A noite da espera

AÍLA SAMPAIO
Aíla M. Leite Sampaio (Brasil). Professora Doutora da Universidade de Fortaleza)

A NOITE DA ESPERA: RECORRÊNCIAS TEMÁTICAS E AMBIGUIDADE VERDADE X FICÇÃO


INTRODUÇÃO

A noite da espera (2017), primeiro volume da trilogia O lugar mais sombrio, é o novo romance de Milton Hatoum. O escritor sai do microcosmo do Amazonas para a aridez de Brasília e a deserção em Paris, mas seu protagonista, Martim, que também é o narrador, traz as mesmas características de personagens de romances anteriores, marcando o estilo do autor, que se afirma cada vez mais na construção de atmosferas densas e dramas existenciais calcados nas relações familiares.

Com efeito, o personagem em conflito com a família e consigo mesmo presentifica-se em toda a obra do escritor: em Relato de um certo oriente (1989), a protagonista volta para Manaus, depois de longa estada na França, para reencontrar seus familiares e reconhecer-se em seu espaço de origem. Os gêmeos, de Dois irmãos (2000), em constante rivalidade, um rejeitado pelo pai; o outro pela mãe, são, cada um a seu modo, seres desajustados com o mundo que os cerca. Raimundo (ou Mundo), de Cinzas do Norte (2005), vive em permanente conflito com os anseios do pai e os seus próprios, e sucumbe às angústias e insatisfações. Arminto (de Órfãos do Eldorado, 2008), na fase madura, rememora o passado turbulento com o pai e sua impotência para a vida. Martim, por sua vez, convive com a ausência da mãe a partir dos 16 anos e com a tensão de um pai dominador com quem sequer consegue conversar.

Assim, as recorrências constituem características comuns à obra de Hatoum, bem como a ambiguidade verdade x ficção e é sobre o modo como aparecem no novo romance que refletimos neste artigo.

 

CONTEXTO HISTÓRICO E RECORRÊNCIA DE PERSONAGENS 

O contexto histórico de A noite da espera é o mesmo de Cinzas, que também tem o seu enredo situado no período da ditadura militar (década de 60 do século XX). Por meio da intertextualidade homoautoral, Hatoum traz referência ao coronel Zanda (de Cinzas), amigo do pai de Mundo e, no romance atual, amigo da baronesa Áurea, tia da Vana, amiga de Martim. É ele quem dá cobertura ao tráfico de maconha vinda da Amazônia em latas de doce, vendidas em Brasília por ela, Áurea, e pelo Nortista (Lélio), outro amigo da sobrinha: são sócios na empresa “Áurea Verde, Ervas e sonhos” (p. 129), uma ironia à burguesia brasiliense. Há também referência ao pintor amazonense Aranda (de Cinzas), cujos quadros estavam encalhados na livraria Encontro e foram vendidos por Martim a um comprador desconhecido.

Em artigo sobre o livro de contos A cidade Ilhada, também de Hatoum, afirmamos que

intertextualidade homoautoral, ou seja, a utilização de recorrncias espaciais, temáticas e de personagens, além de dar unidade ao projeto ficcional de Hatoum, dá ao leitor a impressão de que esses personagens têm existência real, não são meros seres de papel escondidos atrás das palavras quando se conclui a leitura da obra. (SAMPAIO, 2010).

Além disso, essa estratégia de deslocar personagens de uma obra para outra dá aos romances de Hatoum uma ideia de continuidade de suas histórias, como se os personagens se mantivessem vivos, e uns fizessem parte da ‘vida’ dos outros. Se a criação decorre da observação, da memória e da imaginação, como assinala Antonio Candido (1970), podemos dizer que Hatoum trabalha essencialmente com a memória, haja vista que todos os seus romances são em primeira pessoa e, embora nem sempre autodiegéticos, é sempre uma história do passado que é recuperada pelo narrador.

O romance tem uma construção acronológica. A primeira narrativa é feita quando Martim já está em Paris, no ano de 1977, e, na sequência, os relatos intercalam narrativas que recuperam sua estada em Brasília, durante 5 anos, com alguns retornos ao momento atual na França, e a última conta a sua fuga para Goiás, de onde retornará a São Paulo. Não ficamos sabendo como ele chegou a Paris; temos apenas indícios de que essa decisão foi tomada em São Paulo, após sua fuga do DF em 1972, e que o teatrólogo Damiano Arcante, diretor das peças do grupo de que ela fazia parte, tem a ver com isso, haja vista que se encontram na capital francesa, de acordo com uma das narrativas em que Martim descreve as orientações dele sobre o local onde morar na capital francesa.

Do torvelinho de suas lembranças, buscadas em escritos de seus cadernos, ele conta sua história por meio de relatos datados e situados espacialmente, intercalados por bilhetes e cartas. Sobrevivendo em Paris como professor e músico nos subterrâneos dos metrôs, ele conta a separação dos pais em 1967, no interior de São Paulo, e que, desde então, tendo se mudado para o Planalto Central com o pai, convive com o incômodo da ausência da mãe, Lina. A vida em Brasília compõe a maior parte do enredo. Martim é tímido, mas tem um universo imensamente povoado: é leitor de obras literárias, o que o leva, logo na chegada ao Planalto, a conhecer primeiramente Jorge Alegre, o dono da Livraria Encontro, na qual ele trabalhará;  a traduzir poemas para o Embaixador Faisão, pai do seu amigo Fabius, e a publicá-los na revista Tribo, criada pelo grupo como veículo de divulgação de textos combativos.

Ele se engaja com facilidade no grupo de teatro do qual fazem parte Dinah, Lázaro, Vana, seu namorado Lélio (o Nortista) e Fabius, namorado de Ângela, filha de um senador. Esse núcleo formado por filhos de embaixador, senador, funcionários do ministério e empregada doméstica, além de mostrar a possibilidade de equidade por meio da arte, faz um retrato falado da juventude do período: idealista, engajada, mas, ao mesmo tempo, sem rumo, vivendo a inconsequência das drogas e da liberdade sexual.   O mundo de corrupção, da censura, dos protestos e prisões arbitrárias é o pano de fundo dos dramas pessoais de Martim que encontra, na convivência com o grupo de amigos, militantes de esquerda, um modo de suportar a vida solitária, a ausência permanente da mãe, a rejeição do pai e a relação instável com Dinah, sua primeira namorada.

A rejeição do pai ao filho é uma temática recorrente nas obras de Hatoum: Omar, de Dois irmãos; Mundo, de Cinzas; Arminto, de Órfãos e, agora, Martim, de A noite, todos sofrem sanções por não corresponderem às expectativas do genitor, por não darem continuidade aos seus projetos. A figura ausente ou problemática da mãe é também repetida: Zana, de Dois irmãos, peca pelo excesso de cuidados com Omar e pela omissão em relação a Yaqub. Alícia, de Cinzas, é uma mulher que casou por conveniência e que deu a Mundo um pai que não era o verdadeiro e com o qual se chocava constantemente; a mãe de Arminto morre no parto dele, mas sua ausência reverbera em toda a vida desajustada dele, com a culpa que o pai faz questão de lhe impor. Lina, de A noite, leitora de Madame Bovary, opta por si mesma e deixa Martin, adolescente, partir com o pai; a sua ausência não é suprida pelas cartas em que demonstra preocupação. Martin faz-se por si mesmo. Assim, Hatoum continua com o núcleo familiar problemático e com a solidão de seus protagonistas iniciada em Relatos.

A presença da arte é outra recorrência evidente na obra do escritor. Em Cinzas, Mundo quer ser pintor e o pai sequer considera essa ideia. Quer que ele dê continuidade às suas empresas, mas ele, tal, como Arminto (de Órfãos), não tem interesse sequer em aprender o oficio do genitor. Lina, a mãe de Matim, deixa seu pai, Rodolfo, para viver com um artista, que ‘não tem onde cai morto’. Vivem isolados num sítio no interior de Minas Gerais. Esse  pintor de A noite da espera é uma retomada do Aranda, pintor de Cinzas, que vive isolado numa ilha do Amazonas e que é, afinal, o pai de Mundo. A arte aparece, na obra atual, como meio de denúncia social e para mostrar que a censura recai sobretudo sobre a sua ação, é tanto que a livraria é fechada, cartazes de filmes são rasgados, Jorge Alegre, seu proprietário, desaparece, livros são queimados no pátio da UNB e professores são demitidos. O grupo de teatro tenta resistir, mas as peças são censuradas. Na exibição dos filmes, há sempre um olheiro para inibir qualquer forma de protesto.

 

A AMBIGUIDADE VERDADE x FICÇÃO 

A inserção de bares como o Beirute, inaugurado em 1966, que ainda hoje tem uma clientela eclética e é ponto de encontro de intelectuais, artistas e estudantes universitários em Brasília, nomes de peças como Um bonde chamado desejo, adaptação do clássico de Tennessee Williams, censurada nos anos 60, e de filmes como O bandido da luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Terra em transe (1967) de Glauber Rocha, bem como episódios burlescos da censura nos anos 60, trazem para a ficção o mundo real, levando o leitor a questionar: até onde a narrativa é ficcional? Em que medida é histórica? A mistura dos dois elementos cria  a ambiguidade verdade x ficção e dá ao leitor a ideia de que tudo é crível, de que a verdade prevalece sobre a invenção.

A intertextualidade presente no livro está ligada ao espaço da memória. Tudo no enredo é puxado pelas lembranças do narrador, que parece saído de uma das obras anteriores de Hatoum, para tazer a presença de outras vidas ficcionais como se tivessem sido reais. Dessa maneira, a intertextualidade

se escreve com a lembrança daquilo que é, daquilo que foi. Ela a exprime, movimentando sua memória e a inscrevendo nos textos por meio de um certo número de procedimentos de retomadas, de lembranças e de re-escrituras, cujo trabalho faz aparecer o intertexto. Ela mostra assim sua capacidade de se constituir em suma ou em bibliotéca e de sugerir o imaginário que ela própria tem de si. (SAMOYAULT, 2008, p. 47).

O imaginário de Martin é o imaginário de um ser de papel, portanto, ficcional. A realidade que dá suporte à obra – os anos de chumbo em Brasília –, entretanto, é real, o que gera ambiguidade e desafia o leitor a acreditar que tudo o que ele conta realmente aconteceu.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A história de Martim bem que poderia ser a do escritor Milton. Ele morou em Brasília aos 15 anos, viveu os tempos de chumbo, a militância política, as amizades, o primeiro amor, e também desertou para São Paulo, depois, para Paris, onde, qual o seu protagonista, foi professor de português para estrangeiros e trabalhou como tradutor. A verdade da ficção literária não está, como assegura Sandra Jatahy Pesavento, “em revelar a existência real de personagens e fatos narrados, mas em possibilitar a leitura das questões em jogo numa determinada temporalidade; desse modo, entendemos que a realidade é transfigurada por elementos ficcionais, e o tempo, como diz o poeta, dissolve os homens; depois de tantos anos transcorridos, o vivido e o lembrado fundem-se no imaginativo e todos os ‘demônios’ são exorcizados por meio da palavra.

Além disso, como afirma  Regina Dalcastagnès, “as verdades (já não é possível admitir o singular) estão sob camadas de interpretações” e, desse ponto de vista, é na ambiguidade entre o real e o imaginário que a narrativa se sustenta.

Ao final de A noite da espera, fica a pergunta: qual será o lugar mais sombrio? São Paulo? Brasília? Paris? Resta esperar os próximos volumes da trilogia para saber. Esse é o grande trunfo do romance: deixar o leitor na expectativa do que virá!

MILTON HATOUM
A noite da espera
São Paulo:
Companhia das Letras, 2017


 REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: A personagem de ficção. 2 ed. São Paulo, Perspectiva, 1970, p. 51-80

DALCASTAGNÈ, Regina. Da senzala ao cortiço: história e literatura em Aluísio Azevedo e João Ubaldo Ribeiro. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 42, 2001, p. 483-494

HATOUM, Milton. A noite da espera. São Paulo: Companhia das Letras, 2017

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História : representações, São Paulo: Anpuh/Contexto, v. 15, n. 29, 1995

SAMOYAULT, T. A intertextualidade. Sao Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008 . (traduçao de Sandra Nitrini)

SAMPAIO, Aila. Personagens em trânsito, espaços subjetivos e intertextos em A cidade Ilhada, de Milton Hatoum. In: Revista Triplov de Artes, Religioes e Ciencias, 5, 2010 http://novaserie.revista.triplov.com/numero5/aila_sampaio/index.html Acesso em 20/05/2018.