À margem, de certa maneira

 

ALFREDO SOARES-FERREIRA


Alfredo Soares-Ferreira. Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.


A primeira vez foi em 2016. A 8 de Novembro o mundo acordaria sabendo que Trump iria ser presidente dos EUA. Pelo caminho ficaria a dúvida, para alguns legítima, se teria ganho mesmo as eleições. Desta vez parece não haver indecisão, tal é a margem que nos é dada a conhecer. A vitória é acompanhada por maiorias significativas, no Senado e na Câmara dos Representantes. Não há notícia, para além de brevíssimas referências, da campanha e dos resultados de Jill Stein, Chase Oliver e Robert Kennedy Jr., a não ser que não teriam ultrapassado 0,4% de votantes.

Dizer que aquele País é assim, poderá constituir um lugar-comum. Outro será porventura aquela asserção que nos diz que é a maior democracia do mundo, assim entendida e interpretada, desde sempre, pelo designado Ocidente, ou mundo ocidental, desde os primórdios da nação americana. Na verdade, o que vemos, hoje como sempre, é um país agressor e violento.

Recuando aos finais do século XX, mais propriamente a 1993, encontramos alguma informação substantiva para compreender a estratégia norte-americana de dominação. Uma figura muito conhecida à época, responsável pela Segurança Nacional da administração Clinton, o economista Anthony Lake, terá cunhado a tese “Envolvimento e Expansão”, que enfatizava a “cooperação” para enfrentar os desafios do pós-Guerra Fria. Na prática, a tradução desta ideia significaria amplificar a hegemonia, através de acções concertadas para, nas palavras do próprio, “consolidar a vitória da democracia e dos mercados abertos”, uma esclarecida e enfática interpretação das teses neoliberais. A perversão dos ideais democráticos da Revolução Francesa e da Comuna de Paris, consubstanciada nas sucessivas e declaradas intervenções norte-americanas por todo o mundo foram sempre em nome da “liberdade” e da “democracia” e apresentadas por Lake como “verdade irrefutável”. Ainda segundo este cidadão, político e dirigente do Partido Democrata, essa “verdade” da defesa daqueles valores deve ser entendida como uma fase, numa história de dedicação a uma “sociedade tolerante, na qual os líderes e os governos existem, não para usar ou abusar das pessoas, mas para lhes proporcionar liberdades e oportunidades”.

 

“Poderíamos, ou mesmo, deveríamos (outra vez a tolerância),
por exemplo, exigir as actas destas eleições”

E, por falar em tolerância, acrescento uma outra visão, com a qual me identifico. Aquela que sustenta a forma como temos sido tolerantes para com os EUA, ao longo destes tempos e particularmente desde a queda da União Soviética. A aceitação em relação ao que as sucessivas administrações norte-americanas dizem e fazem, a absorção de conceitos e práticas sociais, que vão desde a alimentação, a aculturação a eventos característicos, o consumo desenfreado de séries e filmes estupidificantes que constituem o lixo televisivo, “aproximaram” a civilização norte-americana ao chamado “modo de vida” ocidental, como a imagem que melhor se adequa ao momento e à oportunidade e que nada tem a ver com outros continentes onde essa penetração não foi, felizmente, conseguida. Por isso mesmo se aceita, por exemplo, com toda a normalidade e sem questionar, o discurso da necessidade de cercar e atacar a Rússia de todas as formas e da defesa do regime ucraniano com um exemplo do Ocidente e do tal “modo de vida”, nem que para tal seja necessário matar a todo o custo, gastar e desperdiçar milhares de milhões em armamento e munições e reduzir populações à miséria com sansões e restrições de toda a ordem. E se “aceite”, como normal, o discurso do “direito a Israel se defender”, nem que isso signifique a maior investida de que há memória no extermínio do povo da Palestina, caucionando um regime de terror e fora da lei.

Assim se compreende que uma maioria de cidadãos se mantenha, de certa maneira, à margem, quando a questão se coloca numa eventual preferência na vitória de um ou de outro candidato à presidência dos EUA. E que uma posição de relativa indiferença continue após saber quem ganhou e quem perdeu. Mesmo assim poderíamos, ou mesmo, deveríamos (outra vez a tolerância), por exemplo, exigir as actas destas eleições, à semelhança do que se exige sempre aos países que, de uma forma ou outra, são considerados como “sistematicamente culpados” de não cumprirem os ditames internacionais da liberdade e da democracia, ditados pelos EUA e pelos seus ditos “aliados”. Conhecendo a tese MAGA (Make America Great Again) e o seu defensor e conhecendo as teses ambíguas de Kamala sobre todos (mesmo todos) os assuntos internacionais em debate, sabendo à-partida que, nos EUA, tudo se determina e é determinado por dólares (a mais ou a menos), por armas e munições (idem) e pela manutenção a toda a força de uma hegemonia a que muitos já se habituaram e até conformaram, a atitude de ficar à margem é mais que adequada.

Ainda no tempo do fascismo, o saudoso José Mário Branco declarou-se, como muitos de nós, à margem. Foi em 1972, quando lançou o seu albúm “Margem de Certa Maneira”. Numa significativa passagem do tema que dá nome ao seu trabalho, diz “Há sempre um pequeno espaço / Entre movimento e passo / Entre passo e movimento / A corda que faz o laço / A força que faz o braço / Acordar o pensamento”. Se o passo é pequeno para acordar o pensamento, tanto melhor. Quer dizer que brevemente poderemos estar lá. Isso é mesmo o mais importante. De certa maneira.