A propósito de televisão

 

NICOLAU SAIÃO


Desde há cerca de trinta anos que a denominada sociedade ocidental participa numa mutação tecnológica acelerada a que, por vezes, não consegue dar resposta adequada no campo espiritual. O nosso mundo conceptual transfigurou-se duma maneira brusca e tal facto tem condicionado o nosso universo de relação. Há factores exógenos e outros endógenos, nem sempre bem meditados ou enfrentados com perspicácia ou capacidade para bem gerir a vida colectiva. E não falamos agora, é claro, nas tentativas deliberadas de orientar a realidade em direcções que só acarretam prejuízos às populações.

Ora, a televisão, como meio privilegiado e totalizador a nível de comunicação de massas, reflecte com enorme relevo esse panorama inquietante.

Numa obra saída há já algum tempo, o pensador Alexander Himmelweit diz-nos a dado passo que “a visão do mundo apresentada pela televisão afecta o comportamento real dos telespectadores em função das tendências que se têm e que através dela são pois reforçadas. Verifica-se assim que a televisão orienta comportamentos pré-dispostos.”. O problema é que, como referia noutro estudo o sociólogo Alain Dickinson, “apanhada num fluxo turbulento de mudança, além de intelectualmente confusa, a pessoa sente-se desorientada no plano dos valores pessoais; à medida que o ritmo se acelera, à confusão juntam-se a dúvida acerca de si mesma, podendo comparecer a ansiedade e o medo. À medida que o tempo decorre, a pessoa torna-se tensa e chega a cansar-se com facilidade, ficando mais permeável à doença. Com o aumento implacável das pressões habilmente induzidas, a tensão transforma-se em irritabilidade e, por vezes, em cólera e até violência – que, por outros meios socialmente directos, o poder canaliza então em direcções que lhe interessam. Ninharias desencadeiam grandes reacções; grandes acontecimentos, reacções insignificantes”.

Ou seja, é-se objecto de arteira manipulação.

Antes de passarmos adiante gostaria de referir que recentemente, num dos laboratórios de ponta duma famosa universidade europeia, foi levada a efeito uma experiência com pessoas de várias etnias e de diversos níveis etários. E concluiu-se que a música – principalmente certo tipo de música – actua nos mesmos centros cerebrais onde actuam as drogas.

E, a talho de foice, pergunto: será por isso que nos últimos tempos, principalmente nos meios radiofónicos – aliás caracterizados por uma enorme mediocridade – são incessantemente emitidos programas musicais e, mesmo, maioritariamente entrevistados ou epigrafados protagonistas desse mundo (além, é claro, das consabidas rubricas sobre política partidária e futebol)?

De há uns tempos até agora, tem-se voltado a falar com intensidade na questão da violência veiculada pela televisão. Determinados próceres da política à portuguesa, com aprumo jesuítico têm vindo a lume com pezinhos de lã sugerindo diversas formas de controle (de censura, que é o que lhe subjaz) contra a violência que se exprime através de películas com tiros a granel e pancadaria de criar bicho. No entanto, com a sua efígie mesureira e hipócrita no limite, geralmente deixam de fora – claro! – outras formas graves de violência, mais disfarçada e insidiosa que, quando muito, tocam pela rama: o espectáculo da lagrimeta, do sentimentalismo bacoco e do humorismo que não passa de propaganda partidária/governamental mal-disfarçada, o apelo à contemplação do mexerico e da bisbilhotice, os trechos elementares ou boçais geralmente protagonizados por luminárias da frivolidade básica ou embandeirada do jet set. As rubricas de opinião ou de comentário que não passam de ideologia torcida, os talk shows pretensamente modernaços que se apoiam, notoriamente, num certo erotismo para primários que não é mais que pornografia manhosa e sem subtileza.

E não devemos esquecer que a pornografia, como o denotou Sarane Alexandrian e tantos outros, com a sua carga “comercialista” evidente, é um dos sinais típicos do recalcamento injectado pelo fideísmo eclesial ou partidário, essa suma violência dos espíritos em que se exprime a monomania.

Aproveitando-se dos traumas e dos preconceitos duma sociedade bloqueada ou disfuncional no plano afectivo, estas formas disfarçadas de violência, mas não menos mistificadora e perigosa, têm como objectivo criar audiências teledependentes, uma vez que estas são o suporte da publicidade, que é uma das faces do império dos negócios. E, quando digo império, quero significar o economicismo sem pudor e sem freio, não a legítima troca ou compra-e-venda que subjaz e conforma uma fase característica de existência societária.

O que, evidentemente, a manipulação televisiva tenta estabelecer, é a criação de seres supranumerários, em quem a docilidade é adquirida de maneira progressiva e serena, predispondo o grande público para a passividade, a ausência de calor humano, de solidariedade e a dispersão/banalização dos sentimentos, ligando-se a ideias colectivas sob a batuta de gurus e de condottieris cheios de lábia que, de forma suave e afectuosa, estabelecem o primado do justamente descrito como “urfascismo doce”, que um dos líderes do sinistro “Grupo Bilderberg” estabeleceu como sendo o efeito de “em vez de seres levado à matraca, és conduzido com jeitinho e ternura”…

A televisão, que podia ser um meio qualificado de comunicabilidade humanizada – e nos melhores casos (sem a velhacaria dos que com ou sem máscaras desprezam o cidadão e o ser humano por extenso) é de facto um veículo de qualidade (lembremo-nos por exemplo de notáveis documentários da BBC, dos concertos austríacos, das peças de teatro francesas e de alguns especialistas espanhóis e lusos) – tem sido levada por maus caminhos por esses émulos de pequenos goebbels que usualmente a conseguiram colonizar por obra e graça do politicamente correcto e do descaramento estatal que, nos casos mais sintomáticos e impudicos, tentam fazer de nós todos idiotas úteis

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