MARIA ESTELA GUEDES
FICHA TÉCNICA DO FILME NYMPHOMANIAC
Data: 2013. Produção: Marie Cecilie Gade, Louise Vesth. Realização e argumento: Lars von Trier. Fotografia: Manuel Alberto Claro. Música: Zentropa. Edição: Morten Hojbjerg, Molly Marlene Stensgaard. Elenco: Charlotte Gainsbourg, Stacy Martin, Stellan Skarsgård, Shia LaBeouf, Christian Slater, Jamie Bell, Uma Thurman, Willem Dafoe, Mia Goth, Sophie Kennedy Clark, Connie Nielsen, Michaël Pas, Jean-Marc Barr, Udo Kier.
As minhas boas vindas aos já habituados a estes encontros, e em especial aos que participam pela primeira vez: Manuel Santos, poeta, e Paulo Bragança, um excelente artista que nos vai presentear cantando a capella.
Sem nos darmos conta, os Encontros Triplov na Quinta do Frade consolidaram o seu timbre cosmopolita. Desta vez temos entre nós duas estrangeiras já com obra notável, Márcia Kupstas, brasileira, sobretudo ficcionista; Berta Lucía Estrada, colombiana com residência em França, é poeta e ensaísta.
Um dos temas do 5º Encontro é a “Mulher no mundo”. A mulher é fonte da vida. Se deram conta, o modo como os jovens relatam a sua vida sexual é dos temas mais inesperados na televisão dos nossos dias. Nos espetáculos mais avançados, que já não são só de dança porque se tornaram híbridos disso, de performance e de teatro, é comum o nu integral, quer feminino quer masculino. No Triplov contamos com vários jovens que cultivam a literatura fescenina. Por tudo isto resolvi abrir o 5º Encontro com uma obra que se enquadra nesta tendência, de Lars von Trier, Nymphomaniac. São dois filmes, cada um com mais de duas horas de duração, mas só contemplarei o primeiro.
Lars von Trier realizou filmes admiráveis, caso de Melancolia, o planeta que sai da sua órbita para colidir com a Terra, mergulhando as personagens num ambiente de tristeza concordante com o nome do bólide. Ninfomaníaca é admirável por outros motivos.
A minha análise é breve e pretende apenas discutir a classificação da obra: é erótica ou pornográfica?
Foi o próprio Lars von Trier quem, numa entrevista, declarou que o seu filme seguinte seria pornográfico, e não é preciso lermos que Charlotte Gainsbourg e outros atores foram substituídos por duplos, para verificarmos que em Ninfomaníaca há sexo real. Mas a pornografia não usa duplos, eis uma primeira alegação contra a etiqueta aposta ao filme pelo próprio realizador. Tanto não usa que Lars von Trier foi aos espetáculos de pornografia contratar esses duplos.
Charlotte Gainsbourg, para quem se lembra da célebre canção dos anos 70, “Je t’aime, moi non plus”, é filha de Jane Birkin e Serge Gainsbourg, e presto esta informação para garantir que ela é muito mais parecida com o pai do que com a mãe nos atributos da anatomia. Não creio por isso que encontrasse emprego na indústria pornográfica, onde as atrizes não só costumam ser bem providas de curvas, como é frequente recorrerem à cirurgia plástica para as avolumarem. E temos aqui mais uma diferença entre Ninfomaníaca e os filmes pornográficos.
Bem sabemos que a mais clássica diferença entre a pornografia e o erotismo, erotismo de Emmanuelle, por exemplo, diz respeito ao que se faz ou não faz em cena, ao que o espectador vê ou não vê. No filme erótico, o espectador não vê nada porque nada há para ver, anatomia íntima e ato sexual são apenas sugeridos, donde é convidado a imaginar; se o convite é esse, quer dizer a obra erótica é dotada de estrutura narrativa. Ninfomaníaca não só tem uma estrutura narrativa que vai de princípio ao fim do filme, decalcada da história de Xerazade e rei Chaariar, n’As mil e uma noites, como nela se encaixam as mil e uma peripécias sexuais contadas pela protagonista ao pescador que, encontrando-a ferida na rua, a levara para sua casa.
Ora na pornografia não existe sintaxe narrativa. O espectador não é convidado a imaginar, sim a ver e a fazer. Se o erotismo existe entre um par, sem olhares para a câmara, a pornografia existe para a terceira pessoa, o espectador; daí que as posições, inverosímeis às vezes, se destinem a exibir genitais para o voyeur, estimulando neste o desejo sexual. Aliás, os verdadeiros atores, na pornografia, não são tanto as pessoas, sim os órgãos genitais e atos sexuais. O olhar dirigido à câmara/ao espectador é uma típica figura de retórica na pornografia. Assim sendo, se a atriz passa a contracenar com o espectador, esboça nesse gesto um fio de narrativa, sim, mas de fuga para o exterior, o que acentua ainda mais o vazio diegético no interior do filme.
O olhar para a câmara não ocorre em Ninfomaníaca, complexa história em que as personagens interagem umas com as outras, num discurso estritamente interno.
Quer o erótico que o pornográfico visam o prazer sexual. Os filmes têm por objetivo excitar, despertar o desejo. Porém os modos e pontos de vista são dferentes. Há pornografia com etiqueta “para mulheres”, mas não difere das etiquetas “para adultos”, “hardcore”, “porno” e da mesma família. O ponto de vista, no filme pornográfico, é masculino, por isso incide nas características que a convenção atribuiu ao macho de primeira categoria: exuberante musculatura, potência e pénis de grandes dimensões. Em Ninfomaníaca, os homens são “pescados” aleatoriamente por Joe, a protagonista, daí que sejam velhos, novos, casados, solteiros, pobres, ricos, feios, bonitos, fortes e fracos, letrados ou não. Só quando, em aparência, Joe contrata dois homens para um ato sexual designado por “sanduíche”, é que essas personagens, dois negros decerto nados e criados no ginásio, se adaptam aos estereótipos do macho “alfa”. Porém o realizador destrói o estereótipo pornográfico com a paródia: os dois homens interrompem o que estão a fazer para desatarem numa feroz discussão, acusando-se um ao outro de incompetência na execução da tarefa sexual.
Passemos agora ao facto, visto que é só um com algumas variantes. O ato sexual e seus atores são dotados de sex appeal, esse excitante que desperta no espectador sensações agradáveis. E Lars von Trier, a que ingredientes de sex appeal recorre em Ninfomaníaca?
Eu diria que em Lars von Trier, em vez de sex appeal, apelo ao sexo, o que existe são repelentes sexuais. A cópula, na generalidade, é mecânica, as personagens não exprimem prazer, nada passa para o espectador normal que lhe dê gozo, pelo contrário: algumas cenas, como a do aborto auto-inflgido, ou a de flagelação, obrigam a desviar o olhar. A sequência com o pai, no hospital, de limpeza de fezes e seguintes cenas, é de uma repugnância intolerável.
Então que obra erótica, segundo a classificação da TVCabo, ou que obra pornográfica, segundo a classificação do próprio autor, é esta Ninfomaníaca?
Temos de saber primeiro que a ninfomania – satirismo, nos homens – é uma doença terrível, que se manifesta pelo desmesurado apetite sexual. Os doentes experimentam essa exorbitante fome porque vivem em falta, nada nem ninguém os satisfaz. Podem nem conseguir alcançar o orgasmo.
A minha classificação da obra é então diversa das duas já analisadas: trata-se de uma obra com vertente documental, que certamente obteve aconselhamento médico. Eu recomendo-a como obra de consulta obrigatória nos cursos de Medicina e a todos os que, além de cinéfilos, riem dos sátiros e das ninfomaníacas, julgando saber o que são, mas, se riem, é porque não sabem.
5º Encontro Triplov na Quinta do Frade
Casa das Monjas Dominicanas . Lisboa . Lumiar
17 de março de 2018