Violência, um tema corporal
A violência deve ser o mais universal e variado dos temas. Encontramo-lo em toda a narrativa, desde os mais antigos textos conhecidos até aos mais recentes, desde a violência psicológica à física, desde a negligenciável até à merecedora de pena máxima. O seu alvo é aquilo que temos de mais nosso e por isso mais valioso, o corpo. Infelizmente, a arte e o espetáculo não a inventaram. Podem é ser tão imitativos que replicam a violência real, como os combates de boxe. No Coliseu romano, a brutalidade e a morte eram diversões. A religião também não está isenta, bem sabemos de antigos rituais em que se sacrificavam donzelas, em que se bebia sangue humano, e enfim, passando adiante as guerras de religião e os tão lamentáveis casos de crime sexual cometido contra crianças, lembremos que Jesus Cristo foi vítima dos mais diversos atos de agressão, a culminarem na morte.
O tema é vastíssimo, vou pegar apenas em alguns exemplos das artes da imagem para ver como se apresenta a mulher neste domínio da violência, tradicional e maioritariamente próprio do homem.
De Olívia Palito às meninas Bond
Existem diferenças profundas entre as várias manifestações de violência, de acordo com a estética de cada autor. Nas histórias de quadradinhos, do Tio Patinhas ou de Astérix, em que as personagens são espancadas, espalmadas, torcidas, assadas e reduzidas a um trapo, a violência é absorvida pelo riso e pelo espanto, porque logo o agredido se levanta, como se nada lhe tivesse acontecido. Por razões de estilo, em muitas destas histórias, a morte não existe. Salvo alguma exceção, as figuras femininas na área dos quadradinhos, pelo menos na mais antiga, são protegidas dos heróis, caso de Olívia Palito. Nas mais notáveis criações, como as séries de Astérix e de Tintim, a presença da mulher é fraca, a menos que um tema histórico traga à tona figuras como a de Cleópatra, que então adquire protagonismo.
Nos filmes de James Bond, a violência apresenta um estilo que necessita de cenário fantasioso e inovação nas técnicas de infligir dor. O identificativo 007 assinala a ordem para matar. Porém, a morte é uma figura de retórica, visto que grande parte do interesse dos filmes vem do modo como se mata, luta, persegue e foge, ou seja, vem das técnicas e da tecnologia usadas para exercer a violência. Essa violência acentua-se na perversidade dos que se fazem acompanhar por algum objeto ou animal terno, a exemplo do gato acariciado por Ernst Stavro Blofelf, no papel de supervilão, em Spectre.
A tecnologia é sempre nova e audaciosa, a concordar com o protagonista, um cavalheiro imperturbável, elegante, capaz de usar smoking mesmo em cenas de combate. Irresistível para as mulheres, fazem parte da retórica e publicidade da série as belas atrizes que o coadjuvam. Em geral, podendo embora não vencer lutas com James Bond, elas estão à altura dos homens na destreza física e manejo de armas, sem perderem os carateres feminis, dos quais o mais importante é a beleza. A cederem à guerreira os atributos convencionais do feminino, mesmo ao apresentarem visual masculino, elas não perdem fascínio nem poder de sedução, e estou a lembrar-me de Grace Jones, em A vue to a kill/Alvo em movimento. As mulheres, em paralelo com o sofisticado James Bond, nunca são convencionais .
Umberto Eco usa, para exprimir as características de 007, as expressões “matar friamente”, ser um assassino “burocrático”, “assético”, e cita, da obra de Ian Flemming, que analisa em O Super-Homem das Massas, o descritivo ”máquina magnífica”. A máquina magnífica posiciona 007 no caminho para os robôs e ciborgues, entre os quais é bom exemplo O exterminador implacável. Na verdade, James Bond, sem toda a sua elegância e charme, sem o seu poder de sedução, não passaria de um robô, incapaz de empatia com o sentimento dos outros.
Quentin Tarantino
Nas últimas décadas, acompanhando a gradual consignação de igualdade de direitos de género, e progressiva conquista de independência por parte de algumas mulheres nos regimes democráticos, a imagem que as diversas artes vêm dando da mulher modificou-se bastante. A violência doméstica e sua frequente impunidade também puseram em cena mulheres de armas, capazes de resolver os problemas fora da lei, já que a lei confere direitos mas não assegura a condenação dos criminosos nem a defesa das vítimas. Neste caso, é evidente o filme Enough/Basta!, de Michael Apted, protagonizado por Jennifer López, em que a mulher agredida, industriada pelo advogado e nas artes marciais, resolve o problema por suas próprias mãos, matando o marido em combate equiparável a um duelo. Filme violento, move a tão grande catarse que o ator que contracena com ela nem sequer é referido na capa do DVD disponível no YouTube. Sejamos justos, o ator não é o marido, tem direito ao nome: Bill Campbell.
Deixando de lado o filme Basta!, as Amazonas, heroínas como Joana d’Arc e a padeira de Aljubarrota, a banda desenhada de que nasceu a série televisiva da Wonder Woman, interpretada por Lynda Carter, nos anos 70, fiquemos com um dos mais agressivos realizadores de cinema atuais, Quentin Tarantino. Enciclopédia da cena sangrenta, vamos analisar quase só a parcela relativa ao capítulo 5 / “A casa das folhas azuis”, do duplo filme interpretado por Uma Thurman e David Carradine, intitulado Kill Bill. Embora a violência, em Quentin Tarantino, seja tão superlativa que extravasa para o fantástico, os filmes deste realizador documentam que a mulher endureceu, ganhou músculo e destreza no manejo das armas, de modo a comportar-se na rua como guerreira e em casa como vingadora. Em Kill Bill, a Noiva, protagonista, vítima de violência desde antes do ensaio para o casamento, deixada meio morta e grávida entre uma dezena de vítimas de um massacre liderado por Bill, o ex-companheiro, enceta um périplo de vingança em que abate dezenas, de preferência por mutilação de membros e decapitação, sob apoteóticos repuxos de sangue. Beatrix Kiddo resolve os problemas à sua própria custa, depois de ter viajado até ao Japão, onde adquiriu a sabedoria das artes marciais do samurai e uma espada mágica, a citar Excalibur.
Teatro e bailado na “Casa das Folhas Azuis”
A violência, em Quentin Tarantino, estabelece-se como arte e arte muito complexa, sobretudo porque caldeia referências a filmes de vários géneros. Em Kill Bill, domina o tom do samurai e do kung-fu, superlativado pela representação do teatro kabuki, embora haja um estilo de luta para cada um daqueles que tentaram assassinar a Noiva, e de quem se vinga, matando uns após outros. A cena do massacre na igreja é filmada em preto e branco, e ao estilo do western. Outras cenas de luta estabelecem referências a Matrix, Tron-Legacy e aos filmes com Jean-Claude Van Damme. Como em Matrix, a Noiva trepa pelas paredes e executa outros movimentos improváveis; a Tron, rouba o design inovador, patente na moto e no macacão listrado de Beatrix. Já os filmes com Van Damme trabalham sobretudo a coreografia, transformando as cenas de luta em espetáculos de bailado. Especialista em karaté, com experiência de bailarino, Van Damme é habitualmente o coreógrafo das suas próprias cenas de combate. Em entrevista, declarou que o ballet não é só uma arte, também é um dos desportos mais difíceis. Quem sobrevive aos exercícios de ballet, sobrevive aos de qualquer outro desporto – acrescentou. Se bem que as performances de artes marciais comportem sempre uma coreografia, advinda da sequência de movimentos estereotipados, em Kill Bill a dança domina a luta, suportando o peso do sangue e da inverosimilhança de combates em que a Noiva vence diversas fornadas de bandidos armados, portadores de mascarilha, exatamente como os irmãos Metralha. Assim, o capítulo V de Kill Bill, cujo cenário é o clube A Casa das Folhas Azuis, é uma sucessão de variados combates, classificável como bailado.
Nessa sucessão, o duelo com Go-Go, a menina do mangual, é das mais arrepiantes. De um lado temos uma adolescente, em uniforme de colegial, a brandir a terrífica arma de guerra medieval; de outro, a espada de samurai forjada expressamente para a Noiva pelo Mestre Hattori Hanzo. A espada vence o mangual, de resto a espada é mais poderosa ainda que Excalibur, ela vence todas as armas e todos os guerreiros, mesmo que irrompam às catadupas de detrás da cortina de um palco.
É realmente como num musical que os lutadores de negro vão entrando no interior da Casa das Folhas Azuis, cuja dona, O-Ren Ishi, mulher das três nacionalidades, é identificada com o superlativo hebraico: vilã de todos os vilões, isto é, chefe máxima de todos os chefes de gangues de Tóquio. O duelo entre Beatrix Kiddo e uma super-vilã como O-Ren Ishi fica para o final. Até lá, acompanhando os lances violentos, o género de filme e até a cor do cenário vão mudando, numa explosão de metacinema, em que o filme conversa com muitos outros filmes, desde os de animação até aos de terror.
Se a cor muda, com expoente na piscina interior que muda de azul para sangue – todos os braços e cabeças decepados são repuxos a cair na água -, se muda o género, desde o musical até à projeção de sombras chinesas, já a cena final é branca, de noite banhada pela doçura do luar no jardim da Casa das Folhas Azuis. O duelo trava-se sobre a neve, numa comparação interna entre a morte de O-Ren Ishi e a brancura do vestido de noiva da grávida Beatrix Kiddo.
Derradeira violência: morgue e autópsia
Nos últimos anos, a expressão da violência tornou-se cada vez mais corporal. Embora o policial clássico exija uma vítima de homicídio, ponto desencadeador da narrativa, em alguns pode nem se ver o morto. Talvez por influência do filme de ficção científica, em que os extraterrestres ou terrestres transmutados, à imagem de Alien, ou de A mosca, de David Cronemberg, são criaturas repugnantes, moles, que se babam, o policial passou a ter corpo evidente. A violência é desmedida, o corpo sangra, sujeito a mil torturas, e evidencia os mucos, as vísceras, os órgãos internos, virando o corpo do avesso.
As obras em que a presença do corpo mais se faz notar são as séries de televisão. O laboratório de medicina forense assentou arraiais no écran, e agora, nova personagem, a ser contemplada pelo espectador em toda a sua nudez, é o cadáver. Assistimos às autópsias, vemos o cirurgião abrir o tórax da vítima, vemo-lo pegar no couro cabeludo e virá-lo do avesso, para observação das fraturas cranianas e até do cérebro. Uma nova equipa de personagens fez igualmente a sua aparição, os investigadores científicos. Como é de esperar, um novo espaço cénico surgiu diante de nós, a morgue, com os laboratórios anexos. Tudo isto é inédito, embora nem sempre agradável de ver. Porém é inegável que muitos temas e situações novos surgiram no écran, devidos ao facto de o corpo ter passado a ser exibido também na sua dimensão anatómica e fisiológica interna. Títulos de série como Ossos, com uma osteologista a determinar o curso da investigação, ou como Testemunha silenciosa, o cadáver, cujas feridas e anomalias biológicas, ao denunciarem as circunstâncias da morte, apontam o dedo ao assassino, são exemplos conhecidos. Entre os cadáveres, contam-se mulheres, e entre as mulheres muitas são vítimas de um crime que mereceu neologismo, a garantir que nos matam pelo único motivo de pertencermos ao sexo feminino: femicídio.
Maria Estela Guedes