar, para ser capaz de falar, para ser capaz de reconhecer e identificar visualmente o pai, a mãe, e distinguir entre os muitos seres que o rodeiam, vivos ou não. Qualquer animal horas depois de nascer, é capaz de assumir aquela que será a sua posição esquelética no resto de toda a sua vida, seja ela o eréctil ou outra qualquer; qualquer animal, horas depois de nascer, é capaz de se mover com a independência que exibirá ao longo dos tempos como sendo a sua. O homem, não: vem ao mundo prematuramente; nasce imaturo e demorará anos a fazer-se em muitas das valências que só conseguirá desenvolver com o decorrer de vários anos.

Podemos perguntar-nos: tudo isto acontece porque a Natureza é madrasta para com ele? Não temos razões para o afirmar. Numa consideração meramente filosófica, diríamos que o homem vem ao mundo por fazer porque faz parte da sua estrutura fazer-se: nós humanos andamos no mundo a fazer-nos e nunca conseguiremos fazer-nos completamente. Mesmo na hora da morte não poderemos dizer que estamos completamente feitos. Temos de fazer por cultura o que a Natura não fez por nós[xvii]. Como observou a bioquímica e neurologista italiana de origem judaica, Rita Levi-Mentalcini (1909-2012), prémio Nobel da Medicina em 1986 pela sua descoberta do chamado Factor de Crescimento das células nervosas, «a razão é filha da imperfeição. Nos invertebrados tudo está programado: são perfeitos. Nós não. E ao sermos imperfeitos, temos recorrido à razão, aos valores éticos: discernir entre o bem e o mal é o mais alto grau da evolução darwiniana»[xviii]. Este desenvolvimento supletivo é dirigido pelo seu cérebro que ao desenvolver-se se torna ele próprio na força directiva do desenvolvimento das variadas possibilidades não manifestas desde os primeiros instantes, mas potencialmente presentes na sua natureza desde o início. O desenvolvimento do cérebro no homem é a força motriz que se opõe ao dispersar de energia para onde Natureza o arrasta que acabará por terminar quando essa força motriz já não for suficiente para se opor eficazmente ao poder destrutivo desta. O nosso corpo enquanto vivo é um artefacto de energia organizada mantido pelo nosso cérebro, opondo-se continuadamente a forças naturais, a Natureza, que tendem, a cada momento, destrui-lo, até o conseguirem anular por completo, acabando por declarar a sua morte. E o que se passa com o homem passa-se com os demais seres vivos. Em todos eles há uma força criadora de ordem que actua no sentido contrário da força entrópica da Natureza, destruidora da ordem e criadora de desordem no horror que tem à concentração de energia. A evolução do universo do inanimado para o animado, do mais desordenado e mais simples para o mais complexo e ordenado só foi possível, e continua a sê-lo, graças a forças específicas que contradizem e actuam em sentido contrário às forças que determinam a actuação ´normal` da mãe-Natureza. No processo organizativo da nossa vida e sua manutenção contínua, o nosso cérebro luta a todo o momento contra o processo entrópico do universo em que a Natureza se bate constantemente contra o amontoar da energia, seja onde e como for.


[i] John Burnet, Filosofia Grega Antiga ( Londres, A. & C. Black, Ltd., 1830), pp. 143–144.

[ii] Jean Perréal, La Complainte de Nature à l’Alchimiste errant, dedicada a François 1er (Paris, 1516, Musée Marmottan, coll. Wildenstein, ms. 147).

[iii] J. E. Lovelock, Gaia as seen through the atmosphere in  Atmospheric Environment, 1972, 6 (8): 579–580.

[iv]Fabio Reynol e Roberto Belisário, A Física do Vazio in Divulgacion y Cultura cientifica Iberoamericana in https://www.oei.es/historico  (acesso em 23 agosto, 2020).

[v]Dayison de Mello Silva, A natureza tem horror ao vácuo? Uma reflexão sobre o estabelecimento do peso do ar e a definição de pressão atmosférica, Monografia, Universidade Estadual de Maringá, Centro de Ciências Exatas,2013.

[vi] Roberto A. Stempniak, A Ciência e a Tecnologia do Vácuo, (Sociedade Brasileira de Vácuo FACAP/CDT – Faculdade de Ciências Aplicadas de São José dos Campos, SP, 2002).

[vii]Guido Tonelli, Génesis, a história do Universo em Sete dias  (Ed.Giancomo Freltinelli, Milão,2019; Trad. Port.: Grupo Editorial Unipessoal,Lda, Lisboa, 2020), ed.Portuguesa, pp.14ss.. 

[viii] Idem,pp.49-51.

[ix] Idem,pp.51-52. 

[x] Idem, pp.51-54, passim.

[xi]Oliver Morsch, Fluc­tu­a­tions in the void, in ETH Zurich, April, 11, (2019) (cf. http://www.astronoo.com/pt/artigos/vacuo-quantico.html. (acesso em 12 Agosto 2020).

[xii]Guido Tonelli, o. cit.,p.55

[xiii] Dan Brown, Origem, (trad. Port: Bertrand Editora,Lda, Lisboa, 2017), cp.92, pp. 469-473.

[xiv]Idem, p.470.

[xv] Idem, pp.469-474, passim.

[xvi] Idem, pp. 475-476

[xvii] Anselmo Borges, Ciência e Religião: Deus ainda tem Futuro?, palestra,a 27 de março de 2019, 18h00, no Rómulo Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra; Idem in Ciência e Religião: Deus ainda tem Futuro?,  (Lisboa, Edições Gradiva, 2014).

[xviii] Cris Mendonça, Rita Levi-Mentalcini: a dama da ciência in crismendoca.com.br/post/52, (acesso em 8.Set.2020).