A luta das mulheres e as reformas na Igreja

 

BENTO DOMINGUES, O.P.


Não se pode continuar a manter as mulheres numa situação
de marginalidade sobre os ministérios estruturantes
da vida da Igreja, se queremos enfrentar,
de verdade, os nossos desafios actuais.

Depois de muitas controvérsias, o Caminho Sinodal da Igreja católica alemã arrancou no começo deste ano, mais precisamente, a 30 de Janeiro. Em Portugal, o 7Margens tem ajudado a seguir o que vai acontecendo nessa importante caminhada.

Um relatório divulgado a 26 de Junho 2020, pela Conferência Episcopal Alemã, revela que, em 2019, cerca de 270 mil alemães abandonaram a Igreja Católica, 26% superior ao do ano anterior. Recebido pelo Papa Francisco, o representante dos bispos do país, Georg Bätzing, não escondeu a sua preocupação. Em audiência privada, o bispo de Limburgo falou ao Papa do caminho sinodal na Alemanha e encorajou a continuação do processo de reforma.

Segundo o citado relatório, entre os factores que mais influenciaram o abandono do catolicismo incluem-se a não identificação com os ensinamentos da Igreja a respeito das questões de moral sexual, a recusa do acesso das mulheres à ordenação sacerdotal e o celibato obrigatório dos padres.

Retenho sobretudo as informações sobre a situação eclesial das mulheres, considerada a parte mais numerosa e mais fiel à Igreja.

Chegam-nos, cada vez mais, notícias acerca do que está a acontecer na Alemanha, em França, em Inglaterra, nos EUA e não só. Importa não esquecer que o mal-estar é muito mais vasto do que aquele que é expresso por algumas figuras feministas e pelos grupos mais ruidosos de alguns países.

É gritante o contraste entre as responsabilidades que as mulheres vão assumindo na vida profissional, social, cultural, económica e política e a menoridade em que são mantidas a respeito dos serviços que estruturam as comunidades católicas. Porquê? Porque não são homens. É a resposta.

  1. Não se pode continuar a manter as mulheres numa situação de marginalidade sobre os ministérios estruturantes da vida da Igreja, se queremos enfrentar, de verdade, os nossos desafios actuais. No entanto, bastava seguir a linha de originalidade e de atrevimento que Jesus Cristo assumiu, em relação ao estatuto da mulher, na cultura do seu tempo.

Como é possível que, em nome de certas tradições eclesiásticas, se despreze a grande Tradição confiada por Jesus Cristo Ressuscitado às mulheres, a de evangelizar os próprios Apóstolos? Estes dispersaram quando viram o Mestre crucificado, ruína irremediável das suas esperanças de poder.

A pergunta de fundo é esta: as mulheres são ou não são membros da Igreja ao mesmo título que os homens?

Como é possível esquecer que, na genuína tradição da Igreja, nunca houve um baptismo para homens e outro para mulheres? Na porta sacramental que o baptismo abre, em lado nenhum vem escrito que os homens são para a liderança e as mulheres para a submissão ao arbítrio masculino.

Haverá sempre uma grande diversidade de carismas, tanto no mundo masculino como no feminino e a necessidade de ministérios servidos por homens e mulheres. O baptismo não diferencia as responsabilidades da fé cristã dos homens e das mulheres. Em tudo o que viverem e fizerem devem ser parceiros.

O Cardial Gianfranco Ravasi, na leitura que faz do livro Que coisa é o homem? Um itinerário de antropologia bíblica[i], tem, a este respeito, uma observação muito sugestiva. Ao falar da frequência e do modo como as mentes de muitos são distorcidas por cristalizações ideológicas, dá o exemplo bíblico da célebre “costela” de Adão, da qual teria sido tirado o protótipo da mulher.

Na realidade, o correspondente vocábulo hebraico, “sela”, na Bíblia, «nunca designa uma parte específica do corpo, mas simplesmente um “lado” ou flanco de qualquer objecto. Se então se evita a referência a um órgão anatómico, poder-se-ia fazer emergir a ideia de que “homem e mulher” estão como ”lado a lado”, semelhantes na natureza constitutiva; e, ao mesmo tempo, eles são chamados a estar “lado a lado”, um ao lado do outro, como ajuda e aliados.

«Desmoronam-se, assim, todos os sarcasmos que foram tecidos sobre este excerto, com as relativas aplicações, infeliz e eficazmente concretas, em relação à dependência da mulher em relação ao homem contrabandeando-as como sacramente avalizadas»[ii].

  1. A situação só pode parecer desesperada para quem deixar de lutar pela mudança. Dou um exemplo. O famoso teólogo dominicano, Yves Congar, foi exilado três vezes para ver se o obrigavam a desistir de estudar, ensinar, escrever e publicar sobre as questões que exigiam reformas inadiáveis na Igreja católica. Sentiu que o queriam destruir. Conseguiu, no meio de muitos sofrimentos e tentações, aguentar. Pela mão de João XXIII, foi perito do Concílio Vaticano II. Os documentos finais desta magna Assembleia têm todos frutos do seu trabalho[iii].

Um desses pontos era o da situação dos leigos na Igreja. No esquema Supremi pastoris, preparado para o Vaticano I (1870), vem uma afirmação que diz o que hoje nos parece ridículo: «Ninguém pode ignorar que a Igreja é uma sociedade desigual, na qual, Deus destinou uns a comandar, os outros a obedecer. Estes são os leigos, os outros são os clérigos». Esta definição foi, depois, endurecida pelo direito canónico como indica a formulação, puramente negativa, de Pio XI: «os leigos são os cristãos a quem falta qualquer participação no poder quer de jurisdição quer da ordem».

Em 1975, Y. Congar mostra o que mudou: «Um traço característico da renovação na Igreja é o papel activo que nela assumem os leigos, conscientes da dignidade e responsabilidade que lhes confere a consagração baptismal, em comunhão com os bispos, os padres e os religiosos e não por subordinação a eles. Sabem que as suas tarefas podem ter um valor eterno no desígnio de Deus que confia ao ser humano o uso e o desenvolvimento da criação. Trabalham na transformação da sociedade humana para a tornar mais justa e fraterna»[iv].

Dada a lentidão de reformas, cuja urgência parece evidente, compreende-se que alguns movimentos e pessoas acabem por desesperar e batam com a porta ou abandonem a “casa” sem se despedir. No entanto, quem conseguir aguentar o peso de não ver nenhuma luz ao fundo do túnel, pertence ao número dos que esperam contra toda a esperança. São essas mulheres e homens que, muitas vezes, morrem antes de verem os frutos da sua luta que, paradoxalmente, vão permitir as reformas das instituições, desesperadamente lentas.

Ao dizer isto, não quero justificar os responsáveis pelas lentidões. É a própria história da Igreja que os condena.


[i] Card. Gianfranco Ravasi, Leitura do livro, Che cosa è l’Uomo? Un itinerário di antropologia bíblica, da Pontifícia Comissão Bíblica, publicada pela Pastoral da Cultura a 25.06.2020

[ii] cf. Génesis 2, 21-22

[iii] Cf. André Vauchez, Yves Congar et la place des Laïcs dans l’Ecclésiologie médiévale, in Cardinal Yves Congar 1904-1995, Cerf, 1999, pp.165-182

[iv] Cf. nota 3


in Público 12.07.2020

https://www.publico.pt/2020/07/12/opiniao/opiniao/luta-mulheres-reformas-igreja-1923735