A pele do mundo ou o mundo plastificado?

 

 

 

 

 

 

 

 

LUÍS DE BARREIROS TAVARES


Luís de Barreiros Tavares — Lisboa, 29/09/1962. Licenciatura em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa (2007). Frequentou Filosofia nas Universidades Católica e Clássica. Alguns livros: O Acto de Escrita de Fernando PessoaEm Roda Livre, com Eduardo Lourenço; Sulcos, com Jean-Luc Nancy; 5 de Orpheu (Almada — Amadeo — Pessoa — Santa Rita Pintor — Sá-Carneiro). Colaborador nas revistas «Nova Águia», «Caliban», «Triplov» e «Mirada». Em breve na Zunái. Publicou em «Pessoa Plural», «A Ideia», «Philosophy@Lisbon», «Comunicação e Linguagens», entre outras. Vice-director da «Nova Águia». Membro do Conselho Consultivo do Movimento Internacional Lusófono (MIL). Editor-vídeo «Passante». Mantém-se discretamente como artista plástico. Deu umas aulas e fez traduções. Responsável pelo espólio do poeta Manoel Tavares Rodrigues-Leal.


In memoriam Jean-Luc Nancy
«O que há de mais profundo no homem é a pele» Paul Valéry

 

Sexta-feira – 05-01-2024

A realidade plastificada. Não quer dizer que, de imediato, ela seja de plástico. Trata-se antes de uma capa, de uma película que muito levemente e imperceptivelmente a artificializa. O natural cruzado com o artificial. Como uma capa transparente e de plástico. Muito fina. Como se a realidade tivesse um invólucro que a cobrisse e a deixasse visível. Uma espécie de película ou pele acrescida e artificial, como se de uma barreira se tratasse. Um híbrido? Não é o que aqui mais importa. Uma barreira, um isolamento artificial que impedisse parcialmente o seu contacto. Há algo de metafórico e não metafórico aqui. Não se trata de uma crítica radical do plástico. Ele tem a sua importância favorável indiscutível.

Um contacto parcial, plastificado e sintético. Se observarmos, os ecrãs são qualquer coisa de plastificado. As cores são artificiais, as luzes são encantatórias. Elas enfeitiçam negativamente, ou desfavoravelmente. No sentido de nos deixarem muitas vezes irreflectidos, apáticos. E os nossos corpos, bem como a realidade circundante enquanto algo perceptível, adoptam essa pele. As coisas deixam de ter, assim, uma certa pregnância sensível, visual e háptica. Ou melhor, deixam de ter uma concretude tão directa como tinham antes desta espécie de “não-inscrição” – para utilizar um conceito de José Gil – que é este sobrelanço de «hiperrealidade» (Baudrillard) do digital, das luzes e cores dos ecrãs. Qualquer coisa como uma esquizofrenia existencial, mesmo ontológica.

Por isso, certos rostos que vemos nos ecrãs e nas ruas nos parecem plastificados, indiferenciados, repetidos. Um certo ar robótico também nas falas e nas vozes. Veja-se certos pivots empolgados nas Tv’s. Parece haver ali uma «musiquinha» que nos estão a dar.

 

Segunda-feira – 08-01-2024

Pode-se falar do táctil do smartphone, do seu ecrã táctil. Mas o seu toque não se sente praticamente. Ele é de tal maneira repetido, uniforme e automático que quase anula o que pode ser considerado como sensação.

Sem entrar em grandes detalhes, é interessante verificar que a palavra «plasma» provém do grego plásma (figura, modelação da voz, representação…), de plásô, com acepção de plasmar, modelar, imaginar, fingir…). Por exemplo, no Timeu, de Platão, pode ler-se: «alguém modela figuras…» (…skémata plásas…).

E os ecrãs flexíveis que estão a chegar também sugerem nas suas características uma plasticidade. O espectador entra, de facto, numa dimensão imaginária, mas onde ele não tem qualquer iniciativa nem poder criativo partindo da sua própria imaginação. Esse imaginário é-lhe dado de bandeja. E ele, passivo, perde a independência de sonhar e imaginar por sua conta e criação. Daí a profusão de filmes, séries, publicidades, notícias carregadas de imagens (de guerras acompanhadas na sua «evolução ao minuto»!), documentários a correr apenas para impacto passageiro. Tudo numa obscena visibilidade, apenas para consumo de tempo e entertainment. Porquê? Porque não se sabe mais o que fazer?

Vem a propósito uma passagem do filósofo italiano Francesco Masci num artigo da revista Electra (p. 51):

«As fotografias publicadas nas redes sociais, formalmente idênticas (qualquer que seja o sujeito representado), a multiplicação das séries de televisão com intrigas elementares, personagens, temáticas efémeras e experiências lúdicas e sentimentais perfeitamente intermutáveis – eis tudo o que o entertainment tem a propor aos sujeitos como remédio para um mal que ele próprio engendrou ao proibir-lhes o acesso a todos os signos, mesmo fictícios, capazes de reforçar o princípio de individuação.» (p. 51)

 

Quinta-feira – 11-01-2024

Temos alguma dificuldade em olhar de um certo modo para as coisas materiais presentes nas ruas, como árvores, calçadas, muros, pedras, flores. E os transeuntes, circulando na rua, na realidade do dia-a-dia. Talvez não seja dificuldade, mas indiferença. Indiferença das coisas serem como são, o contrário do espanto filosófico: o espectáculo e admiração das coisas serem como são (o thaumazein de Platão e Aristóteles). Espectáculo que nada tem a ver com aquele que nos embasbaca, de tão ausentes num forjado presente. Ou quase ausentes perante, precisamente, o espanto das coisas. Elas, as coisas, passam despercebidas porque a nossa visão ou, mais propriamente, o nosso olhar também já está plastificado. Parece haver uma atitude melancólica subjacente no debruçar diante de um smartphone. Nota-se isso nos mais jovens. A postura encurvada lembra, não só uma aparente atitude de oração ou devoção – com a meditação correspondente –, mas também um gesto de melancolia. Pensemos no quadro «Melancolia I» (1514), de Albrecht Dhürer, ou no «Pensador» (1904), de Auguste Rodin.