A poesia ajuda-nos muito neste momento

 

MARIA ESTELA GUEDES


A poesia ajuda-nos muito neste momento.
Gledson Sousa (1)

Pôr a poesia, eis um título próprio de um banquete literário. Um simpósio, adequado a um poeta que frequenta os filósofos. Para já, o uso louvável de um verbo que os nossos dias condenaram à ameaça de extinção, face a um estereotipado “colocar” que obrigaria a rejeitar o livro. Imagine-se a desgraça que seria um «Colocar a poesia»! Gledson põe a poesia no seu devido lugar, mas antes de a pôr nesse lugar e não noutro, o que pressupõe teoria, sistemática, não posso deixar de dizer que facilmente um poeta põe a poesia do mesmo modo que a galinha põe o ovo – e por aqui adiante este discurso  abre-se em dois veios que podemos considerar surrealistas, de um lado por ser o ovo um dos mais típicos objetos surrealistas, de outro pela sua simbologia, a matriz original da vida, o germe inicial, o ponto em que a criação gera aquilo que antes dela não existia. Neste ponto da simbologia, amplamente partilhado pelo surrealismo, enveredamos pelos caminhos do mistério, da gnose, da espiritualidade. Aliás, o primeiro poema que Gledson pôs no mundo tem justamente por título O ovo. Na sua biografia, o poeta assinala as paredes-meias que mantém com o surrealismo, e com alguns dos seus representantes de fama, como é o caso de Claudio Willer. Tive a felicidade de conhecer ambos, numa sessão literária focada em Herberto Helder, há alguns anos, em São Paulo.

Gledson é um poeta interdisciplinar, ele move-se entre modalidades e pensamentos, entre imanência e transcendência, entre poiesis e filosofia, entre ato político e social e meditação, o que resulta, em última análise, numa fusão de fazer e pensar. Pôr a poesia ilustra esse modo de tratar um problema científico do ponto de vista literário, ou inversamente. Tomemos o texto de abertura para nos situarmos:

Pôr a poesia no seu devido lugar, nesse momento da história, nessa curva da minha existência, nesse mar cotidiano em que vida e morte se somam, se subtraem, se sobressaem nos giros repetitivos da roda samsárica.

[…]

O que é a poesia em mim no mundo, essa carne que se abstrai em onda para se dizer mar novamente, essa tulipa que surge no gelo tomada de vermelho em vontades revolucionárias, essa angústia de balão e catéter em nossa sintaxe, em nossa síntese, em nossas montanhas.

Pensar a vida por um fio, nesse país esquizofrênico, nesse tempo esquizofrênico, onde só a poesia abre os braços e abraça a todos e comunga o todo e conjuga as maneiras diversas do ser para ir além do ser.

Qual esse lugar da poesia em mim, porque, de alguma maneira, exilei a musa para uma interioridade secreta, quando na verdade ela é a rainha do intramundos e do intermundos. Em que chave maldita coloquei minha própria existência e sob um rigor mortis exerci em mim a tirania do imperativo categórico kantiano ou mesmo as doçuras morais das virtudes socráticas em detrimento da poesia?

O duplo livro, visto que se trata de dois diferentes textos reunidos em uma publicação só, reflete-se como num espelho: ambos visam uma utópica totalidade do conhecimento, ambos ambicionam posicionar-se num panóptico de onde possam abarcar o mundo, mas fazem-no de diversa maneira: se Pôr a poesia tende para o ensaísmo, é prosa com máscara de ciência, um teatro, já Espiral é um poema sem máscara nenhuma, lírica de alto nível, pujante, a retomar, aqui e ali, o poema visual, uma ou outra marca mais precisa da modernidade, mas sem quebras, corredio. Longo poema, diríamos que à maneira de Walt Whitman, já que o poeta americano é referido em Pôr a poesia. Sendo espiral, o discurso dirige-se para cima, eixo baixo-alto, flecha dirigida aos valores imperecíveis, o amor em primeiro lugar.

O primeiro livro é muito curioso em algumas das aspirações que justificam a sua aparência: uma lista, um catálogo. As listas trazem à mente dos poetas o ensaísta Umberto Eco, que sobre elas dissertou; além dessa referência paterna, a mim trazem-me à mente os ossos do ofício, enquanto os mantive: Gledson parodia ou diverte-se com algo semelhante a uma Fauna ou Flora, isto é, catálogos de espécies existentes em dada região. As listas são uma ferramenta de conhecimento, ninguém que queira saber algo da flora ou fauna da Amazónia, supondo, pode dispensá-las. Esses inventários vão variando ao longo do tempo e fazem-se periodicamente, por uma plêiade de cientistas de sucessivas gerações. Updates, para sermos modernos. Sendo diferentes, agradaria à ciência, julgo eu, tanto como a Gledson Sousa agradam os catálogos dos naturalistas, conhecer o original trabalho deste poeta. Ele parte de uma espécie existente na Natureza para uma derivada imaginária ou vice-versa, agitando as folhas dos catálogos. Para voltarmos ao início deste comentário, o poeta interdisciplinar compreende a Natureza do ponto de vista poético e a poesia nas suas raízes terrestres. Funde, assim, o logos com o mythos, a realidade com a poesia. É bom ficarmos com algum exemplo que nos dê a melhor conhecer as potencialidades deste poeta. Seja o verbete da caravela portuguesa, nome vulgar da Physalia lusitanica, assim adjetivada a espécie no século XIX, por ter sido descrita a partir de espécimes da costa portuguesa (não sei se o nome ainda é válido, costumam cair em sinonímia). Trata-se de um cnidário, animais que parecem feitos de gelatina, com tentáculos pendentes abaixo de um balão/vela que flutua nas ondas. Descrição fiel de Gledson Sousa, que diverge a dado ponto para a filosofia, mas sem esquecer a Natureza, e dentro do natural os órgãos urticantes. Vejamos:

CARAVELA-PORTUGUESA: S.F.C. – Donas de um dos piores venenos existentes, chegam de mansinho levadas pelo vento e a peste que carregam é tão invisível quanto o bacilo negro. Seu corpo diáfano induz à ilusão: as velas bailam ao sabor dos ventos, há beleza e mistérios circundando-as, o que vem de longe pode ser um deus ou uma ameaça, mas o deslumbramento leva à negligência e quando se vê já estamos tomados por seus tentáculos urticantes e logo o veneno começa a entrar na circulação, induzindo-nos a pensamentos sombrios, a duvidar da existência, a desejar a morte, a adorar a cruz. Todo gozo se torna suspeito e quanto mais profundo o veneno entrar na circulação já seremos outros, nem acreditamos mais que um dia fomos algo que não fosse veneno. Depois ela se afasta, levada pelo vento. Mas já é tarde. O veneno ficou em nosso sangue.

 

(1) A busca de si é a busca da poesia? Entrevista de Caio Souto com o poeta e ensaísta Gledson Sousa. In:
https://youtu.be/U3gr1_rWKHg

 


Gledson Sousa . Nascido em Juazeiro do Norte em 1972. Reside em São Paulo desde 1991. Formado em História, com especialização em História da Arte. Tem trabalhos publicados no site Triplov (www.triplov.com) , Revista Toró e Musarara. Livros publicados:

O Ovo – Meditações Sobre a Semântica do Mundo. São Paulo: Ed. Janos, 2004
A Iconografia Interior – Kandinsky e a Teosofia. Lisboa: Ed. Apenas Livros, 2014
O Livro das Novas Mutações ou O Oráculo da Natureza. Lisboa: Ed. Apenas Livros, 2014
Fantasmas Contos. Rio de Janeiro: Ed. Jaguatirica, 2018
Pôr A Poesia – Ensaio / Poesia. São Paulo: Editora Córrego, 2020

Além de participação em obras coletivas: Presença do Feminino no Relato dos Viajantes, no livro Desigualdade no Feminino. Lisboa: Apenas Livros, 2009; Uma Espiritualidade Nietszcheana?, no livro A Religião que Anda no Ar. Lisboa: Apenas Livros, 2014. Poeta e ensaísta.


Gledson Sousa, “Pôr a poesia seguido de Espiral”.
São Paulo, Ed. Córrego, 2020.