A literatura – a casa do humanismo

 

MIGUEL REAL
Miguel Real (Portugal). Pseudónimo literário de Luís Martins (1953 -) Escritor, ensaísta e professor de filosofia.


Este novo livro de Isabel Ponce de Leão, Pro Litteris, não é apenas mais um livro da autora, mas um livro que, simultaneamente, resume uma obra e, até devido ao título emblemático, avança um manifesto pessoal em defesa do Humanismo.

Um dos dois rostos da Universidade Fernando Pessoa para a Literatura, Isabel Ponce de Leão fez dos estudos literários a sua casa, desdobrando as suas investigações e conclusões em torno de três grandes autores: Miguel Torga, Agustina Bessa-Luís e José Régio, sem minimização dos seus trabalhos sobre Saúl / Júlio Dias, Vasco Graça Moura e Albano Martins (fotobibliografia e a organização de um colóquio em torno da sua obra), bem como sobre inúmeros escritores em artigos publicados em revistas.

Com efeito, entre 1996 e 2017, entre obras pessoais ou de organização de congressos, publicou cinco livros sobre Miguel Torga, entre os quais dois muito importantes, um, uma síntese, O Essencial, outro já canónico, A Obrigação, a Devoção e a Maceração (O “Diário” de Miguel Torga); três livros sobre Agustina, o último em colaboração com Maria do Carmo Mendes; bem como a correspondência entre Régio e Agustina, para além da sua tese de doutoramento sobre Régio: Imagens da vida.  Presença: poesia e artes plásticas. Se quiséssemos ir ao osso do seu trabalho de investigação, elegeríamos Régio, Torga e Agustina como os escritores cuja obra foi iluminada pelos estudos de Isabel Ponce de Leão e cuja leitura se tornou absolutamente indispensável para o estabelecimento de um quadro analítico da produção portuguesa contemporânea.

Para não faltar à verdade, não podemos omitir o seu brilhante estudo sobre o erotismo (em Eras de Eros, com Francisco Simões, 2009, com quem partilhou igualmente a autoria de Diálogos Interculturais, 2008) e a publicação com Annabela Rita de Perigoso é… (2108), um ponto da situação actual do Humanismo.

Ora, o coração deste Pro Litteris (cap. I – “Ecos”) reside justamente em novos estudos de Isabel Ponce de Leão sobre Agustina, Régio e Sophia, e, neste sentido, como dissemos, é uma síntese da obra anterior da autora. Não nos admiremos que Torga não seja citado, cinco livros da autora sobre este escritor são suficientes para balizar a obra do diarista de Coimbra, bem como para lhe demarcar períodos e momentos principais. Mas não nos espantemos se, mais tarde, sair novo livro de Isabel Ponce de Leão sobre este autor: como diria o jovem João Bigotte Chorão, que fez esta experiência quando estudante em Coimbra, quem beija a obra de Torga é incapaz de esquecer o sabor do beijo.

Ainda que fortemente interessante o segundo capítulo (“Reflexos”), sobretudo os textos dedicados à obra estética de José Rodrigues, Júlio Resende, António Macedo e Francisco Simões), é no terceiro (“Dispersos”) que se evidencia a segunda grande novidade deste livro – o conjunto de argumentos de defesa do Humanismo. Como escreve na “Nota Prévia”, “Artes, ciência, sociedade, pedagogia, humanismo são os seus [do livro] pretextos…”.

Com efeito, em “Ryszard Kapuscinski e a (in)consciência da era antropocénica”, Isabel Ponce de Leão problematiza o termo “Antropoceno”, recusando o catastrofismo dos fins apocalípticos e, evocando o Manifesto Eco-modernista (2015), aponta, humanisticamente, para uma visão dos aspectos positivos “desta nova época geológica”, sublinhando que, hoje, a defesa do humano é igualmente a defesa da natureza e um novo Humanismo engloba, também, uma nova visão da natureza. Do mesmo modo, em “Jornalismo Cultural”, exigido pelas novas indústrias culturais e criativas, cujos produtos, vulgarizados pelo termo “entretenimento”, coloca o jornalismo cultural entre a adesão a uma visão elitista e a uma visão de massas da cultura. É neste sentido que o jornalismo cultural esquece a nova realidade intercultural do século XXI, heterogénea e porosa, para o qual se torna vital os conhecimentos histórico, antropológico, sociológico, artístico e político, considerando que, mais do que em outras modalidades do jornalismo, é essencial a formação global cultural do jornalista, superando tendências em modas e visões parciais da sociedade. Este subcapítulo tem continuidade teórica no seguinte, “Para uma desresponsabilização da imprensa na formação linguística dos (jovens) leitores”. Do mesmo modo, estes dois subcapítulos têm igual continuidade em “Casas de Escritores na Região Demarcada do Douro: sustentabilidade e turismo cultural – Portugal”, problematizando uma nova forma de turismo, o cultural.

Em “Complementaridades: a arte e a vida” e “Artes Plásticas, século XXI”, a autora, em síntese, expõe a sua visão da cultura do nosso século. No primeiro, operando um conspecto da história da literatura portuguesa, evidencia que “desde o século XII ao XXI, a interacção das artes, quer numa perspectiva diacrónica quer sincrónica, foi uma realidade e que só a sua complementaridade conseguiu erguer marcas distintivas do pensamento e acção do homem”. Com efeito, mais ostensivamente, é por via da Literatura (e na sua relação cultural “heterogénea e porosa” com o movimento das artes plásticas, mas poderia citar igualmente a história da música, do cinema…) que emerge este conceito de novo humanismo ou Neo-Humanismo que Isabel Ponce de Leão defende em Pro Litteris, não já o humanismo clássico, renascentista, erudito, livresco, elitista, de certo modo racional (ou racionalista), privilegiador dos estudos científicos e dos edifícios das antigas bibliotecas monumentais em pedra (símbolo de um tempo histórico), mas um novo, que funda os valores éticos universais que aquele nos legou, criados pela laicização dos valores cristãos e hoje, de certo modo, vazados na Cartas dos Direitos Humanos (1948), nos recentes estudos culturais e pós-coloniais e nas novas conquistas tecnológicas, sempre envolvidos, porém, por um manto estético, no qual, como fio-de-prumo, impera a Literatura, em boa verdade a Casa Cultural de Isabel Ponce de Leão, que a física, a geográfica, essa é o Porto, glorificado emotivamente nos últimos textos.

 


MIGUEL REAL