ANA BEATRIZ AFFONSO PENNA
“Não será o medo da loucura que nos forçará a pôr a meia-haste a bandeira da imaginação” anuncia a epígrafe de A mamã por cima dos telhados e o meu amor da poeta portuguesa Maria Azenha. Citação retirada do Primeiro Manifesto do Surrealismo de André Breton, não é de se espantar que seja o surrealismo uma das forças abertamente expressas que percorre o livro, em conjunção com um dos topos de maior relevância psicanalítica: a função materna.
O volume, que se inicia com o poema “Tabernáculo”, sentencia: “Submeto os poemas à maternidade./ E são os mais amados.” (AZENHA, 2019, p. 9), para depois ser finalizado com a composição “O poema”:
Era a luz reunida numa alva manhã
E o seu pequeno coração
Unido ao meu
Combatia a grande solidão de Deus
Ouviu o som do mar
Depois começou a desintegrar-se
(ibidem, p. 74)
Tabernáculo, santuário portátil onde os hebreus guardavam e transportavam a arca da aliança e demais objetos sagrados, é evidentemente uma analogia ao corpo materno, cuja aliança psicocorpórea entre mãe e filha(o) muito comunga da sacralidade da relação do humano com o divino, conforme a justaposição de corações dos versos de “O poema” dá a perceber. No entanto, diferente de Deus, entidade individuada e masculina, o pequeno coração indiferenciado bate juntamente do da carne materna na “luz reunida numa alva manhã”, combatendo assim a solidão divina descorporificada, até, com o som do mar (elemento masculino), desintegrar-se (meus grifos). E poderíamos dizer isso: A mamã por cima dos telhados e o meu amor é um livro de luto, o qual aborda o difícil processo de separação do corpo materno, da cisão da submissão da(o) filha(o) à maternidade.
Em seu livro La Révolution du langage poétique, Julia Kristeva define o termo chora como uma fase no desenvolvimento psicossexual do sujeito caracterizada como um ritmo constantemente em movência que precede a significação linguística, uma não- expressiva totalidade que tem o poder de ressurgir de seu espaço reprimido no interior do domínio simbólico. Relacionado intimamente com a fase pré-Edipiana, o conceito é conectado ao maternal, o marginal, o poético e musical, não estando diretamente sujeito a uma forma sensível capitalista ou patriarcal, ainda que as diferentes pulsões que a compõem estejam “organizadas segundo várias restrições impostas ao corpo envolvidas no processo semiótico pela família e estruturas sociais” (KRISTEVA, 1984, p. 93).
Sua vinculação a uma fase pré-Edipiana é identificada como um momento em que o corpo materno ainda está em uma relação de continuidade com o da criança, um estado anterior à individuação do ego. Assim, se o simbólico, instaurado pelo complexo de Édipo, baseia-se na rejeição da mãe, a chora, mediante ritmos, jogos sonoros e repetições, recupera o corpo materno na linguagem ao abalar a dicotomia sujeito/objeto que o desejo implica, recuperando uma espécie de gozo que precede o surgimento do desejo. Dessa maneira, para Kristeva, a poesia e a maternidade representariam práticas privilegiadas no interior da cultura paternalmente sancionada de subversão cultural.
Em A mamã por cima dos telhados e o meu amor, o título “Mãe, ramo da história incestuosa do amor” não deixa dúvidas aos leitores da vinculação libidinal dos poemas com o materno. Ao mesmo tempo que ao longo dos poemas afirma-se a perda da mãe ( “Ó minha mãe, onde estás? / Ouves-me do céu?…” (AZENHA, 2019, p. 17) de “Carta submersa”, “Mãe – é dezembro/ Se morreste porque fazes/ Tanta força contra os números? (ibidem, p. 46) de “Com toda a força na paisagem”), o eu-lírico promulga a potência da figura perdida no insistente endereçamento e apelo à imensa e sexualizada força materna, tornando-a viva: “Mamã,/ Vem depressa buscar os meus beijos incendiados/ Para levar o mundo a escrever mais livros…” (ibidem, p. 27) de “A mamã por cima dos telhados e o meu amor”, “E sinto-me estranha aos teus símbolos./ E quero vê-los,/ Quero tocá-los no teu útero./ (…) Quero encerrar-me aí contigo/ e fazer o meu poema de guerra.” (ibidem, p. 38) de “Mãe, ramo da história incestuosa do amor”, “Mamã!.,/ Envia um telegrama a todos os jornais, anuncia/ Com o meu coração em febre,/ Com todos os meus punhos cerrados como que a rezar,/ Que fumo Camboja, liamba, (…),”(ibidem, p. 40) de “Mamã! Mamã Federal”.
Se no surrealismo o inconsciente funciona como uma fonte primordial de criação artística e, portanto, de entendimento do mundo, vê-se no livro de Maria Azenha como a função materna age como um eixo psíquico e, consequentemente, de sentido fundamental, no qual uma diversidade profícua de imagens díspares se cumulam. Em contraposição ao Vaticano “esse grande gângster de robe,/ Que anuncia/ A paz para os domingos” (AZENHA, 2019, p. 41), Mamã é interlocutora feminina de imagens desmedidas, de mãos profanas, bordéis de lágrimas, artes de sangue. Em todos os poemas do volume verifica-se o procedimento de justaposição invulgar de elementos a que se refere Breton em seu manifesto de 1924, em que imagens de realidades semânticas aparentemente distantes são postas ao lado a fim de provocar uma resposta emotiva.
Manifestamente há no livro de Azenha uma estética do excesso, sendo a frequente menção à loucura como ethos poético sintoma desse transbordamento (“E sinto-me como um violino doido,/ (…) Por cima dos telhados a arder…” (AZENHA, 2019, p. 25) de “A Mamã por cima dos telhados e o meu amor”, “O meu corpo ficou de cicatrizes,/ Estou em desordem.” (ibidem, p. 39) de “Mãe, ramo da história incestuosa do amor”. ). Karen Jackson Ford, em seu livro Gender and the Poetics of Excess: Moments of Brocade (1997), aponta que a poética do excesso busca resistir e/ou transgredir as opressivas e limitantes restrições da convenção em determinadas circunstâncias históricas. O excesso para Ford é “a rhetorical strategy adopted to overcome the prohibitions imposed by the application of a disabling concept of decorum”[1] (FORD, 1997, p. 13). Ao final da leitura de A mamã por cima dos telhados e o meu amor, apesar do eu-lírico afirmar em “A Mamã por cima dos telhados e o meu amor” que “Não gosto, mamã, deste tom destruído do mundo.” (ibidem, p. 29), resta ao leitor conjecturar sobre o que os massacres obstinadamente representados de África, Camboja, Hiroshima, “balas nos vestidos amarelos das crianças” (ibidem, p. 41), “os rios negros do terrorismo” (ibidem, p. 31), “as fezes com feiuras sacrossantas” (ibidem, p. 41) desejam libidinalmente significar quando conjugados para a expressão do amor maternal.
Referências bibliográficas:
AZENHA, Maria. A mamã por cima dos telhados e o meu amor. Bragança Paulista: Editora Urutau, 2019.
DÓRIA, Henrique. Apresentação da obra “De Amor Ardem os Bosques”. Silves. IV Bienal de Poesia de Silves, 22-26 de Abril de 2010.
FORD, Karen Jackson. Gender and the Poetics of Excess: Moments of Brocade. Jackson: University Press of Mississippi, 1997.
GUEDES, Maria Estela. Apresentação de A casa de ler no escuro, de Maria Azenha. Lisboa. Associação 25 de Abril, 7 de Outubro de 2016.
KRISTEVA, JULIA. Revolution in Poetic Language. Trad. Leon Roudiez. New York: Columbia University Press, 1984.
[1] “uma estratégia retórica adotada para superar as proibições impostas pela aplicação de um conceito limitante de decoro” (minha tradução).
ANA BEATRIZ AFFONSO PENNA