A navalha de Ockham e as encruzilhadas humanas

 

 

 

 

 


ALEXANDRE HONRADO


Artigo para A Religião na História: a Interface entre Crença, Política e Direito. Lisboa, Portugal: Edições Universitárias Lusófonas, 2024


RESUMO

O século XXI ainda não atingiu vinte cinco anos de vida e, no entanto, já produziu matéria suficiente para meditação profunda, reflexão apropriada e interesse académico da maior grandeza e responsabilidade. A Democracia, que parecia ser o melhor dos formatos políticos entre todos os possíveis, vê-se perante desafios enormes e extremos, que obrigam a decisões sociais urgentes e a uma nova produção intelectual capaz de entender e apoiar os desafios da nossa contemporaneidade. A necessidade da participação política do religioso parece ter surgido depois de uma participação efetiva do religioso na nova cartografia política. A humanidade precisa de justiça e estabilidade, perante os desafios naturais e humanos, das alterações climáticas aos discursos de ódio que nos agridem. A religião, a fé, o lado espiritual dos seres humanos, desempenham papéis singulares e fundamentais, em especial no que se relaciona com as questões éticas, invariavelmente presentes nas questões que coloca a crentes e não crentes. 

Palavras-chave: justiça; crença; religião.


SUMMARY

The 21st century has not yet reached twenty-five years of life and, however, it has already produced enough material for deep meditation, appropriate reflection and academic interest of the greatest magnitude and responsibility. Democracy, which seemed to be the best political format among all possible ones, finds itself facing enormous and extreme challenges, which require urgent social decisions and new intellectual production capable of understanding and supporting the challenges of our contemporary times. The need for the political participation of religious people seems to have arisen after the effective participation of religious people in the new political cartography. Humanity needs justice and stability, faced with natural and human challenges, from climate change to the hate speech that attacks us. Religion, faith, the spiritual side of human beings, play unique and fundamental roles, especially when it comes to ethical issues, invariably present in the questions it poses to believers and non-believers.

Keywords: justice; belief; religion.


1.

Clyde Kluckhohn: “a cultura é o modo de pensar, de sentir, de agir e de reagir de um grupo humano, sobretudo recebida e transmitida pelos símbolos, e que representa a sua identidade específica: ela inclui os objetos concretos produzidos pelo grupo. O coração da cultura é constituído por ideias tradicionais e por valores que estão interligados[1] KLUCKHOHN;1954: 559-563.

Foram necessários muito séculos de produção intelectual até que, com John Rawls[2] e Jürgen Habermas[3], se proclamasse a necessidade da participação política do cidadão religioso na vida das democracias. Sem a sua presença, o debate político seria menor, pelo menos no contributo para o constructo de uma sociedade plural e democrática, logo mais justa, que precisa da sua prática analítica e ativa como formas integrantes e fundamentais, trazendo à esfera coletiva as qualidades intrínsecas das cosmovisões tradicionais religiosas, mesmo quando emergentes de minorias e de universos recatados e tradicionalmente não protagonistas de mudanças e decisões.

Antes do mais, a fé desempenha um papel singular, em especial no que se relaciona com as questões éticas, invariavelmente presentes nas questões que coloca a crentes e não crentes.

Parte relevante e elevada da cultura humana, a Religião é a expressão organizada, estruturada, ritualizada que acolhe a religiosidade, um formato para a fé, portanto.  A Religião, em última análise, é um corpo ancestral, teórico e prático, alicerçado nos códigos éticos, morais e jurídicos da Humanidade. Ao estabelecer regras de conduta e a obrigatoriedade de comportamentos, de modo lato, ela própria é o Direito proporcionalmente em sentido amplo, seja traduzida nas formas organizadas nas primeiras sociedades complexas, seja explícita na “justiça imanente”, [4] nos Dez Mandamentos ou Decálogo das religiões abraâmicas, que estruturam ética e adoração, seja no artigo 18[5] da Declaração Universal dos Direitos Humanos, seja na mais recente Lei da Liberdade Religiosa [6]consagrada em Portugal. Coincide, por vezes, com a própria regra dos Estados e em muitos momentos da História fundiu-se neles, estabelecendo-se como poder, protagonizando-o ou partilhando-o.

A religiosidade, por seu turno, radica em imperativos categóricos individuais, em opções e sentimentos dos indivíduos – e pode estar, ou não, na relação direta com a religião, mas deve constituir, sem exceção, direito inalienável de cada ser humano. Nessa perspetiva, a sua prática e pluralidade devem ser defendidas pela teia privilegiada dos dispositivos da jurisprudência, oferecendo como prioridade a cada um dos cidadãos a possibilidade de crer em liberdade, professar em liberdade, seguir um culto em liberdade e promover a proximidade com aqueles que partilham as mesmas escolhas, reunindo-se em pequenos ou grandes centros de reflexão e partilha.

Já a espiritualidade é a forma como o indivíduo se relaciona com o que sente como crença, é um processo individual do sentir e do explicar o que considera transcendente e não tangível, o que o sensibiliza para lá de qualquer formato material e perentório.

 

2.

Thomas Piketty afirma que um percurso evolutivo com limitações em direção à igualdade, um processo hesitante e caótico. No qual o conflito social desempenha um papel fortíssimo. Implica, por outro lado, formas de aprendizagem coletiva (PIKETTY:11-12).[7]

Houve já quem dissesse, referindo-se aos tempos mais recentes que todos vivemos, com maior ou menor proximidade, que abandonámos a simbologia, diluindo-nos numa sociedade de coletivos híbridos, longe da simbólica, até distante do que cada um de nós prefigura e alcança, sozinho, em duo ou em coletivos mais vastos. Não será sentença derradeira, e torna-se tão discutível como todas as aventuras que pretendem criar redomas para a nossa contemporaneidade: somos a simbologia readquirida, restaurada e estranhamente em nada paritária, pois cada um de nós exibe-se com a carga icónica que entendeu sintetizar como sua. Marcamos a pele, os muros, as horas mediáticas com uma chuva meteórica de símbolos, alguns desgovernados, outros sugados na sua natureza seminal, mas pródigos como enfeites de uma sociedade esfomeada, de pão e deuses, em busca de um alimento novo para o espírito e só superficialmente espiritual, um secreto maná que possa saciar-nos. Assim nos afastamos da Religião, muitas vezes da fé, quase sempre do transcendente, com a estranha ilusão de cultivarmos uma carga espiritual tão nossa que dispensa qualquer outro, mesmo divino. Enredamo-nos em frases imperfeitas: ser crente e não praticante; acreditar mas duvidar; ter um ente superior como guia, mas não crer como os nossos antepassados; não acreditar em nada mas precisar do conforto do corpo coletivo que nos aceite; reforçar o individualismo pelo estranho medo de aceitar quem é diferente, de aspecto, pensamento, ação – e ralação àquele que somos…

É mais um tempo de charneira, este nosso, como os que nos trouxeram até aqui na violência abjeta do século passado (o século XX foi o palco das maiores e mais repulsivas carnificinas, de todos os genocídios e de uma falta de inteligência sem comparação desde a aparição do ser humano sobre a Terra). Isto não invalida aceitar que, antes, também outros tempos de mudança foram determinantes noutros séculos e que a história escondeu em páginas diversas e não unânimes, em passagens de tempo que lançaram para escuros redutos onde a recordação não se compadece recordando-os e simplesmente fez (e faz) por esquecer ou obliterar – o que pode equivaler a uma herança perigosa para aqueles que desconhecendo podem repetir o pior do que os antecedeu.

A fórmula da Antiguidade “Conhece-te a ti mesmo “(tantas vezes repetida; nem o oráculo do filme Matrix hesitou em usá-la naquele filme considerado “de culto” para tantos espetadores), parece hoje uma impossibilidade: o Eu é um ponto inalcançado e inalcançável, submetido a todas as metamorfoses e a todos os desafios que o fazemos sofrer; os Outros são uma idealização pouco clara que formamos por comparação ao Eu que queremos alcançar ou construir.

Para entender o mundo que nos é dado viver presentemente – com o reacender de memórias ásperas, o regresso da Guerra ao nosso espaço geográfico, tão orgulhoso das suas ideias de proximidade, direitos humanos, e apaziguamentos culturais e diplomáticos, a lavra dos discursos de ódio, a insistência em divisões antagonistas – lutas de género, de “identidade”, religiosas, ideológicas, económicas… – , a emergência dos populismos, dos fascismos, das sociedades de governação musculadas, espantosamente escolhidas pelos eleitores em espaços democráticos e complacentes, a violência em todas as suas gradações, da doméstica à gestão demente de países e pessoas, o retorno à barbárie nas suas formas mais agressivas e imundas -, para entender o nosso mundo, talvez se reclame o pensador que ainda não surgiu, o filósofo que ainda não pensou, o cientista social que ainda não provou cientificamente que o lugar humano não é um não lugar para os indiferentes e os que desdenham, mas o espaço eleito de quem tem um papel a desempenhar num planeta pródigo que esgota os seus recursos para permitir-nos os caprichos e todos os excessos.

Talvez um historiador que viva cem anos – como Eric Hobsbawm – ou um pensador que ultrapasse a graça de ser centenário – como Edgar Morin ou Habermas -, ainda um eleito, com quase igual tempo e percurso de vida, que nos ensine a resistir – como Noam Chomsky -, nos expliquem quem somos nós e sobretudo o que queremos ser com os outros. Até lá, fechamo-nos em rincões académicos, em exíguos espaços de interrogar o saber e aqui esforçamo-nos e esperamos.

Vemos definhar a cultura ocidental, alicerce da boa esperança, da paz, da harmonia, da diplomacia, pequeno inseto a definhar sobre o leito de uma família indiferente, os autoproclamados ocidentais, como no conto, aliás já centenário, do escritor Franz Kafka, que anunciou a angústia humana nas vésperas da Primeira Guerra, que acabaria por conduzir à Segunda (toda a família de Kafka morreu às mãos dos nazis), um escritor que, não assumindo a religião (a sua família era judia) parece ser um mestre na forma de abordar e de narrar a inter-relação que há entre o mundo oculto e no mundo revelado. (Kafka aparece aqui por ter sido um dos autores mais determinantes das mudanças culturais globais, tocado vivamente pelo religioso e pelo humano, não os confundindo ou pelo menos não os sinonimizando).

O entrelaçado destino entre poder e violência deixa sempre uma miríade de dúvidas e de interrogações aos que estudam os tempos de mudança do mundo procurando alcançar, nas suas caprichosas imanências, um ponto de chegada, uma meta, que seja um valor maior, concentrado, uma utopia qualquer – como a que no espaço da cultura europeia surgia tantas vezes das viagens operadas em nome de qualquer peregrinação espiritual, policromática peregrinatio pro amore -recompensada com a dilatação de valores essenciais e transcendentes.

Nalguns relatos, a demanda impunha iniciações e passagens místicas, encontrando etapas intermédias por vezes insuportáveis – infernais? – até ao alcance de um derradeiro paraíso.

Efeitos especiais, é bem sabido, são deixados nas narratologias e hoje podemos ler com interesse crítico os relatos mais extraordinários e de imaginários poderosos, quase todos convergentes na sugestão de uma diluição identitária dos sujeitos, na magnânima presença de entidades ou existências superiores.

Aos humanos não caberia assim a última palavra. Na Antiguidade, ela ficava na boca dos deuses, a cosmologia ditava regras e explicações. Na Idade Média, a gestão do destino era teocêntrica; na Idade Moderna, o horror de decidir, julgar, fazer e justiçar, era preferencialmente antropocêntrico – pobre ser humano com a tômbola das respostas na gestão do presente e na ambição do seu futuro. Na Contemporaneidade, o caos da desconstrução impõe-se por querer, a um tempo, ser poder e violência, duas vertentes que se fundem numa só e que dependem do discurso do ódio para as sustentar e legitimar. As estruturas de crença enraizadas em milhares de anos, as religiões em seu lugar próprio, parecem quantificar-se, desmoronar-se como os glaciares empurrados pelo aquecimento global – a digladiarem-se num patético, assustador e irreversível clima de destruição.

Sem formular qualquer antevisão futurológica, a próxima etapa será possivelmente a escolha de uma das duas hipóteses: ou o extermínio do ser humano tal como o conhecemos (produto de uma evolução espantosa, mas sem regras nem autodefesa) ou uma era de religar os valores estilhaçados – e que, assim sendo, será uma nova era com um novo cariz religioso?

Efeitos de proximidade, humanismos variados, paz, concórdia, bem-aventurança, solidariedade, alteridade, o lado construtor do humano pela aceitação e integração das suas diferenças, explodem perante o triunfo do medo, que resulta sempre da ignorância e da falta de cultura.

Escavamos as nossas trincheiras egocêntricas; a criação de bolhas individuais ou de pequenos coletivos, impedem-nos alargar os nossos universos culturais, a nossa capacidade de entendermos o coletivo, o que é cosmopolita, o global, o mitcultural (isto é, aquele que admite, respeita e aprofunda o multicultural, o intercultural e o transcultural, como vértices do mesmo espaço comum que é, afinal, o espaço ocupado pela cultura humana).

 

3.

Santo Agostinho deixou para pensar a afirmação: Tenho agora de recuar os pensamentos para as coisas abomináveis que pratiquei nesses dias (AGOSTINHO; 16:2007)[8].

Vivemos a sociedade do indivíduo que parte para a competição todos os dias, esquecido que não depende apenas de si, mesmo que a sua opção seja o seu voluntário isolamento, o morrer como um peixe condenado nas redes (sociais) da sorte que lhe coube. A máxima medieval de Guilherme, um monge natural de uma pequena localidade, Ockham, do sul de Inglaterra, parece aplicar-se, nestes tempos extremistas, ao sofrimento nosso de cada dia: em igualdade de condições, a solução mais simples é também a mais provável.

Guilherme de Ockham é reconhecido pelo seu importante contributo para o desenvolvimento das ideias constitucionais ocidentais, especialmente para a ideia de governo com responsabilidade limitada. Foi um dos primeiros a defender a separação igreja/Estado e estará na origem de algumas das ideias que acabariam por considerar-se hoje fórmulas propedêuticas das ideologias democráticas liberais. Era franciscano e, num tempo de ameaças, no século XIII (EC), também Francisco de Assis, pouco antes de Guilherme, reclamava como prática de salvação o cristo mimetismo, isto é, a opção por uma vida de imitação total da vida de Cristo (o que para muitos é impossível, para outros um sintoma de megalomania, todavia diluído com a ideia do humano-divino autossuficiente que se considera global na sua solidão).

Mais de 800 anos depois, assistimos a uma civilização desavinda, mas com pontos convergentes, como aquele que mostra como os seres humanos invejam e copiam os desejos uns dos outros e se movimentam em universos convergentes que os arrastam para um mesmo precipício.

A imitação de Cristo parece hoje, a todos os títulos, improvável e impossível. O caminho foi sempre na direção oposta: das ilusões à transformação dos desejos.

Ação e contemplação parecem hoje ferozes rivais.

Julien Benda (1975, p.207), fala-nos de uma religião de traços memoriais[9]. Vivemos numa época sem capacidade de evocar memórias, perdendo-se no imediatismo, na vanidade de uma cultura de consumismo, formatada pela ecranização e pela tremenda falta de cultura e amor humano. Só são felizes aqueles que acreditam naqueles que os fazem felizes. E se aqueles que os fazem felizes não acreditam na felicidade, podem deitar tudo a perder.

A solução mais simples é também a mais provável.

É, apenas, uma questão de crença e de apaziguamento interior.

 

Notas

[1] KLUCKHOHN, Clyde. (1952). Culture: a critical review of concepts and definitions. Massachusetts: Cambridge.

A citação consta do Reviewed Work: Culture; A Critical Review of Concepts and Definitions by A. L. Kroeber, Clyde Kluckhohn, Wayne Untereiner, Alfred G. Meyer

Review by: Abraham Edel in “The Journal of Philosophy” vol.51, nº19, de 16 de setembro de 1954. Páginas 559-563. Published By: Journal of Philosophy, Inc.

[2] John Rawls (1921- 2002), professor de filosofia política na Universidade de Harvard, autor de Uma Teoria da Justiça, Liberalismo Político e O Direito dos Povos.

[3] Jürgen Habermas (1929-), filósofo e sociólogo alemão que dedicou a sua vida ao estudo da democracia, especialmente por meio das suas teorias do agir comunicativo, da política deliberativa e da esfera pública

[4] Expressão usada desde 1927 por Jean Piaget e descoberta por numerosos investigadores em crianças de culturas e religiões diferentes. É uma disposição estudada ainda por Monique Landau e Adrian Pinar em 1962, num quadro mais vasto do acesso progressivo da criança ao pensamento causal.

[5] O artigo 18º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) afirma que “toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos”.

[6] Lei 16 de 2001: “A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável e garantida a todos em conformidade com a Constituição, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o direito internacional aplicável e a presente lei.”

[7] PIKETTY, Thomas. (2024). Natureza, cultura e desigualdades – Uma perspetiva comparada histórica. Lisboa: Objetiva. Tradução de Carolina Cruz.

[8] Agostinho Santo. (2007). Confissões de um pecador. Almargem do Bispo: Coisas de Ler Edições. Tradução de Jorge Pinheiro e Susana Almeida.

[9] BENDA, Julien. La trahison des clercs. Paris: Grasset, 1975 [1927].