A propósito de “Epilepsy dance”, de Nuno F. Silva

 

FRANCISCO SARAIVA FINO


Francisco Saraiva Fino é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses, pela Universidade do Porto e mestre em Criações Literárias Contemporâneas pela Universidade de Évora, na especialidade de Teoria da Criação Literária. É colaborador do CEL (Universidade de Évora) e membro das Comissões de Espólio e de Edição da obra do poeta Daniel Faria, tendo sido responsável, nesse âmbito, pela edição de O Livro do Joaquim (2007 / 2019) e Sétimo Dia (2021). É autor de A Multiplicação do Espaço – Ensaios sobre a Poesia de Daniel Faria (Teórica Editora, 2020). Além de outros projetos de edição, é autor de ensaios e recensões publicados em revistas nacionais e internacionais. Desenvolve investigação nas áreas da poesia portuguesa moderna e contemporânea, na teorização crítica e nas relações entre discursos artísticos.


J’ai tendu des cordes de clocher à clocher, des guirlandes de fenêtre à fenêtre;
des chaines d’or d’étoile à étoile, et je danse.
Arthur Rimbaud, Illuminations.

 

Dancei num matadouro, como se o sangue de todos os animais que à minha volta pendiam degolados
fosse o meu. Dancei até que em mim houvesse espaço para um poema
de que todas as imagens depois fossem desertando.
Luís Miguel Nava, O Céu Sob as Entranhas.

No início do livro de Nietzsche, no momento da descida da montanha para junto dos homens, o velho eremita afirmava ter reconhecido Zaratustra pelas suas maneiras de dançarino. A dança da vida, a que reivindica “o ouvido nos dedos dos pés” (Nietzsche, 1988: 225), configura expressivamente a vertigem do abalo essencial à superação contínua do homem, tema caro à Modernidade. No registo do movimento próximo da terra e dos instintos, a revelação da liberdade do espírito circula, apressada, na corda instável que liga a organização apolínea à desrazão dionisíaca e percorre o caminho de regresso; o poeta moderno abraça as experiências da instabilidade com a sofreguidão de quem se sabe no trânsito entre as duas, escutando a experiência dos abismos com a mesma delicadeza palmar com que procura o equilíbrio de todas as sensações que consegue obter. A imagem do frenesi combina eficazmente a suspensão provisória da contemplação melancólica do mundo com a fundação sagrada da expressão das forças que precederam a harmonia cósmica. O corpo em transe – em trânsito – representa a possibilidade de se dispor à pura estesia com a suspensão momentânea do governo racional da alma que o ethos dispusera como sinal intrínseco do humano. A Modernidade soube dar conta da representação artística deste princípio frenético com grande eficácia, entre outros exemplos variados na admiração pelo “Shakespeare da sensação” Walt Whitman, cujo canto do Homem Moderno levou Álvaro de Campos a declarar na ode de Saudação ao poeta americano o desejo de seguir com ele, de mãos dadas, “dançando o universo na alma”.

De facto, o nervo futurista não cessou de olhar com fascínio para a epilepsia, reconhecida na Antiguidade como morbus sacer, e de a ligar a eventos vanguardistas como o “cabaret epilletico” concebido por Marinetti em colaboração com o fotógrafo e cineasta Anton Giulio Bragagglia, experiência que o Cabaret Voltaire dadaísta viria a considerar nas suas próprias condições com o impacto conhecido. Também a “beleza convulsiva” do surrealismo de André Breton não se encontra distanciada de fontes mórbidas, sobretudo dessa histeria que assombrara a etiologia do génio ao longo do século XIX e que Fernando Pessoa estudara com perseverança a partir da leitura, entre outros, de Lombroso, ao ponto de a destacar tanto no perfil nosológico do ortónimo como de algumas personalidades pré-heteronímicas. Contrariamente à neurastenia, que o poeta da Mensagem também privilegia nos seus escritos, e ao spleen finissecular, a epilepsia, por vezes referida nos apontamentos de Pessoa como “histero-epilepsia” (cf. Pessoa, 2006: 131-136), constitui um poderoso dispositivo cinético-visual capaz de surpreender objetivamente a suspensão momentânea da racionalidade pelo assalto e posse involuntária de forças naturais (o fogo, a eletricidade) sobre o espírito humano.