A poesia

CARLOS JORGE FIGUEIREDO JORGE
Universidade de Évora

A poesia, a tradição lírica e a questão central do sujeito 


2001 – Comunicação apresentada em Coimbra,   na Faculdade de Letras, a convite do  Instituto de Estudos Italianos.


Se quisermos, hoje em dia, definir a poesia, teremos de optar por colocar, no centro da sua caracterização, a questão do sujeito, de tal modo que, numa espécie de paradoxo de enunciação, este se torna tema central e fonte de um discurso que, a determinar destinatário e objecto, apenas o faz para reforçar a  subjectividade do enunciador. Temos em conta, nessa redução à questão central, que, desde há pouco mais de um século apenas é que o termo é usado para designar um conjunto de textos sincreticamente agrupados como um género. Nesse período de tempo, o termo concorre com a designação, também ela problemática, de lírica.

Toda esta questão apresenta-se sempre de modo complexo: instaura-se-me como um desafio central para toda e qualquer reflexão sobre o literário, mas logo me dá, como que a pedir iniludível deslindamento, a problemática central do seu paradoxo. Pessoalmente, vejo nesse paradoxo duas frentes incontornáveis: uma, a que chamarei histórica e que nos coloca toda a problemática da entidade poesia na dimensão diacrónica; outra, a que chamarei da enunciação, e que nos coloca o problema de a poeticidade se apresentar tragicamente entre a inevitabilidade do dialogismo (ser discurso) e a tentação do solipsismo (ser silêncio, ou simples gemebundo ruído).

Tentarei colocar a questão da enunciação como central, aqui. Assim, a questão histórica será arrumada com uma espécie de leviandade que apenas tem uma desculpa: não a podendo deslindar satisfatoriamente, procurarei apresentar as grandes linhas segundo as quais ela poderia ser abordada, num trabalho de  mais ampla dimensão, apenas para tentar colocar os delineamentos de base segundo os quais a questão da enunciação se me apresenta.

Ora, do meu ponto de vista, o termo poesia designa, hoje em dia, uma prática que se manifesta de acordo com os seguintes modelos textuais (tomando como pertinente quer a substância quer a expressão da forma, quer as modalidades enunciativas): a dominância da versificação e/ou do ritmo em todas as suas dimensões; a ligação da voz à sonoridade;  o estatuto monológico do sujeito de enunciação; e a confusão deliberada do sistema expressivo com o do conteúdo. Assim sendo, a poesia, historicamente, tem, da tradição, a marca do verso (o poeta era um versificador), da lírica, a marca do eu como origem do canto, da tragédia a demarcação do protagonista relativamente aos outros – o Outro, a voz colectiva – e da épica a definição do enunciador como sujeito-central, o herói do enunciado fundido com o da enunciação como assunto dominante, em última análise, da instância do canto.

Porque se torna a lírica a forma central do poético, na nossa tradição, mesmo que repisemos Aristóteles e lembremos que o seu modelo central era a tragédia? De facto, há nas nossas asserções contemporâneas, a partir de uma data que se poderia colocar algures, de modo já perceptível, no dealbar do Romantismo ou, com mais precisão e sustentação teórica, na da publicação de Les Fleures du Mal, de Baudelaire, uma ideia de poesia que se liga à solidão do poeta e à devastação de vozes em torno do seu canto.

É importante, aqui, relembrar um dos enunciados inaugurais dessa postura. De facto, no segundo poema do livro já citado, “Bénédiction”, lemos:

«Lorsque par un décret des puissances suprêmes
Le Poëte apparaît en ce monde ennuyé,
Sa mère épouvantée et plaine de blasphèmes
Crispe  ses poings vers Dieu, qui la prend em pitié :

-«Ah ! que n’ai-je mis bas tout un nœud de vipères
Plutôt que de nourrir cette dérision !
Maudite soit la nuit aux plaisirs éphémères
Où mon ventre a conçu mon expiation ! » …

Notemos, como primeiro registo, que o poema, fechando expressamente, pela maldição materna, o acesso do poeta à fraternidade, elabora, por sobre os séculos, uma confraternização. De algum modo, esta mãe blasfema vitupera o filho, em franco diálogo com a que Villon evoca ainda em plena Idade Média no poema “Ballade que Villon feist a la requeste de as mére pour prier Nostre Dame” de Le Testament. De igual modo, ao encerrar o diálogo com o seu hipócrita leitor o poeta coloca na cumplicidade do mal a única via de comunhão, dialogando, aí também, com “Le bal des pendus” do mesmo Villon.

Mais ainda, o que se tornou central, na separação definitiva que Croce regista em forte e ampla argumentação, entre poesia e literatura, é à maldição irreparável do poeta que se deve, podendo ser atribuída essa diferença ao silêncio que se abre quando a sua voz se eleva. Se Hugo ainda pedia, nas suas reflexões poéticas, ao povo que escutasse o poeta, Baudelaire anuncia, para o seu leitor, fraternidade e cumplicidade numa espécie de crime. Assim, não podemos deixar de evocar, aqui, a versão optimista da separação entre o poeta e o seu público, através de algumas linhas do poema de Hugo, “Fonction du Poète”, do livro Les rayons et les ombres:

Pourquoi t’exiler, ô poète,
Dans la foule où nous te voyons ?
Que sont pour ton âme inquiète
Les partis, chaos sans rayons ?
Dans leur atmosphère souillée
Meurt ta poésie effeuillée…

O rêveur, cherche les retraites,
Les abris, les grottes discrètes,
Et l’oubli pour trouver l’amour…

Peuples ! écoutez le poète
Écoutez le rêveur sacré !

Mas tudo isto não surge deste modo, de um momento para o outro, nem mesmo num evoluir de algumas décadas que medeiam entre Hölderlin, Byron, e Hugo, num momento – e Baudelaire, noutro. A partir de um certo período histórico, que hoje quase vemos como unidade temporal, mas que se alongou por cerca de quatro séculos, do desenvolver da relação do sujeito cultural com as entidades transcendentes em novos discursos,  o processo do canto tornou-se central para a definição de um género, vivendo em paridade com a representação pura (a mimesis, segundo Platão e Aristóteles), a representação narrada (a diegesis, segundo os mesmos autores) e apresentando-se como a pura ou simples enunciação em que o dizer se confunde com o fazer (a aplê digesis, ainda de acordo com as autoridades já citadas). É claro que este último modo é entendido, mais correctamente, como a narração pura, ou seja, o canto de louvor aos feitos de um deus ou de um herói. No entanto, como casa vazia de uma grelha, desde que narrativa “traduz” o conceito de diegese (ou, dizendo melhora, ambos os conceitos quase coincidem),   seja ela com mistura de vozes ou sem mistura, a tónica passa a colocar-se no conceito de enunciação. Resumindo: pela violentação, para a nova proposta teorética dos géneros a narração pura é mais importante pela voz do que pela acção que narra.

Tudo se passa como se esse canto se alimentasse da sua própria substância formal, exigindo o reconhecimento da sua diferença não na forma de enunciação pelo canto, o que nos remeteria para a propriedade formal da lírica (o que se acompanha com a lira, com o instrumento musical e que se completa com a música), mas porque o canto aspira a ser a marca do outro como sujeito-objecto absoluto, reconhecido pela ausência, a começar pela da voz que apela sobretudo pela apóstrofe dirigida ao Outro, pela qual o hipostasia. Michel Collot sugere-o a partir da análise de um excerto de um texto poético de Aragon: “o Outro nunca esta presente senão através de uma certa ausência” (1989: 98). Segundo ele, a “solidão” pode ser o outro nome do amor, porque “o ser amado não nos poderia ser dado de maneira plena e completa” sem apagar o próprio impulso do desejo. Ora, segundo ele, deixando de ser objecto, o outro tornar-se-ia consciência fundida com a do eu, não dando, assim, “origem nem à palavra nem á poesia” (cf. Collot, 1989: 98-99).

Devo confessar que esta ideia, colocada de modo forte no horizonte fenomenológico do fazer poético, vem ao encontro de uma conjectura que me seduz há muito: a de que o canto existe como um diálogo com as instâncias inacessíveis ou despóticas. Assim, presumo sempre que a tarefa de Orfeu, o cantor por excelência, o define como o que fala com a essência do Outro, seja esse outro o ser amado, seja ele o ser perdido para o nosso mundo, por ser, de algum modo, a transcendência: um morto, um ente extraordinário, um deus. Ora, nessa relação pelo canto, porque ao outro não cabe ser representado pelo mesmo, pelo sujeito poético do canto, tudo se passa como se a revelação plena do seu enleio existisse no próprio acto de enunciação e no esplendor que  nele geram as palavras.

Por extensão, é verdade, o universo inerte, os entes não humanos, aqueles que não respondem, nem mesmo pela escuta, acabam por constituir-se parte desse nível de transcendência, porque devolvem o poeta a um silêncio circundante, ou à maldição da solidão. O “eu posso estar aqui perfeitamente pedra”, verso que abre o livro Os sítios sitiados”, de Luísa Neto Jorge, aponta para uma das consequências desse posicionamento: a importância dos universos minerais, cristalinos – enigmáticos no seu estar em pedra, por exemplo, devolvendo ao sujeito da enunciação poética a sua própria imagem por reflexo.

“Posso estar aqui
eu posso estar aqui perfeitamente pobre
um círio me acendi, espora aguda
o vento ritmo negro assassinou-o

posso estar aqui
o musgo é lento como a sombra –
e sei de cor a voz cega das canções
(viola de silêncio acorda-me)

que eu posso estar aqui perfeitamente pedra
insone
e um longo segredo pessoal
bordando a minha solidão

Também a Micropaisagem, de Carlos de Oliveira,  nos dá inexcedíveis abordagens desse processo em que, aparentemente, a cristalografia da paisagem parece fornecer a estabilidade material ao lugar em que o poeta se enuncia como eu.

O céu calcário
duma colina oca,
donde morosas gotas
de água ou pedra
hão-de cair
daqui a alguns milénios
e acordar
as ténues flores
nas corolas de cal
tão próximas de mim
que julgo ouvir
filtrado pelo túnel
do tempo, da colina,
o orvalho num jardim

É aí que o eu dizer-se se desdobra na voz do poeta e na de O que de algum lado tem de ser dito. Parece-nos ser esse o mecanismo que Michèle Aquian evoca, a partir da psicanálise para falar de poesia: “O adulto, – o Outro [aquele que a voz poética transforma em poeta ou poëte, no dizer de Baudelaire] – vai receber esse grito, e dar-lhe-á uma tradução, uma interpretação, inscrita na lógica do seu próprio discurso, e que será a sua resposta” (Aquien,  1997: 159). O enunciado do que ordena o discurso apenas consegue dar o registo do que foi desde a memória da infância ou do momento fundador inominável. Como diz Saint-John Perse, em Vents: « Je me souviens du haut pays sans nom, illuminé d’horreur et vide de tout sens ». No entanto, ainda poderíamos acrescentar um reparo sobre um outro fenómeno  simultâneo e complementar: o respeito pelo que em eco ou resposta sonora se sugere de veneração, por parte daquele que enuncia, pela origem material pré-significante ( quase sempre o som, a onomatopeia, o ser coisa que lá está antes de ser sentido, signo ou símbolo) do que vai ser dito, tornado discurso. Também sobre esta matéria Carlos de Oliveira seria, ainda, o poeta exemplar, quando lemos, em Turismo, num dos grupos estróficos de “Infância” : “Chamo/ a cada ramo / de árvore / uma asa// E as árvores voam.//Mas tornam-se mais fundas/as raízes da casa,/mais densa/a terra sobre a infância./É o outro lado/da magia”

Estamos, em tal percurso de argumentação, no cerne do que em Dante me parece fundamental: o conceito de concetto, para traduzir a sententia latina, em “eloquência vulgar”, é definido como “argumento  das composições líricas […], nas quais não se encontra o desenvolvimento das acções, sendo antes o jogo e torção do pensamento o equivalente imitativo da acção” (García Berrio, 1988: 420). Deste modo, na tradição do humanismo renascentista estabelece-se, a partir de Dante, o valor de dianoia, para o termo concetto, quando se “faz dele o equivalente, nas obras líricas, breves e sem imatação de acções, da dianoia da tragédia e da epopeia”  (García Bérrio, 1988: 420). Pode admitir-se, então, com Genette, que essa posição, formulada pelo preceptista espanhol, Cascales, no século XVII, se traduz pela breve fórmula: “o lírico (é o  soneto  que está em causa, em tal argumentação) tem por «fábula» não uma acção, como o épico ou o dramático, mas um pensamento” (1986: 46).

Antes de regressarmos a Dante, para considerarmos esse momento que entendemos como fundador da lírica no sentido moderno do termo, é preciso observar quanto a anterior afirmação se desenvolve. Dá voltas, percorre espaços em espiral, e regressa a um ponto, sempre, em que a matéria observável é o sujeito e o seu canto. Tudo se passa – para relembrarmos o espantoso mito que parece venerar os poetas como entes supremos, capazes do impossível – como se Orfeu, tendo atravessado o céu e a terra para chegar aos infernos, depois de se manifestar capaz de um feito único, de arrancar o ente amado à morte por feição dos seus hinos, se tivesse distraído com o objecto contemplado, ou tivesse ficado encantado com os próprios enleios. Então, se o canto restitui o objecto pelo efeito dos encantos, não será de ficar preso a esse poder que distrai porque ilude a morte e o tempo, parecendo assegurar a eternidade? Não será mais importante o enunciado que dá a vida do que o ente vivo que, uma vez encontrado, deixará de solicitar o canto, se mostrará ser no tempo, perecível, longe de ser eterno – insignificante, mesmo?

De facto, essa parece ser uma vertente da questão. Genette desenvolve, em torno de Cascales e de Batteux (preceptista que retoma as ideias de Cacales um século mais tarde), a hipótese formalmente mais sedutora: “os sentimentos expressos pelos poetas são, portanto, pelo menos em parte, sentimentos fingidos por arte, e essa parte sobreleva o todo, pois mostra que é possível exprimir sentimentos fictícios, como aliás podia desde sempre a prática do drama ou da epopeia” (Genette, 1986:48)

No entanto, a questão que pretendemos colocar, embora parta dessa abertura do problema, passando do sentido ao fingido, propõe-se um outro objectivo, mais violento e mais cândido: o sentimento, deixando de ser acto público da argumentação do autêntico, remete-se para uma interioridade onde busca o eu como entidade, ou seja, como alteridade. Julgo que é esse passo gigantesco, de uma lírica que é canto, acto público de um festejo ou de extroversão de um júbilo, palaciano ou da praça pública (qual o mais frequente? – alguma vez o saberemos?), para uma lírica que é só interior, de recantos íntimos e espaços privados, exaltação do ponto de vista pessoal em horizonte despovoados, perante a indiferença ou distância dos outros, que Dante dá na Vita Nuova. Penso-o desde o primeiro momento em que li, apressadamente, e não consigo deixar de o imaginar, quando o releio, sempre com dificuldade e perplexidade. Sobretudo surpreende-me que o poeta, reconhecendo-se a si próprio como tal, se inscreva numa fixação textual, inscrevendo o plano do seu poema e a sententia, que o terá de dizer como poema, feito acção da palavra, diante de um auditório que convoca permanentemente, de modo mais ou menos verosímil – ainda que, por vezes, em surpreendentes poses.

Estará o senhor  do enunciado inscrevendo, como cronista, a situação de canto e os ouvidos que o solicitam? Estará, de facto, procurando comover a assistência, amigos e conhecidos, amigos da amada perdida, conhecimentos próprios forjados pela circunstância do laço de amor que o uniu a Beatriz? Mas então, qual é o espectáculo desse sentenciar: a imagem do ser perdido, ou a beleza do sentimento que se qualifica pelo canto? De uma coisa estou certo. Sem o aprofundamento dessa representação da representação, é-nos muito difícil perceber como a lírica invadiu o espaço do poético. Como ela se tornou central por não ser uma representação em que a virtuosidade do do dizer fazer (poiesis) se esconde mas, ao contrário, se exibe como dizer. E como ela se tornou  o  objecto central do confronto problemático que a literatura mantém entre o que nela é a essência distintiva (a literariedade seria a poeticidade, assim) e o que nela é discursividade, a própria essência do debate. Ou, então, dito de outro modo, o confronto entre o ponto supremo em que ela se sublima como texto, estrutura fechada, e o lado pulsional que a fundamente, tornando-a – porque passa a utilizar um novo espaço institucional, o do texto – a inevitabilidade da palavra convocar o outro: o fundamento da própria palavra.

E, de facto, é sempre de uma sublimação que se trata, muito embora, por vezes, a matéria dessa sublimidade seja a precipitação, mesmo a escatológica. A poesia, o canto poético é, de algum modo, a permanente verificação das catástrofes, a perda do silêncio e da imobilidade, o pânico de verificar que somos arrastados, que o abismo nos espera. Atesta-se isso no modelo enunciativo, nos conteúdos em que a paixão, dos sentidos e/ou dos sentimentos impera, no ritmo, seja ele versificatório, frásico ou semântico. Assim, se vão acumulando as figuras a vários níveis do texto, em determináveis planos do discurso: rupturas, oximoros, demarcações entre o sujeito da enunciação e aquilo ou aqule que lhe é  o outro –  que por ele é interpelado, vociferado, abençoado ou maldito.

Assim, o que me parece ter-se processado, ao longo dos séculos que medeiam entre Dante e Luísa Neto Jorge (para citar apenas, através da mais jovem, um nome dos nosso dias – ainda que ela tenha morrido muito prematuramente), não é tanto um aprofundar da diferença entre o sistema discursivo da lírica do fim da Idade Média e do princípio da Renascença na Europa e o que hoje nos é evidente. O que parece ter acontecido, de facto, é a valorização dos termos da individualidade pessoal e subjectiva, projectando os qualificativos da entidade civil do cidadão sobre o discurso poético produzido pelo sujeito problemático.

O efeito é perverso, do nosso ponto de vista. Porque, se o poeta foi o cultor, desde sempre, desse reduto do pessoal e íntimo identificável no ritmo assumido como próprio e nos recessos do mistério que cada imaginário cultiva como seus  (os sonhos, as suas sementes e os seus frutos – o modo como cada um é cantor da canção que é comum ao colectivo), ele foi-o sempre de modo dialógico: aberto para a comunidade dos seus antepassados, aberto para o público ao qual dirigia o seu canto. E inscreveu sempre, na tribo, a origem do canto, a origem primeira. Porque, com Villon, no seu testamento e com Dante, no seu relato de renascimento, de acesso à nova vida, os destinatários são obsessivos presentes, outros imprescindíveis como terceira pessoa, a que assegura a vida do discurso.

O que a sociedade civil burguesa criou, com os seus códigos triunfantes, foi a propriedade equívoca do  eu, o canto como próprio, de tal modo apropriado que pode obter uma forma intransmissível: a do monólogo absoluto. Se isso é simples, para a definição do copyright, já não é tão simples para a função do poeta e para o sentido do exercício da sua mestria. Se ele gera o eu como mistério ao defrontar-se com o mistério do Outro, postulando-o como entidade necessariamente ausente para ser assunto do  canto, a proposta do seu mistério, como paixão, sofrimento ou maldição só tem sentido na relação explícita do autor, o senhor da voz poética, com os terceiros os Outros, os que o julgam. Assim, não me parece que a voz narrativa de Vita Nuova seja muito diferente das vozes críticas de Pessoa e dos seus heterónimos, quando se pronunciam uns em relação aos outros.

O que eles criam, no fundo, é a textualização de uma sociedade que convive, enquanto discurso, com o discurso do poeta. Dante fá-lo porque perdeu, e tem a consciência disso, a praça pública, espaço natural dos poetas anteriores, seus parentes próximos. Pessoa fá-lo porque procura, na senda de Baudelaire, de Mallarmé, de Withman, o hipócrita leitor, seu semelhante, seu irmão, ou então os traços da tribo perdida, ou mesmo as sendas por onde passaram os povos da nação. E é nessa textualização, julgo, que ma parece fundar-se a poesia como essência do literário, interior no qual a voz se dá como origem do sujeito.

A relativa ilegibilidade que a poesia pratica, pelo menos desde o simbolismo, parece ter pelos menos duas vertentes: uma que retoma da magia e das comunidades secretas, codificando, com a língua de todos, uma segunda língua para ser apreendida como língua mas dificilmente interpretável pelos não-iniciados; a outra em que o sujeito se funda exactamente na descoberta do lado obscuro, cifrado para uma dimensão de si próprio. Resta dizer que, quanto a esta dualidade do sujeito, o dizer-se passa pelo colocar-se como mistério. Já não se trata apenas de instituir o outro como necessária ausência mas também, por inevitável lógica da vivência interior, restaurar no sujeito a duplicidade. A imagem  fundamental dessa construção é a anamnese, evidentemente. Ela vai, desde a evocação da amada perdida até ao canto da consciência da própria perda.

A figura que poderia representar a anamnese e o que ela representa, na tradição poética, é, sem dúvida, a do ubi sunt, que se canta, desde Villon, nas línguas neo-latinas. Contudo, sempre se percebeu, na construção do lírico-poético, que essa é apenas uma figura da evidência, por detrás da qual se perfila a sombra do mistério. Ela poderia formulada de vários modos: quem fala, quem sonha, qual é a origem do canto e das imagens que nos assaltam e não sabemos de onde vêm? Freud propôs um termo latino para designar algo parecido, na psicanálise: Id. Julgo que seria abusivo adoptá-lo plenamente para o questionamento do literário. Seria propor um conceito definitivo para um problema que existe, com sede própria no poético, antes da psicanálise inventar o seu campo específico. É certo que esta reconhece, pela expressão do seu fundador, as dívidas para com os poetas. Mas não estou certo de que, ainda assim, o conceito nos sirva, que seja nosso por invenção poética, como o é o “onde estão”, para convocar a memória, os seres e os objectos perdidos, o traço que evoca, para lá do esquecimento. Paradoxo  que se poderia entender, talvez na terrível imagem de Herberto Helder, num dos momentos da sua Vocação Animal, “As festas do crime”, construída muito à maneira lautreamontiana, mas devorada e digerida pela voracidade poética do poeta português:

“Este lugar não existe, fica na Arábia Saudita, no deserto.
Gosto do deserto.
Levei tábuas e pregos.
Ferramentas, as belas ferramentas dos homens.
Levei água, víveres, sementes.

……

Não era trigo, nem cravos, nem sementes de cores, das cores que amamos como uma dor no corpo.

Eram sementes de cabeças de crianças”

E o certo que nos parece emergir, de leituras e confrontos, não é tanto a de que essa questão da origem tenha de possuir um “quem” como nas narrativas de mistério, ou uma causa, como nos mitos que nos respondem aos “porquês”. Poderia, talvez, ser a figura do esquecimento, a amnésia. E não será essa a fundação da vida nova, a que se ergue sobre as ruínas de uma relação perdida no espaço da cidade onde ficaram as marcas da ausência – o mistério órfico de suster o desaparecimento por palavras que apenas aludem, representam ou evocam. E seria ainda Carlos de Oliveira, o mais dantesco dos poetas modernos a dizê-lo, no poema final da Micropaisagem: “Assim/se cumpre/o eclipse/gradual/sobre o centímetro/quadrado que/os líquenes/cobrem/na memória,/assim/a luz e a neve/se ocultam/pouco a pouco, assim/se esquece”

 


Bibliografia:

Aquien, Michèle, 1997, L´autre versant du langage, Corti, Paris

Collot, Michel, 1989, La poésie moderne et la structure d´horizon, PUF, Paris

García Berrio, Antonio, 1988, Introducción a la poética clasicista, Taurus, Madrid

Genette, Gérard, 1986, Introdução ao arquitexto,  Vega, Lisboa