A minha vizinha japonesa

 

 

JOÃO CAMILO


João Camilo dos Santos foi Professor Catedrático de Literatura Portuguesa e Brasileira e de Comparative Literature na Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, e Director do Centro de Estudos Portugueses da mesma universidade entre 1989 e 2015, tendo criado em 1994 a revista Santa Barbara Portuguese Studies. Actualmente Emeritus Professor da University of California. 

Licenciado em Filologia Românica pela Universidade Clássica de Lisboa. Doutorou-se em Letras em França em 1983 com uma tese sobre Carlos de Oliveira (Carlos de Oliveira et le Roman, Fundação Gulbenkian, Paris, 1987). Ensinou antes de ir para os Estados Unidos nas universidades de Oslo, Rennes, Aix-en-Provence e Grenoble. Foi Conselheiro Cultural na Embaixada de Portugal no Reino Unido entre 2000 e 2003.

Tem-se dedicado em particular ao estudo da literatura portuguesa dos séculos XIX e XX. Publicou artigos em revistas, livros e jornais literários. Publicou em livro o estudo sobre Carlos de Oliveira acima mencionado e Os Malefícios da Literatura, do Amor e da Civilização, Ensaios sobre Camilo Castelo Branco (Fim de Século, Lisboa, 1992). Organizou, entre outras, a edição de  Camilo Castelo Branco, No Centenário da Morte (Centro de Estudos Portugueses, Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, 1995), e co-organizou com Frederick Williams a edição de O Amor das Letras e das Gentes, In honor of Maria de Lourdes Bechior Pontes (idem, 1995) e com Francis Dutra The Portuguese and the Pacific I (idem, 1996). Selecionou e prefaciou os contos de Machado de Assis, em O Alienista e Outras Raridades (Ovni, 2006).

É autor de Retrato Breve de J.B., novela (Editora Paisagem, Porto, 1975; 2ºª ed. Fenda, 2006); O Grande Frémito da Paixão, narrativas (Edições Fenda, Lisboa, 2002); Um Animal de Pele Branca, Imaculada, Entroncamento, Ovni, 201.1

Publicou os seguintes livros de poemas: Os  Filmes Coloridos (Edições Árvore, Porto, 1978); O ruído fino (antologia, Edições Limiar, Porto, 1979, in A Jovem Poesia Portuguesa I, com Wanda Ramos e Eduarda Chiote); O T de Tu (Edições Fenda, Coimbra, 1981); Na Pista Entre as Linhas (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1983); Para a Desconhecida (Edições Fenda, Lisboa, 1983); A Mala dos Marx Brothers (Editorial Caminho, Lisboa, 1989); A Mais Nobre das Artes (Editorial Caminho, Lisboa, 1991); e Nunca Mais se Apagam as Imagens (Edições Fenda, Lisboa, 1996); A Ambição Sublime (Edições Fenda, Lisboa, 2001); O Elogio do Silêncio, Évora, Casa do Sul Editora, 2005; O Som Atinge o Cimo das Montanhas, Entroncamento, Edições Ovni, 2006; A Ignorância e o Conhecimento, Entroncamento, Ovni, 2011.

Autor também de Uma sonata de Brahms e Outros Diálogos, Covilhã, Capital do Teatro, 1998. Uma sonata de Brahms foi levada à cena e representada em várias ocasiões (nomeadamente no Festival Internacional de Teatro da Guarda) pelo grupo Aquilo, em encenação de Américo Rodrigues.


Excertos

 

1

 

Nesta cidade chove muito. Chove todos os dias, embora não chova ininterruptamente, pois também há momentos de sol e então o tempo, esplendoroso, convida a andar na rua e a usufruir da vida. Quando a luz banha as casas, tira-as do anonimato baço, da sonolência discreta. E o coração alegra-se com a revelação.

Não conheço quase ninguém, pois cheguei há um mês apenas para iniciar uma nova etapa da minha carreira. Talvez a última etapa, antes de me retirar num lugar tranquilo e esquecer os aborrecimentos que sempre acabam por nos trazer as relações com as pessoas, sobretudo no lugar de trabalho.

Em frente das minhas janelas, a seis metros mais ou menos, mora, sozinha, uma rapariga japonesa. Vejo-a muitas vezes, sobretudo à noite, sentada diante do computador portátil. Liga-se à Internet e fica horas ali, na sala ao lado da cozinha, entretida. Tem belos cabelos negros, que às vezes acaricia com a mão, distraidamente. Outras vezes apanha os cabelos, puxa-os para o cimo da cabeça e dá um nó, fica então com um montículo de cabelo lá no cimo e com a nuca descoberta. Da minha janela não vejo o suficiente para poder falar da pele dela. Há dias pensei em comprar uns binóculos para poder observá-la mais em detalhe, pois neste momento, para além do trabalho, ela é a única realidade fixa da minha vida. Mas não creio que o faça, foi apenas um devaneio momentâneo.

Está a chover e é sábado. Estou à espera dos empregados de uma companhia de televisão e telefone, que deviam ter vindo entre as oito horas e o meio-dia fazer as ligações necessárias e ainda não apareceram. Há um mês que marcaram esta data (este dia e hora), ontem telefonaram-me a confirmar que vinham. No entanto não aparecem. Cada país tem os seus hábitos, a sua rotina, não há nada a fazer. O que nuns sítios e nuns casos é simples, noutros sítios e noutros ou nos mesmos casos é complicado. Já decidi não me enraivecer com isso.

Há tantos automóveis nesta cidade que é difícil imaginar que se possa circular nela com prazer. Por isso tenho andado muito a pé (o lugar onde trabalho fica perto do meu apartamento) e ainda nem me decidi a comprar um carro. O carro que tinha no país onde vivia antes vendi-o a um amigo. Tem-me feito bem caminhar nas ruas desta cidade, mesmo se no início me doíam as pernas e sobretudo os pés. Agora já me sinto mais em forma e nem me preocupo excessivamente por não fazer ginástica ou praticar algum desporto. Quando estiver mais adaptado é possível que volte a nadar, a jogar ténis ou a correr de vez em quando num dos inúmeros e magníficos parques que dentro da confusão da cidade são como um oásis de paz.

Estamos em Novembro e o Natal aproxima-se. Sente-se isso na azáfama que começa a animar as lojas e os grandes armazéns. Tenho tanta coisa a pôr em ordem na minha vida actualmente que a proximidade dessa época festiva não me perturba, realmente. Sei que vêm visitar-me e que não estarei só, no entanto. Tenho pena de não poder passar esses dias com os meus pais, agora que estou mais perto. Eles estão velhos e todo o tempo que possa passar com eles é importante para mim. Mas desta vez não vai ser possível ainda, pois não posso sair daqui. A viagem não é longa, mas as férias são excessivamente curtas. Além disso os preços dos bilhetes de avião aumentam escandalosamente nestas ocasiões e como poderei visitá-los mais tarde não me parece que valha a pena fazer disso um problema. Estarei a agir de maneira excessivamente fria? Não creio, mas é-me difícil avaliar o meu comportamento a partir de uma perspectiva diferente da minha.

Os funcionários da companhia de televisão e telefone não aparecem nem dão sinal de vida e começo a aborrecer-me. A falta de respeito que neste país às vezes se tem pelas pessoas surpreende-me. No país onde vi anteriormente, este tipo de coisas resolvia-se depressa e sem complicações. Mas na velha Europa os costumes, pelos vistos, sempre foram e continuam a ser diferentes. Não ter telefone em casa (comprei um telemóvel, mas fica-me bastante caro utilizá-lo) nem televisão é um inconveniente. À noite, em particular, quando chego do trabalho, aborreço-me às vezes bastante. Se tivesse televisão, pelo menos distraía-me um pouco e evitava ficar aqui a remoer velhas lembranças. E se tivesse telefone podia mais facilmente sair desta solidão que às vezes me oprime um pouco.

No meu trabalho o ambiente é bom. Pelo menos é a minha impressão inicial e é isso que conta, o que eu penso ou sinto. Não ignoro que só com o passar do tempo poderei ajuizar exactamente da situação. Mas cada coisa na devida altura. O carácter, a personalidade dos meus colegas certamente não se revelaram ainda de maneira perfeita. Mas é natural e de qualquer modo é sempre assim. Mais tarde, tendo-os visto agir em circunstâncias menos e mais importantes, chegarei a uma conclusão. Mas o que queria sublinhar é que de momento me sinto feliz, satisfeito por ter aceite o desafio que foi ter vindo para aqui. Nunca é fácil abandonar um lugar onde já se criaram algumas raízes e hábitos para ir começar de novo a adaptação a outra realidade, num país ou num continente diferente. Sem contar que as pessoas têm tendência a não facilitar a vida a quem acaba de chegar e nunca se sabe o que nos espera. Mas essa mudança já aconteceu tantas vezes na minha vida que provavelmente o desejo ou necessidade de mudar de ares é uma característica da minha personalidade e uma fatalidade do meu destino inscrita nos genes. E deve ser também a minha maneira de escapar ao tédio que constantemente ameaça as nossas existências.

 

5

Substituí a corda da viola e afinei-a. Era a corda de Mi. Quando estava nisso acendeu-se a luz no apartamento da japonesa e vi-a surgir, vestida de preto como é costume, os belos cabelos negros sobre os costas. Olhou para aqui com curiosidade, apercebi-me disso pelo canto do olho. Não quero que ela pense que estou a vê-la, à espera de estabelecer com ela alguma relação de sinais ambíguos mas que pouco a pouco criariam entre nós um diálogo. Ela pode não apreciar. E também não quero parecer excessivamente indiscreto e incomodá-la com a minha atitude. Ela está sentada diante do computador, na Internet provavelmente, a ver o correio ou a ler o jornal. Está de perfil. Devia ir lá dentro à sala buscar os binóculos que encontrei numa gaveta e tentar ver de perto o seu rosto, as suas expressões. Provavelmente ficaria desiludido. Ou talvez não, quem sabe? O mistério, a ambiguidade impressionista criada pela distância são agradáveis, porém. Mas mesmo vendo-a de mais perto o mistério e ambiguidade podiam até manter-se e aumentar. Nunca se sabe. Fica para outra ocasião, no entanto, essa experiência.

Pouco se demorou na sala ao lado da cozinha e apagou a luz, deve estar a preparar-se para ir para a cama. Tão perto de mim, provavelmente nem a oito metros da minha janela, e é como se estivesse a quilómetros de distância, pois não a conheço, não sei se de facto me vê, se se interessa pela pessoa que mora em frente das janelas do apartamento onde vive. Penso no José Matias e em Elisa, as personagens de Eça de Queirós, e entendo melhor a história das relações que entre eles se criaram e que levaram à decadência de José Matias. A obsessão e o amor serão a mesma coisa? Será o amor apenas uma ideia fixa, uma obsessão? Às vezes é o que penso, que tudo na vida são obsessões, nós dizemos paixões mas não sabemos bem o que estamos a dizer. O sentido das palavras varia muito segundo as diferentes idades do homem e da mulher. Mas só olhando para trás com a lucidez do presente nos apercebemos enfim, com alguma dor ou pena, destes limites da nosso entendimento.

Ela apagou as luzes lá dentro também, onde deve ter outra sala e o quarto. O apartamento voltou a ficar às escuras. Visivelmente não se interessa por mim, tem vida própria bem preenchida e não é, como eu neste momento, uma solitária. Parece que acendeu a luz do quarto, essa janela tem vidro fosco e vejo-a mover-se por detrás dele às vezes. Quando isso acontece ela é como uma sombra ou um anjo, uma figura irreal, só tem contornos. E então a massa vaga do corpo é indefinível. Apetece-me ver se de facto está no quarto, mas não quero que ela pense que estou a espiá-la, que sou um voyeur interessado em observar a vida dos outros com intenções maldosas. Porque maldade é coisa que não existe em mim, nem vicio, considero-me uma pessoa bastante sã e normal.

Seria arrogância da minha parte imaginar que por detrás dos vidros, no escuro do apartamento, talvez encostada à parede e com receio de ser descoberta, ela me observa? Que veria, que vê, se de facto é isso que está a acontecer? Vê um homem a fumar um cigarro e a escrever num caderno, aparentemente sem se interessar por ela nem pela sua vida. Como poderia pressentir, como poderia adivinhar que é sobre a sua pessoa e a sua existência para mim misteriosas que eu estou a escrever, a pensar? Nada sabe de mim nem eu dela. Quando muito tem de mim, se me observa, a mesma ideia superficial, feita de aparências enganadoras e de suposições, que eu tenho dela.

Hoje, no restaurante onde fui almoçar, uma rapariga oriental, jovem, magra, de traços finos e suaves, passou a dado momento perto da minha mesa. Trabalha no restaurante, estava a servir às mesas. Perguntei-lhe se era japonesa e pensei logo na minha vizinha. Mas ela respondeu-me que era da Malásia, o que me deixou envergonhado com a minha ignorância e desenvoltura, com a minha incapacidade de distinguir correctamente a origem das pessoas a partir da sua fisionomia. Devia ser mais cauteloso, as pessoas podem ficar ofendidas mesmo se não o dizem. Decidi desde o início, sem fundamentos sérios, que a minha vizinha é japonesa, mas ela pode ser da Coreia ou de outro país asiático e eu estar enganado.

Preciso de explicar que na minha relação virtual com a minha vizinha japonesa não senti ainda nenhuma curiosidade ou interesse de tipo sexual. Nunca a vi o suficiente para que a minha curiosidade nesta relação virtual pudesse incitar-me a tais devaneios ou despertar-me qualquer desejo ou interesse que fosse nessa direcção. Nunca a imaginei nua e sempre que a vejo de longe ela está tão vestida que o seu corpo continua a ser um mistério para mim. Imaginá-la nua ou imaginar-me na cama a fazer amor com ela nunca me passou pela cabeça. A minha curiosidade é de outro tipo e se gostava de ver de perto o seu rosto, de ouvi-la falar, de olhá-la e de a ver olhar-me, o meu interesse fica-se por aí. É um interesse que se poderia sem mentir caracterizar de puramente intelectual. Não é indiferença, porém. É uma espécie de pudor. Quando olho para uma mulher o que me chama a atenção e me atrai são logo o seu rosto, o seu corpo, as suas maneiras. Mas olhar para uma mulher e pensar nela imediatamente em termos sexuais não faz parte da minha maneira de ser e só muito raramente me acontece. O que me atormenta frequentemente é a própria beleza, a contemplação da beleza. E a beleza tem sempre alguma coisa de inacessível. Não sei se é por ter experiência pessoal da impossibilidade de nos apropriarmos da beleza que a beleza sempre me deixa perplexo e inquieto ao mesmo tempo. Mas eu gosto de imaginar as delícias de uma relação cheia de ternura com uma desconhecida que acaba de me surpreender com a sua beleza. Os olhos e a boca, o rosto, são o que mais me impressiona sempre. E depois ir conhecendo uma mulher pouco a pouco e sem pressas vem acompanhado de um prazer que dificilmente se pode explicar.

6

Cheguei a casa e pus-me aqui na sala ao lado da cozinha a bebericar de um copo de Champagne que enchi de uma garrafa que tenho no frigorífico. É tarde, a noite já caiu. Vejo que a japonesa acendeu uma luz lá dentro no corredor e apareceu brevemente na sala mal iluminada por essa luz longínqua. Tinha o cabelo puxado para o cimo da cabeça, coisa que me espantou e quase me meteu medo. Vi-a depois afastar-se e desaparecer lá dentro, no corredor. Mas a luz continuou acesa. Sinto-me ou devia sentir-me um pouco ridículo por estar aqui, uma vez mais, a perder tempo com utopias e ilusões. Quem me garante que ela merece o esforço e a atenção que estou a dedicar-lhe? Ninguém me pode garantir tal coisa. E provavelmente se a conhecesse não a acharia bonita nem interessante. Digo para mim mesmo, para justificar-me: são as circunstâncias, o meu tédio e a minha solidão que estão a criar em mim esta ilusão de vir a descobrir bruscamente, inesperadamente, que ela é interessante e bonita, além de uma pessoa interessante. Será modelo, será escritora, será professora? A minha curiosidade arrisca-se a ser defraudada. Não é verdade que tenho conhecido algumas desilusões nos últimos tempos? Conhecer pessoas novas já não me satisfaz muito, a maior parte das vezes a desilusão chega depressa. Quando era mais jovem e tinha menos experiência podia deixar-me embalar em sonhos de amor e plenitude com as raparigas desconhecidas que cruzavam o meu caminho. Mas agora, e depois de ter conhecido a amiga distante de que estou separado e a que me referi antes, parece que perdi o interesse que antes tinha por outras mulheres. Não sei se é por sentir uma obrigação moral para com a minha amiga apesar de ela não estar aqui que a minha imaginação sobre outras relações se atenuou e provavelmente hibernou. Mas não excluo que as decepções e algum cansaço com relações que não correspondem ao que prometiam estejam a interferir com o meu estado de espírito e com os meus desejos e inquietações. É cedo para chegar a uma conclusão. Tanto mais que às vezes me sinto amarrado contra-vontade a uma mulher que, embora eu a estime e a ame, me torna de vez em quando a vida difícil com os seus ciúmes e comportamento desabrido. É uma contradição? O amor imaginado e o amor realizado são experiências totalmente diferentes, mesmo se um e o outro sempre se confundem. Aprecio tanto a minha solidão e a minha liberdade. Mas por outro lado não gosto de viver só e acho que quem só e se priva de ter relações com outras pessoas acaba por se empobrecer intelectualmente e por olhar para o mundo à sua volta com olhos inutilmente pessimistas.

Ó rapariga japonesa, onde estás? Vejo a luz acesa no corredor, mas de ti nem traços, nem sombras, nada. Acho que me vou deitar eu também e tentar adormecer para poder levantar-me mais cedo amanhã.

Apesar de estar sozinho e de ter algumas problemas para resolver com a minha amiga sinto-me bastante feliz neste período da minha vida. Gosto das mulheres deste país, de algumas em todo o caso, acho-as um pouco tímidas mas atenciosas, cheias de ternura nas maneiras e um pouco ingénuas. Apetecia-me verificar na prática como é que as coisas se passam, mas ainda não fiz qualquer tentativa nesse sentido. Não sei se é o receio de ser ridículo, se é a minha prudência que me levam a ser tão reservado, tão lento, talvez tão preguiçoso. Mas não gosto de chocar as pessoas que se mostram afáveis comigo e isso explica a minha reserva e as minhas indecisões.

Pensava em ir deitar-me, mas a japonesa apareceu de novo, agora em roupão. Acendeu a luz e sentou-se à mesa da sala ao lado da cozinha onde costuma estudar ou ler e vi-a abrir o computador portátil. Vejo-a de costas, mas a cabeça e o rosto às vezes ficam de perfil. Apago a luz e espreito-a pelos binóculos? Tenho preguiça de o ir buscar.

Estava a escrever, como eu. Tem as unhas pintadas de vermelho. Levantou-se e foi à cozinha buscar um copo de coca-cola ou alguma bebida que se lhe assemelha. Não pude ver bem o rosto dela quando se levantou e caminhou, mas pareceu-me mais velha do que eu imaginava. Posso ainda duvidar, se me apetecer. Quero continuar a acreditar que nada nela contradiz as esperanças míticas que a imaginação do amor romântico deposita numa mulher que não conhecemos ainda.

7

Choveu muito hoje. Por toda a Europa, não apenas aqui. Fui jantar com um amigo que estava de visita para um congresso de medicina e depois vim para casa. Telefonei a uma velha amiga, alguém que no meu coração ocupa um lugar especial, alguém em quem penso quando imagino a minha morte, talvez por saber que ela, pelo menos, terá pena. Falámos uns dez minutos e depois toquei um pouco viola, dedilhei ao acaso e por prazer durante uns vinte minutos, talvez menos.

Entretanto acendeu-se a luz no apartamento em frente do meu, a minha vizinha japonesa chegou a casa enfim. Observei-a pelos binóculos e achei-a bonita, o rosto jovem. Apaguei a luz da sala onde estava e vi que ela olhava claramente para aqui quando se levantou para ir à cozinha. Seria divertido que eu me apaixonasse, no entanto duvido muito que isso possa acontecer. Mas entre nós está talvez a criar-se “uma relação”, isto é, já começámos a reagir em parte um em função do outro. Dito diferentemente: ela vai-se dando conta da minha presença como e me dou conta da presença dela e sem tomar consciência do que passa pode começar a necessitar de mim. E eu dela. Agora está diante do computador, de costas para mim. Podia significar desinteresse, mas é apenas a repetição de um hábito, pelo menos por ora. Que ela olhe para aqui de vez em quando já é alguma coisa. Deus, traz uma nova paixão à minha vida árida, pensei eu por instantes. Mas eu já não acredito no amor como relação de plenitude e auto-suficiência, o amor que nós conhecemos é sempre imperfeito e um mal-entendido. Quando se esclarece que se trata de um mal-entendido surge-se a ruptura. E no entanto como me apetecia fazer qualquer coisa de estapafúrdio, uma coisa original: ir bater-lhe à porta e apresentar-me, por exemplo. Na realidade não me apetece nada fazer isso, mas em piada tê-lo pensado.

Os amores vão e vêm, as raparigas cruzam o nosso caminho e depois desaparecem. Hoje, no restaurante, entendi que tinham despedido a bela italiana que estava a ocupar-se dos sobretudos e dos casacos dos clientes. Em vez dela está lá agora uma francesa. Falei com ela e no fim disse-lhe: se quiseres dou-te o meu telefone e podes telefonar-me. Ela riu-se. Eu acrescentei: tens um namorado ciumento, já percebi. Ela riu-se de novo. Tinha um belo sorriso, um belo corpo. Mas não devemos abusar da classe operária, disse eu ao meu amigo que tinha ido jantar comigo. Ele riu-se e saímos, deixei-o no metro e vim para casa logo a seguir.

O que é o amor? Alguém sabe? Vou morrer sequioso, insatisfeito, cheio de nostalgia das raparigas a quem pude suscitar um sorriso mas que não soube amar nem excitar para o amor. Não é bem isso, aliás, eu não pude a maior parte das vezes foi vencer as barreiras e estabelecer uma relação. Tudo nos separa dos outros, aparentemente, mesmo quando tudo parece aproximar-nos deles. Mas observações deste tipo, esta ciência aparente, parecem-me ridículas e despropositadas, além de não informar verdadeiramente sobre o que acontece.

Também gostaria de ser um grande romancista, como o Eça e o Camilo. Mas não basta querer, é preciso que as circunstâncias favoreçam o florescer da vocação.

Onde está a japonesa, agora? Desapareceu da sala, mas deixou a luz acesa. Menina bonita, volta, deixa-me embeber-me da tua presença misteriosa, deixa-me intrigar-me sobre a tua existência e a tua personalidade. Mas ela não volta, de nada servem as minhas orações.

Hoje, no restaurante,  meu amigo e eu ficámos sentados ao lado de duas raparigas gregas. Bonitas, uma mais arisca, que não parecia ouvir o que lhe dizíamos, a outra sensual e delicada, uma beleza. A maneira que a que eu achei bonita tinha de mexer no cabelo, de lançar o rosto no ar contra o infinito, de falar secretamente, intimamente, ao telefone, deixava entrever uma pessoa verdadeira, cheia de ternura para dar e receber. Além disso parecia, até nos gestos e na maneira de estar, inteligente e nobre. Fiquei seduzido. Momentos fugazes de contacto com a eternidade. Devaneios, no fundo. Tinha um sinalzinho na cara, do lado esquerdo. Eu disse ao meu amigo que jantava comigo: apetece dar-lhe beijinhos sem fim naquela manchazinha acastanhada. Ele riu-se, devia estar a pensar que eu sou meio doido ou doido completo. O ser humano, as mulheres em particular, são às vezes a obra de arte mais indecifrável, mais lisível apesar disso, mais capaz de nos impressionar e suscitar em nós sentimentos importantes. A maior parte dos romances e dos poemas, hoje, em contrapartida, são de uma banalidade e falta de interesse confrangedora.

Ela, a japonesa, desapareceu e não sei onde está. Que aborrecimento!

Ah! Ela voltou enfim, em roupão azul escuro, e de novo olhou para aqui. Não significa nada, certamente, mas gostei de a ver já em roupão, prestes a ir deitar-se. E doeu-me um pouco o coração ao adivinhar que em breve ela apagaria a luz e desapareceria de novo.

Já está, aconteceu tudo o que eu tinha previsto. Agora posso ir ver a sua sombra desenhar-se no vidro fosco da janela do quarto durante alguns minutos, talvez dez ou vinte, mas não sei se deva. Vou fazer qualquer coisa e deitar-me também, estou cansado.

8

Por muito que escreva, terei sempre a sensação de estar a falar descentrado de mim mesmo. Como se fosse um fantasma da minha própria existência, que aliás sinto e assumo perfeitamente na vida corrente, mas que nos momentos de reflexão creio que se torna problemática. Tudo começou há cerca de quatorze anos, noutra cidade onde então vivia com a minha mulher e três filhos. Desmoronou-se o altar do amor, o mundo começou a andar ao contrário, por pouco não enlouqueci ou não morri. Ter sobrevivido a essa dor, porém, tornou-me mais humano, mais louco talvez, mais verdadeiro por certo. Até aí eu vivera com certa incoerência e inocência, apesar de saber, em teoria, tudo o que de mau se pode saber sobre a vida, que é árdua, e sobre os outros, que são egoístas e  por vezes imundos. Fui expulso do paraíso que a minha vida fora até aí para entrar no mundo real. Custou-me muito a admitir que aquilo a que chamamos amor pode ser um enorme mal-entendido. O que é curioso é que ainda hoje acredito no amor e não sinto qualquer contradição entre as duas impressões ou sentimentos a que me refiro.

Provavelmente só sobrevivo ainda porque na minha própria vida tudo me é de certo modo alheio e estranho. Distanciei-me emocionalmente da existência e de mim mesmo. Será isso? Não sei bem. Porque simultaneamente sou eu quem tem os prazeres e ainda algumas dores, não outra pessoa.

Tornei-me incapaz de amar? É provável. Não que eu não tenha amado de vez em quando brevemente e até com intensidade, fé e seriedade. Mas em mim há um vazio permanente porque nunca encontrei uma mulher com quem um entendimento profundo e duradoiro fosse possível. Morremos abandonados ou somos nós que abandonamos os outros? Pressentimos que existe um caminho e a verdade – a verdade, a felicidade ou o que quisermos chamar-lhe – mas perdemo-nos no percurso e a verdade e a felicidade são-nos inacessíveis. A possibilidade de tirar algum contentamento da vida existe, mas os dias escoam-se muitas vezes monotonamente. Esforçamo-nos a trabalhar porque é preciso (à procura de não se sabe que êxitos ou glórias), mas a maior parte do tempo aborrecemo-nos. O tédio, a falta de horizontes, afectam sobretudo quem já não tem cursos a tirar nem filhos a educar, isto é, quem já não precisa de lutar pela vida. Lutar pela vida, portanto, é bom. Mas nem sempre é, nós é que nos esquecemos. O amor, mesmo se é muitas vezes um mal-entendido, por outro lado distrai-nos das dificuldades e do tédio sempre nos ameaçam. Mas quando não há outros problemas a resolver não é o próprio amor que os cria? Não há solução.

O clima nesta cidade é sempre incerto. Ora chove inesperadamente. Ora faz sol. E a chuva e o sol podem alternar durante o mesmo dia várias vezes. Hoje de manhã soprava o vento e quando me levantei vi que tinha estado a chover. Mas o tempo, curiosamente, não me deprime nem as mudanças bruscas entre o sol e a chuva me afectam. Há coisas mais importantes a que prestar atenção. Dar-se bem com os colegas, por exemplo, sentir que se está a colaborar eficazmente na realização de algum projecto sem a interferência de comportamentos ou sentimentos negativos, sem ter que recear baixezas tramadas na sombra, é importante. No lugar onde vivi antes, na empresa onde trabalhei uns vinte anos, as coisas passavam-se de outra maneira. Traições, invejas, ódios mesquinhos, junto à incapacidade de ouvir e ter em conta ponto de vista alheios, acabavam por tornar o lugar de trabalho um lugar onde não apetecia ficar mais tempo do que o necessário. Quem tinha alguma forma de poder exercia-o com arrogância e sem escrúpulos. E ter poder podia simplesmente vir de se ser mulher ou preto, de se ser coxo ou homossexual. Certos grupos sociais transformaram as relações humanas num pequeno inferno de competições sem fim porque o sistema liberal permitiu que se desenvolvesse, à custa de vagas ideias marxistas, uma obsessão com a identidade e uma exigência de estatuto especial de que se aproveitam algumas pessoas. Em nome dos direitos que crêem que lhes são concedidos pelas leis, algumas pessoas comportam~se às vezes como verdadeiros fascínoras. Fascínoras que até podem dar a impressão de tratar os outros com simpatia mas que, quando não são eles mesmos que perseguem a quem invejam, se pretendem a si mesmos vítimas de discriminações. Aqui felizmente não é assim, embora também haja alguns funcionários da empresa que têm tendência para intrigar e para se ocupar demasiado da vida alheia. As vaidades e ambições humanas, onde quer que se revelem, são deprimentes. Eu estou cansado de conflitos inúteis e quero é que me deixem em paz. Nunca fui ambicioso, o sucesso social deixa-me indiferente. Há quem me ache um pouco excêntrico porque as formalidades e os comportamentos convencionais não são o meu género. Mas em breve deixarei de andar de um lado para o outro, não têm de me aturar nem eu a eles.

9

Hoje mal vi a minha amiga japonesa. Vi que ela chegou e acendeu a luz, mas eu estava ocupado noutros pensamentos e não prestei atenção. Agora é tarde, todas as janelas do apartamento dela e dos apartamentos próximos estão sem luz. Só eu, pelos vistos, pareço velar.

Acabei de jantar e tomei um café. Agora saboreio uma excelente aguardente italiana. Apeteceu-me telefonar a alguém que me amasse e dizer-lhe: atingi o meu ideal de vida, mas agora bebo mais do que era meu costume e tenho atenção de continuar.

A morte ideal seria depois de um café, um bom whisky, um bom charuto. Transitar suavemente do ser para o não-ser, meio sonhador ainda, meio embebido ainda em fumos de recordações agradáveis.

Não sei por que razão me assaltam estes pensamentos que podem parecer fúnebres. Serão indício de depressão? Não me preocupo muito com isso. Pensar na morte já não me incomoda nada. Não há tragédia nenhuma, eu nunca acreditei na imortalidade, em nenhuma forma de imortalidade. E até me espanta que haja quem se preocupe e se esfole em esforços absurdos com a intenção e a esperança de deixar um nome para a posteridade. Deve ser por isso também que a opinião que os outros possam ter de mim, desde que não me provoquem, me é em geral bastante indiferente.

Talvez a minha solidão tenha muitas vezes sido, como neste momento, monstruosa. Talvez viver desligado dos outros, evitando entrar em relações profundas com outras pessoas, provoque desânimo e conformismo. O amor de uma mulher, a literatura digna desse nome e a família são os meus valores. Mas o meu alheamento em relação ao sucesso social não me incita a agir. Ser reconhecido e admirado consola, certamente. Não a mim. Eu penso: que tipo de gente é essa que reconhece e que admira? São espíritos superiores, comparáveis a deuses, aos pés de quem eu me ajoelharia, agradecido? A existência de deuses é uma ideia simpática. Mas os espirito superiores não abundam.

Desde que, há alguns anos – e parece que foi ontem – se rompeu o encanto da minha relação de mais de vinte anos com a minha mulher eu nunca mais voltei a ser o mesmo. A corda do relógio partiu-se. Sobrevivi à decepção e aqui estou a braços com a vida. Tanto se me dá. O amor intenso e a compreensão de uma mulher talvez pudessem ainda salvar-me. Mas eu não acredito em milagres, nunca vi nenhum. Sei que estou a ser injusto, a minha mulher era uma pessoa que merecia toda a estima e todo o amor. A culpa de as nossas relações terem terminado foi minha.

Recentemente encontrei numa conferência a que me mandou a minha empresa uma rapariga triste, o olhar dela pareceu-me doloroso e grave, apeteceu-me falar com ela. Mas não tive oportunidade porque entretanto alguns colegas levaram-me para jantar num restaurante. Ficou-me a imagem mítica da menina na memória e pensei nela durante o jantar. Podia escrever-lhe, mas ela ficava surpreendida e não entendia. Disseram-me que a tristeza dela se deve a um grande desgosto de amor e apetecia-me dizer-lhe que antes assim, que não deve lamentar nada, o amor é um mal-entendido e quanto mais depressa se descobre o mal-entendido melhor. Mas mesmo que a volte a encontrar não lhe digo nada. Com que intenção. com que direito, para quê?

Como vou resolver a questão da minha solidão esta noite? Continuo a beber, calmamente, até me embebedar? Continuo a reflectir, a ter saudades não sei bem de quê e a lamentar-me? Não sei. Por ora vou ficar aqui sentado na sala ao lado da cozinha a olhar para a parede.

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Ontem tivemos um almoço “político” na nossa empresa internacional tão prestigiosa. Havia mais de cinquenta convidados, especialistas em estratégias de mercado e gente das telecomunicações, alguns vieram de Berlin, de Paris e de Bruxelas. Presidiu à mesa o Presidente da IAT, que veio de Paris.  Expôs com brilho e convicção um certo número de ideias que tem sobre a importância das novas tecnologias para tornar mais efectiva e mais rentável a promoção publicitária. Via-se o prazer que ele sempre tem em presidir. Gosta de falar e gosta que o oiçam e se por acaso o interrompem fica um pouco embaraçado (chega a imaginar-se que ele pensa: “como ousam interromper-me”?). É bom homem, porém, inspira em geral afecto e simpatia. Conheço-o há anos e tenho sincera estima e amizade por ele, que foi quem me trouxe para aqui. Tem atrás de si uma carreira de êxitos indiscutível, mas não é arrogante, o que aos meus olhos é uma qualidade suplementar. Por detrás da carapaça da sua personalidade polida de homem de negócios com sucesso podem descortinar-se por vezes algumas fendas incompreensíveis, é certo. Por exemplo: não resiste, de vez em quando, a ironizar, citando ou sugerindo maliciosamente nomes de pessoas que detesta ou por quem se percebe que não tem consideração. O pior é que faz essas observações com uma ingenuidade real ou aparente, contando com a cumplicidade e o acordo daqueles que o ouvem. Ora como se pode saber, numa assembleia de cinquenta pessoas, se todas compartilham os nossos pontos de vista, simpatias e antipatias? As pessoas riem-se, calam-se, mas ninguém sabe o que cada um pensa. No que me diz respeito já entendi que de novo tenho de ter uma enorme paciência para suportar a arrogância de dois colegas que, por eu ser novo na empresa (pelo menos nesta filial da IAT) e ser pouco dado a exibicionismos e manifestações convencionais de boas maneiras, podem imaginar que eu sou insignificante ou tímido. O que tem algumas vantagens, inegavelmente: do lugar obscuro do meu silêncio e da minha insignificância posso observá-los melhor, aperceber-me das asneiras que às vezes dizem, vislumbrar as estratégias meio manhosas que estão a cozinhar, ter uma ideia mais correcta da relativa mediocridade de que por vezes dão provas. Não falo, não comento, não digo nada, mas isso não significa que não tenha visto, ouvido e percebido. A comédia da vida social a que nunca conseguimos escapar interessa-me, é um espectáculo que acaba por tornar picantes alguns almoços que de outra maneira seriam apenas monótonos. Aqueles que têm algum poder imaginam muitas vezes que aqueles que têm menos poder do que eles lhes são por vocação ou incapacidade inferiores intelectualmente. Enganam-se. É divertido, no entanto, vê-los embebidos da sua própria importância a tratar os outros como se eles fossem estúpidos. Tomam por poder e prestígio pessoal um poder e um prestígio que lhes advém da posição social que ocupam, o que é um enorme erro, um erro a meu ver de principiante, nascido da vaidade.

O dia está de novo cinzento e chuvoso. Esta tarde devo ir com um colega ao mercado, uma espécie de feira da ladra de que ouvi falar mas que nunca vi. Entretanto tenho a casa em grande desordem, pois chegaram os meus móveis e os meus livros e estou a abrir as caixas, a arrumar tudo. A casa é deprimente nesta desordem, mas eu tenho de ter paciência e fazer um esforço por ir pondo as coisas no lugar. Quantas vezes já mudei de casa e senti esta angústia de mexer nos objectos e ser invadido por recordações incómodas e por perguntas sobre a utilidade do que se possui?

A rapariga japonesa anda de telefone na mão entre a sala e a cozinha. Hoje é sábado, ficou em casa. Que ocupação ou paixão será a sua? Agora veio à janela, ficou lá parada uns segundos, pude observá-la melhor. A distância não permite ver detalhes da fisionomia, mas vi-a melhor, apesar de tudo. Agora mexe no cabelo, vejo os seus braços; e o resto do corpo está escondido por detrás da parede. Seria curioso saber se ela tem consciência da minha presença aqui. A minha janela está aberta, ela pode ver-me tão bem (ou tão mal) como eu a ela. Mas o que se passa na cabeça dos outros é-nos inacessível.

Porque se perde em nós a capacidade de viver? Ou antes, para não ser tão trágico: porque se perde em nós o desejo de fazer coisas, de agir? O prazer que nos poderia dar o que faríamos aborrece-nos de antemão. Não sei se é a certeza da morte que provoca em nós a desvalorização dos prazeres da vida. O amor, com a lucidez da idade adulta, deixa de ser o acontecimento mítico que fora na juventude. O sucesso social ou se obteve ou não se obteve, mas no fundo vai dar no mesmo ou quase. Quase, porque os prazeres do álcool podem ajudar a esquecer a insignificância da realidade enquanto tal e transportar-nos para um universo irreal de sonho e de agradável confusão. É preciso saber beber, ainda assim. E nem sempre se tem prazer em beber, como nem sempre se tem prazer no amor. O vírus das descrença ou do pessimismo instalou-se em nós, não sabemos que nome dar-lhe exactamente, nenhuma ciência o explica ou pode tornar compreensível. Mas falta-nos o entusiasmo, aborrecemo-nos. É então que ao ouvir Tristão e Isolda se admira a cruel lucidez, o cruel talento de Wagner. E somos capazes ainda de emoções que nos transportam até à melancolia e nos deixam entrever, no deserto em que a existência se transformou para nós, o deleite amargo que pode sentir-se na dor de viver.

Pensei isto tudo a correr, depois despi-me, fui tomar um duche. Ia jantar com uns amigos. Na casa da japonesa vi luz no corredor, ela deve ter saído e voltou para jantar ou para se vestir e sair a jantar. Mas que me importava?

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A japonesa, muito provavelmente, trabalha num Banco, na Wall Street local. Tenho ouvido algumas histórias de economistas que ganham milhões a trabalhar para os Bancos, mas é um universo que me é estranho. Ganhar muito dinheiro nunca foi uma das minhas preocupações dominantes.  Talvez até tenha sido mais descuidado e menos ambicioso do que devia. Suspeito que deve haver um prazer erótico em ganhar muito dinheiro, mas se há eu desconheço-o. O meu prazer erótico com o dinheiro, se existe, está em gastá-lo. Ter uma relação amorosa com uma mulher jovem e bonita capaz de ganhar milhões na bolsa, no entanto, é capaz de ser uma experiência excitante. Não pelo dinheiro em si forçosamente, mas por outras razões. Gostava de entender como funciona o cérebro de uma pessoa capaz de lidar com cifrões da mesma maneira que eu sou capaz de lidar com as palavras. Licenciado em Letras, acabei na publicidade, que é um género literário degradado. Mantém-se o interesse no estilo e na estética, mas os jogos de palavras da poesia dos livros, se podem ser estúpidos ou ineficazes, pelo menos não se transformam em grandes lucros económicos. Na publicidade, pelo contrário, as palavras e as imagens que se usam estão sempre a jogar com os mitos sociais das pessoas, o que de certo modo é aproveitar-se das suas fraquezas e ignorância para se enriquecer à custa delas. A criatividade existe, mas neste caso não é desinteressada nem honesta.

Em vez de ter uma relação amorosa com uma jovem milionária eu preferia ter uma grande paixão por uma bailarina. Ia vê-la dançar à ópera todas as noites para a admirar e descobrir novas razões para a amar. Apaixonava-me pelas personagens que ela representava e começava a sonhar. O corpo humano é uma obra de arte, um rosto é uma obra de arte, o movimento gracioso das pernas e dos braços tem o poder de criar novas sensações e emoções. Esculturas em movimento, uma sucessão de esculturas comoventes na mesma noite e no espaço reduzido de um palco. A minha vida seria habitada por um maravilhamento constante, sempre renovado, se eu amasse uma bailarina e ela me amasse.

Estas idealizações provavelmente são ridículas, mas se me seduzem, o que é que eu posso fazer para as contrariar? Deve ser por eu ser dado a idealizações ridículas ou ingénuas que ter uma relação com uma violinista também tem alimentado algumas das minhas fantasias. As raparigas, as mulheres, têm sobre mim um poder extraordinário. Sempre as vi como seres misteriosos, secretos, a conhecer e a desvendar. Infelizmente nem sempre se confirma a existência do mistério e os segredos que acabamos por conhecer ou adivinhar estão longe de ter a dimensão poética ou o interesse que supúnhamos. Estou convencido, no entanto, de que a mediocridade de muitas relações que pareciam promissoras se deve mais à educação e à pressão social, que impede as pessoas de se abrirem e de assumirem a sua personalidade profunda e verdadeira, do que à inexistência das qualidades que nós, na imaginação, mesmo se poetizando um pouco, lhes atribuímos.

Volto à vida real, à minha solidão. Na qual me sinto feliz, se se pode dizer. Talvez eu viva em estado de depressão suave, talvez eu seja uma pessoa dada a melancolias. O convívio excessivo com as pessoas faz-me sentir alienado, descentrado de mim mesmo. Fico incomodado, às vezes fico mesmo revoltado quando passo muito tempo com outras pessoas, sinto-me poluído. Há qualquer coisa de promíscuo nas relações humanas e deve ser por isso que ao mesmo tempo que nos sentimos atraídos pelas pessoas a dado momento já não as podemos suportar, sobretudo se com a proximidade física e com as palavras começa a instalar-se uma espécie de intimidade confusa ou uma cumplicidade que é fruto das circunstâncias mas que na realidade nós não desejamos. A intimidade é ou acaba sempre por ser desagradável. Não devia portanto queixar-me da minha solidão, pois a julgar pelo que acabo de dizer ela é resultado de uma escolha.

Viver sozinho durante muito tempo acaba por tornar-nos demasiado egoístas. Fechamo-nos no nosso mundo, reforçamos as nossas convicções, os nossos horizontes e expectativas atrofiam-se. E depois o que é que acontece? Acontece que quando temos de estar com as pessoas as conversas delas parecem-nos desinteressantes a maior parte das vezes e aborrecemo-nos. Não achamos piada às anedotas que elas contam, achamo-las ridículas quando começam a falar do que sentem ou sentiram e dos episódios insignificantes em que estiveram envolvidas mas que contam como se tivessem alguma importância.

Não sei quanto tempo vou ficar sozinho. A minha amiga por enquanto não pode vir ter comigo, está em casa dos pais a ocupar-se da avó, que partiu o fémur. Os pais trabalham e ela, que dá explicações de matemática a alunos privados, fica em casa e ocupa-se da velhinha, que tem uns oitenta e cinco anos.

Acho que vou ver um filme na televisão e depois vou-me deitar. Na casa da japonesa não vejo luz, ainda não chegou. Nunca vi nenhum homem em casa dela, de modo que não sei se tem namorado. Mas também nunca lá vi mulheres, por isso não posso tirar nenhuma conclusão. Talvez ela seja uma solitária como eu, quem sabe?

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A japonesa está sentada à mesa do costume na sala ao lado da cozinha. Provavelmente está a fazer cálculos, a esboçar estratégias, a aperfeiçoar análises e métodos de investimento na Bolsa. Não sei porquê comecei a pensar que ela trabalha para um Banco. Por isso passa tanto tempo diante do computador mesmo quando está em casa. Para ver o que se está a passar nos mercados da Bolsa e poder tomar decisões? Não sei, não tenho a mínima ideia, posso simplesmente estar a inventar histórias e a querer criar-lhe uma biografia. Será que algum dia a vou conhecer de facto tal como ela é e a saber alguma coisa da vida dela? Poderia então confrontar os resultados da minha imaginação com a realidade. A realidade acaba sempre por nos surpreender porque é em geral diferente daquilo que nós imaginamos.

Não tenho lido muito nos últimos anos. Nem ido ao cinema. Mas agora, de novo, tendo mudado de ambiente, parece que me voltou a vontade de ler, o interesse por ficções. A maior parte dos romances e poemas que hoje se publicam parecem-me de pouco interesse ou de interesse limitado. Sem experiência digna desse nome não se pode escrever nada que diga respeito seja a quem for e a maior parte das pessoas quando não está a trabalhar ou a fazer que trabalha passa o tempo em casa metida num quarto a ver televisão. As experiências da vida que se podem acumular fechado num quarto ou mesmo indo aos cafés do bairro são reduzidas, pouco susceptíveis de despertar a curiosidade e frequentemente já adaptadas aos gostos literários vigentes, já em segunda ou terceira mão.  Há uma grave crise da literatura, na minha opinião. Há gente de mais a escrever por todo lado porque o nível da educação subiu, mas não basta saber escrever nem ter estilo para ser escritor. Por isso os clássicos, antigos como modernos, são o único alimento respeitável que ainda existe para pessoas como eu, que querem escapar à monotonia da vida contemporânea e embrenhar-se em intrigas com paixões violentas e complicadas em que o ser, a alma, o sentido da vida são interrogados em profundidade e postos em questão. Com Dostoyevsky, Knut Hamsun, Tolstoy e outros russos, além de alguns franceses e alemães, de Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco, por exemplo, nunca saímos defraudados.

Encontram-se, felizmente, de vez em quando, algumas excepções. Por isso é melhor ter cautela com as generalizações, que nunca têm correspondência perfeita na realidade. Há dias comprei um romance escrito por um dinamarquês com um belo titulo de que não me lembro mas que evoca o Outono. O início do livro pareceu-me familiar. Falo da realidade descrita pelo livro. Entendi logo porquê: a acção tem lugar em Lisboa, perto do Tejo, nos barcos de Cacilhas que eu tantas vezes apanhei para ir dar aulas do outro lado da cidade. Eu era jovem então, mas parece que foi ontem. Parei de ler o romance do dinamarquês e fiquei a recordar-me do meu próprio passado. Os livros, às vezes, tê o poder de nos remeter para a nossa própria experiência de maneira mais segura. Nem sequer me recordava agora muito bem desse tempo em que eu era um jovem professor acabado de sair da universidade. Mas tinham bastado algumas frases do romance para que esse período distante da minha vida me voltasse à memória imediatamente e com pormenores que eu julgava esquecidos. E tive saudades de Lisboa, cidade branca e rosa que vista  do barco ou da ponte adquire contornos míticos, de sonho. Um dia hei-de morrer e a cidade magnifica continuará a seduzir e a encantar, a inspirar aos amantes mais amor, aos escritores mais vontade de escrever. E daqui a algumas gerações ninguém se lembrará de nós porque nem sabem que existimos, apesar de nós termos vivido nos lugares onde ele vivem e de nas suas ruas e praças termos sido umas vezes felizes e outras infelizes. A cidade, a pedra e as cores, o céu e a água, são-nos superiores, pois duram mais do que nós e sobrevivem-nos. Nós chegamos, vemos um pouco o que se passa à nossa volta, espantamo-nos, admiramos, amamos e deixamos de ser amados, temos filhos, depois desaparecemos anonimamente na morte inevitável, no nada absoluto. Dói-me pensar tudo isto, mas como recusar-se às evidências que a lucidez, com pouca pena dos nossos sentimentos, nos inflinge?

Imaginar a morte da japonesinha que continua a trabalhar sentada à mesa. Veio-me esta ideia. Não sei de que cidade ou país exactamente é que ela veio nem o que está a fazer aqui, acerca dela não sei mesmo nada. Não conheço o seu rosto, sempre visto de longe e brevemente, senão vagamente. Posso imaginar o seu corpo frio e rígido, o seu envelhecimento, a sua morte, no entanto. Decido não prosseguir, paro de imaginar. Começar a imaginar a morte de outras pessoas não é saudável nem aconselhável. Vive, ó rapariga de Tóquio ou de Kyoto ou de não sei onde, vive e sê feliz.

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cozinha, a dado momento, elas abriram a porta da varanda, devia estar calor lá dentro. A visita, sorridente, japonesa também ao que me pareceu, estava de avental e sorria muito. Ela, a minha japonesa, ia e vinha, os jeans sempre a cruzar diante da fresta de vidro deixada aberta à visão pela persiana. Curioso, pensei eu, sou obrigado a concentrar-me agora apenas numa parte do corpo dela, nas mãos e na nuca, na cintura, no rabo. Tem um corpo bem feito, pelo menos parece. Agora as meninas ou senhoras jantam e nem imaginam que aqui sentado eu me preocupo, invadido pela curiosidade, com a existência delas. E no entanto esta visita irritou-me um pouco. Cheguei a pensar de novo se ela não é lésbica, nunca lá vi um homem em casa, só raparigas sempre. Mas não costumo tirar conclusões apressadas deste tipo sobre as pessoas, nem por sombras me passam tais ideias pela cabeça.

Veio-me ao espírito também, a noite passada, a recordação de uma rapariga que uma vez amei e a quem nem sequer dei senão um beijo na cara, um único. Encontrei-me com ela durante três ou quatro horas em Carcavelos e conversámos, fomos tomar chá a Sintra, foi um momento privilegiado e que depois havia de adquirir um valor mítico. Quando penso nela ou oiço a música de que falámos algumas vezes (um disco dos MadreDeus saído nessa ocasião) ainda me comovo. É a história mais estranha da minha existência, foi uma paixão por telefone e emails, quase só com conversas na Internet. Mas nunca mais me pude esquecer e sei que hei-de pensar nela enquanto for vivo. Ela deve ter casado entretanto, é capaz de já ter um filho ou dois, uma vez por ano ainda lhe envio uma mensagem por email a perguntar se está tudo a correr bem. Mas ela nunca me responde e eu acho melhor assim. Perturbar a vida dela não teria sentido, eu aliás nunca o faria mesmo que pudesse. Não sabe que eu hei-de amá-la sempre, que o que ela me deu foi tão puro que não se pode esquecer, mas também não precisa de saber.

Dói-me a alma ou qualquer coisa em mim que é no corpo e no entanto é espírito.  Não haverá nunca na minha vida paz nem felicidade, apenas interrogações e dúvidas, momentos de paixão impulsiva e excessiva e de desespero ou indiferença alternadamente? Não sei. Acho que estou a exagerar no pessimismo. De qualquer modo a paixão de viver é talvez assim que se manifesta mais claramente, é uma paixão vaga, sem objecto determinado para além da vida propriamente dita.

Continuo a viver no meio de caixas e de livros espalhados pelo chão. Preciso de ajuda para pôr algumas coisas na cave. A minha nova vida tem alguma monotonia e é sem entusiasmo excessivo que ponho em andamento os projectos profissionais. A publicidade, no fundo, não me interessa a sério, é apenas um trabalho onde as minhas capacidades se podem exercer com algum proveito económico e uma vaga satisfação intelectual. Sinto-me bem, mas às vezes um pouco cansado, mudar de país obriga a rever e refazer os hábitos à medida do novo lugar e das novas circunstâncias. Mas não me apetece olhar para trás nem pensar no passado, só o presente e o futuro me interessam.

A japonesa e a amiga fumam, sentadas em frente uma da outra, e de repente pensei, sem razão, na cidade universitária de Berkeley nos Estados Unidos, tive saudades de San Francisco e da minha vida na Califórnia. Pode ter-se saudades dos lugares onde nunca estivemos, de pessoas que nunca conhecemos ou conhecemos mal? Provavelmente é um sonho e eu nunca fui à Califórnia, as minhas recordações vêm dos filmes que devo ter visto e eu confundo os tempos e os espaços, não distingo o que aconteceu do que nunca aconteceu, devo ser personagem de um sonho alheio. E talvez o faça de propósito e consciente disso, a confusão no meu espírito é em si mesma uma curiosa fonte de prazer.

O sentimento ou a consciência da morte mais ou menos próxima vive agora comigo em permanência. Não me torna pessimista nem me impede de viver a vida quotidianamente, mas sinto-me como um condenado à pena capital a quem foram ainda concedidas algumas semanas, alguns meses ou anos talvez, mas que não anularão nunca a inevitabilidade da sentença. E dói-me cá dentro, absurdamente, em qualquer parte de mim, esta certeza da minha, da nossa insignificância. Como as nuvens, passamos. E de nós não ficará nada, esvaímo-nos totalmente. O milagre deve ser nós vivermos esquecidos da nossa condição efémera e continuarmos a perder tempo e a lutar pelas coisas humanas como se fôssemos eternos.

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Deitei-me  mais cedo e adormeci. Mas um pouco antes da meia-noite acordei e em casa da japonesa havia luz na sala. Fui à cozinha beber um copo de água e vi que as duas amigas continuavam a conversar, sentadas uma frente da outra, como acontecera antes de eu me ir deitar. Que longa conversa, pensei. À garrafa de vinho agora vazia em cima da mesa viera juntar-se uma outra, mas tanto quanto me era possível descortiná-lo estava quase cheia ainda. Pouco tempo depois a amiga da japonesa levantou-se, houve uma pequena arrumação de copos na cozinha. A seguir a visitante vestiu o casaco ali mesmo e começou a dirigir-se para a porta. Mas não saiu logo, pois eu podia ver as mãos da dona da casa mexer-se. Depois, através de outra janela, vi a minha vizinha de perfil, estava de jeans e camisola preta, com os cabelos longos, negros como a camisola de lã, a cair nos ombros. Fiquei sentado na sala a beber o copo de água e distraí-me da janela em frente, deixei de olhar e pus-me a folhear distraidamente um jornal que estava em cima da mesa. Pouco depois os meus olhos voltaram à obsessão que os vicia e vi a minha vizinha japonesa já em camisa de dormir branca sentada à mesa a fumar um cigarro. Ao lado dela, em cima da mesa, vi um urso de peluche. Ela a dado momento debruçou-se para ele e acariciou-o, falou-lhe. Senti nesse gesto uma tristeza qualquer, talvez a de uma solidão igual à minha, mas não sabia e ela estava de costas, era impossível descobrir no seu rosto qualquer sentimento. Depois desapareceu na cozinha e ficou lá muito tempo, possivelmente a lavar a loiça do jantar e a arrumar. Teria sido um belo jantar? E de que falaram? Eu estava cheio de curiosidade, mas não podia saber, pelo menos por ora. Talvez um dia, se eu acabasse por conhecê-la, lhe perguntasse em que consistira exactamente aquele jantar, quem era a amiga, que tipo de relação é que ela mantinha com ela, coisas assim.

Queria dormir, mas não conseguia. Sentia-me pesado, como se a digestão não estivesse a fazer-se ao ritmo normal. É verdade que não tinha muita fome quando jantara, mas também não tinha comido de mais, longe disso. Tive de novo algumas saudades da vida organizada que tinha tido no país onde vivera antes e recordei-me, nesta terra de brumas, das praias que deixara. E sobretudo lamentava um pouco as horas livres que então tinha, isto é, o facto de trabalhar em casa a maior parte do tempo se me apetecia. Agora ia todos os dias de manhã para o emprego e só voltava a casa ao fim da tarde, por vezes à noite. Era muito diferente. Mas não pensava em pôr em causa a decisão que tinha tomado de me vir embora. Por outro lado eu tinha deixado a Europa há muitos anos para fugir a uma depressão que sem motivo evidente se tinha abatido sobre mim. Digo “sem motivo evidente” porque não quero  começar a analisar de novo as razões dessa doença que por pouco ia destruindo a minha vida. Há razões ocultas para tudo e pode sempre encontrar-se uma explicação, mas prefiro não recordar o que aconteceu na minha vida durante os meses difíceis que então vivi e que acabaram por modificar a minha opinião e atitude em relação a muitos aspectos da minha existência e da vida em geral. Sobrevivi, apesar das ameaças que tinham pairado sobre a minha cabeça. Não só sobrevivi como até comecei uma nova vida com compensações morais e prazeres que antes de ter atravessado o deserto tormentoso da depressão não conhecera. Todos os males, não é novidade nenhuma, têm um lado positivo, trazem alguma coisa de novo àquele que os sofre. O sofrimento contraria as nossas convicções, ameaça a nossa visão do mundo. Aquilo em que acreditamos começa a vacilar. Mas basta não se recusar a aceitar, basta não renunciar ao futuro e manter viva a consciência da morte, que afinal reduz tudo o que acontece a proporções razoáveis e aceitáveis. Aprender todos os dias a amar a vida não é difícil se com um pouco de bom-senso sabemos desdramatizar a importância do que nos acontece. Pelo menos foi o que eu aprendi.

A japonesa lá está de novo em frente do computador, provavelmente a ver os últimos movimentos da Bolsa, as evoluções dos mercados internacionais, toda essa cangalhada. Vejo-a agora de perfil, muito atenta, debruçada sobre o écran do laptop. E volta o ar sério, concentrado, adulto, que provavelmente tinha ficado entre parênteses durante todo o serão de convívio com a amiga. Com a camisa branca, o rosto apoiado na mão, os cabelos descendo sobre os ombros, tem, vista assim de longe, a beleza e uma estátua. Quanto a saber o que ela esperava do jantar desta noite, de que falaram, o que ela sente neste momento, inútil imaginá-lo sequer. Melhor é eu voltar à minha própria vida, a esta instabilidade permanente na aparente estabilidade, à incerteza, ao tédio e às preocupações banais e sérias com os projectos profissionais e com o meu próprio futuro. Se pelo menos eu me deitasse e adormecesse com o espírito em paz em vez de estar aqui sentado a fumar cigarros a seguir uns aos outros imbecilmente sem ter grande prazer nisso.

Àquela menina  que eu tinha amado, uma vez escrevi, num diálogo de computador: “you are my baby”. E ela respondeu: “I wish I were”. Lembrei-me disso sem razão, por vezes é difícil de explicar as ideias que sem lógica nenhuma bruscamente nos assaltam. A minha cabeça, o meu espírito, assemelham-se já a um terreno muitas vezes lavrado e semeado, em estações sucessivas. Nem me lembro já de quem foi a rapariga com quem tive esse diálogo.

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Os dias vão e vêm e com eles aumenta a nossa compreensão e incompreensão do universo à nossa volta. Repetição do conhecido, mas sempre demora um pouco entender que para compreender o presente bastava ir ao reservatório da experiência acumulada buscar ciência e conhecimentos que lá se foram armazenando. Cada ser humano vive encerrado nos limites estreitos das suas paixões, manias, hábitos adquiridos ao longo dos anos na luta quotidiana pela sobrevivência ou por encontrar ao que acontece algum sentido. Desvendar a vaidade, as ilusões alheias, é sempre mais fácil, aparentemente, do que decifrarmos o nosso próprio comportamento e entendermos o nosso próprio destino. Que fatalidade é que há na nossa tão irresponsável ignorância de nós mesmos?

Deixei de ver a rapariga japonesa com tanta frequência porque arrumei a sala de estar, no outro lado do apartamento, e passo agora mais tempo lá, sentado a ver programas medíocres na televisão ou a ouvir de novo os meus discos. Esta sala não tem janelas para os lados da casa, dá apenas para um enorme pátio onde alguns plátanos me recordam paisagens antigas. Vejo a japonesa ainda às vezes, quando estou a tomar café ou a jantar, sempre debruçada sobre o computador. Perdi o interesse, porém, pela sua existência que parece tão solitária e desinteressante como a minha. Serviu-me para iludir a passagem do tempo durante algumas semanas, quando tinha a casa em desordem, e agora começo a recuperar a minha rotina, não necessito da rapariga japonesa nem de imaginar histórias a seu respeito.

A minha vida é monótona e às vezes aborreço-me bastante. Talvez as coisas mudem quando tiver acabado de arrumar a casa, quando tiver posto os livros e os CDs nas estantes. Já me sinto um pouco mais confortável, no entanto, só por não ter as caixas a atravancarme o  caminho quando vou de um quarto para a sala, para o outro quarto ou à casa de banho. Apropriar-se de uma casa, sentir-se confortável no seu espaço, é capaz de não ser muito diferente de conhecer uma pessoa e ir-se familiarizando com ela. Toda a paz é provisória, eu sei, todos os lugares são apenas lugares de passagem. Mas farei o possível por me esquecer disso e por não me inquietar excessivamente com as incertezas do futuro.

Às vezes, por cansaço, apetece-me abandonar tudo e renunciar definitivamente a viver em sociedade. Mas para onde iria e como passaria os dias? Quem já não está integrado no sistema social da produção provavelmente perde ainda mais a noção de ter um destino. Depois de ter abandonado um emprego não se pode retomá-lo, deixar de trabalhar é uma pequena morte que antecipa e anuncia o fim definitivo de tudo. Aposentar-se é excluir-se de uma rede de relações que mesmo se eram imperfeitas – e até odiosas em certos casos – permitiam pelo menos sentir-se inserido na sociedade e acreditar, sem se pôr muitos problemas, nos costumes, ideias e valores dessa sociedade. É cedo para mim pensar nisso, mas começo a antever o que vai acontecer e os meus pressentimentos não me deixam tranquilo. A ilusão de que se pode recomeçar tudo de novo eternamente é apenas isso: uma ilusão. Não temos consciência suficiente de que o sentido dos nossos gestos mais insignificantes pode desaparecer quando deixamos de fazer parte de um grupo social activo, de uma profissão. Ora todos os grupos sociais estão organizado para que, tal como num romance, tudo o que nos acontece e o que fazemos tenha algum sentido. Aquele que se separou do grupo separou-se de uma visão do mundo e arrisca-se a ficar perdido e à solta no caos universal. A liberdade absoluta não é liberdade, é uma ilusão. Quem já não tem filhos a educar, quem já não está a construir uma casa ou uma carreira, quem não tem obrigações nem projectos fica tão isolado na vida como o vagabundo que deambula em delírio e sem rumo seguro nas ruas da cidade.

São seis e meia da manhã. Acordei e oiço os ruídos do dia que vai começar na casa e na cidade ainda silenciosa. Uma voz, há pouco. Portas que batem. Coisas assim, insignificantes, mas que provam que a vida continua, que connosco ou sem nós todos os dias a vida há-de seguir no seu ritmo, fiel aos seus vícios, escrava das suas necessidades.

Epílogo

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Desinteressei-me da rapariga japonesa já há bastante tempo e consequentemente deixei de escrever o diário ou relatório da minha relação com ela. Não sei bem o que aconteceu, mas meteram-se pelo meio as férias do Natal e ela deve ter ido passar as férias no Japão com a família. Desapareceu da minha vida, a culpa não é minha. Durante a semanas da sua ausência o apartamento dela permaneceu sem luz, desabitado. Na véspera de partir ainda a vi com uma rapariga mais jovem, mais bonita, mais graciosa, japonesa também ao que parece e que mesmo da minha janela, sem esforço, podia ver sorrir. Uma noite, já antes, eu tinha examinado com os binóculos uma outra visita da japonesa e tinha admirado a sua beleza. Devo acrescentar que sou, sempre fui, particularmente sensível à beleza de um rosto. Mas provavelmente já me tinha referido a este episódio, a esta visita, não me recordo e falta-me  paciência para ir verificar. Que importa? Em todo o caso, é verdade, nunca vi nenhum homem naquela casa, só mulheres. E todas aparentemente japonesas, com excepção de uma rapariga que nos sábados, algumas vezes, parecia estar a dar-lhe provavelmente alguma lição de inglês.

A japonesa foi e veio, eu tive a visita de uns amigos de longo data, um casal de Lisboa. A minha vida ficou menos monótona e os meus interesses, à medida que me fui adaptando a viver neste novo lugar,  parece que também mudaram. Uma noite, porém, antes de a japonesa  ter ido de férias, recordo-me de que estava no meu quarto e a vi despir-se diante da janela de vidro fosco do quarto. Cheguei a interrogar-me sobre se ao agir assim tinha havido alguma intenção da sua parte. Queria provocar-me ou estava distraída? Desapertou o soutien, eu via com bastante nitidez as linhas, os contornos do seu corpo nu. E vi também, tanto quanto o permitia o vidro fosco da janela, a massa mais volumosa dos seus seios sobressair do busto. Fiquei surpreendido, vagamente divertido e interessado, mas para ser sincero nem já me recordo do fim do episódio.

Ela foi e veio e eu esqueci-a, é tudo o que agora sei. Também aconteceu que eu comecei a baixar a persiana à noite para proteger da eventual curiosidade dos vizinhos a minha vida privada (vida privada sem mistério nem nada a esconder, mas não gosto que me observem sem eu saber). O prédio em frente do meu (na realidade ao lado do meu) tem seis andares e a japonesa e eu vivemos no terceiro. Nunca me preocupei com os vizinhos do quarto, quinto e sexto andar, mas eles podiam estar a observar-me a mim como eu observava a minha vizinha japonesa e eu não me dei conta. Pouco tempo depois ela, a japonesa, começou também a baixar a persiana da janela da sala ao lado da cozinha, que era onde eu podia vê-la sem fazer qualquer esforço nem ter qualquer intenção declarada de a observar. Antigamente ela só baixara as persianas quando tinha amigas para jantar, acontecera uma ou duas vezes. Achei curioso que bruscamente ela e eu tivéssemos começado ao mesmo tempo a ser tão “reservados”. E não pude deixar de perguntar-me: será que ela sabia que estava a ser vista e não se importava? Queria, nesse tempo, ser vista? Ter-se-á interessado por mim, pela minha existência, pela minha pessoa durante essas semanas? Não podia responder à pergunta e o que é mais importante é que não me preocupei nada em responder-lhe. Prova do meu definitivo desinteresse por ela, que no entanto tinha excitado a minha curiosidade, nutrido a minha imaginação e ocupado um lugar na minha vida durante algum tempo, quando eu, acabado de chegar aqui, me aborrecia mais do que agora.

Não tenho talvez já o entusiasmo dos anos da juventude. O desaparecimento do meu interesse ou curiosidade, sem grande perturbação ou inquietação, pela japonesa, pode ser um indício suplementar (e desnecessário) do meu envelhecimento físico e espiritual. Onde está o ímpeto da adolescência que se prolongou por tantos anos? Onde a paixão? Onde a capacidade de obsessão? Onde a capacidade de sonhar? O meu interesse por uma mulher foi sobretudo, sempre, de natureza meio espiritual. A presença física certamente era importante no despertar da atracção e da atenção. Mas talvez devido à educação religiosa que recebi no colégio dos jesuítas as minhas relações com as raparigas ou as mulheres sempre foram dominadas por um pudor espontâneo e natural, por uma espécie de respeito de natureza quase religiosa pelo seu corpo. Os anos que passei em países protestantes e puritanos, onde sob a aparente evolução dos costumes as relações entre homens e mulheres continuam a ser vigiadas e são facilmente criminalizadas, também pode ter reforçado a minha tendência para certo puritanismo e para romantizar as relações. Muitas vezes senti que na minha imaginação do amor as relações físicas não tinham qualquer sentido nem grande interesse se não fossem inspiradas primeiro por um amor de natureza platónica, pelo amor como sentimento espiritual. Se os corpos entrassem em relação sem a cumplicidade dos espíritos era convicção minha, bem entranhada, que qualquer coisa estava errada. Mesmo se o envelhecimento e a consciência da proximidade da morte podem explicar a minha diminuta capacidade de paixão neste momento, o meu pudor, já manifesto nas minhas relações do passado com mulheres, continua a desempenhar um papel significativo e difícil de explicar no que parece ser a minha indiferença ou falta de entusiasmo por uma relação nova.

O tempo, entretanto, foi piorando, Tornaram-se mais frequentes os dias de chuva e a própria chuva, quando cai, cai agora com uma violência maior. Os dias de sol, limpos, continuam ainda, inesperadamente, a surgir na monótona rotina dos dias cinzentos e húmidos, baços e tristes. Mas é sol de pouca duração esse e hoje mesmo, tendo amanhecido luminoso, o dia acabou por se transformar mais tarde num aguaceiro infernal. E de novo, agora, a chuva parou. A noite está silenciosa e só o frigorífico, na cozinha, faz algum ruído, ronrona. Vou deitar-me, creio. E continuarei em breve ou terminarei, quando puder, esta narrativa dos dias de Inverno na cidade desconhecida.

 

JOÃO CAMILO
A Minha Vizinha Japonesa
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