Foto: M Céu Costa
MARIA ESTELA GUEDES
Paulo Ghiraldelli, filósofo com canal no YouTube, onde conversa connosco diariamente, defende a tese de que a nossa sociedade, ou a sociedade nos regimes capitalistas, está deserotizada. Mais acrescenta que, para encontrarmos o seu rasto, é preciso ir para a dança, onde temos, exemplifica ele, o erotismo de Shakira, o erotismo de Machael Jackson, que não hesitou em pôr a mão no sexo. Temos Madonna, temos muitos mais, mas eu diria que nem toda a exposição de sexualidade na dança é erótica. Frequentemente limita-se à sedução, por exposição do corpo nu ou sinalética facial explícita, porém a extrema juventude de alguns artistas exclui a questão erótica, deixando o ato de sedução suspenso no vazio. Claro que tudo isto depende do observador, provavelmente a classe etária que mais vê os vídeos destes artistas reage de maneira diferente da nossa, escritores demasiado adultos, que lemos obras como O Amoroso, de José Viale Moutinho, em que o erotismo é algo de muito mais complexo/completo e ao mesmo tempo quase invisível.
Não deixemos de lado, entretanto, a questão de a tão curta vida do século XXI ter visto desaparecer o erotismo nos costumes, a ponto de o filósofo brasileiro contrariar com uma ironia baseada no descritivo fisicalista o que ele designa por uma juventude assexuada, de mãos ocupadas no teclado do portátil. Será? Se assim for, atravessamos um curioso período de esquecimento da cultura erótica que pelo mundo floresceu desde os mais remotos tempos pré-cristãos, e penso, entre mais, em Alexandrian, com a sua História da Literatura Erótica, que no-la comunicou tão exaustivamente. A juventude ignora talvez o que seja o erotismo, muito mais desembaraçada com o sexo e com a pornografia, e ocupada mentalmente com problemas vindos a lume nestes tempos, os da identidade e das minorias LGBT. Foucault entendia, na sua História da sexualidade, que a identidade sexual faz parte da constituição do sujeito desde o século XVIII.
José Viale Moutinho escreve poemas diáfanos, no avesso da pornografia, intimamente ligados à questão do sujeito, sim, mas posicionados na língua, como se fosse ela o sujeito feminino alongado no leito, à maneira de uma “Olympia” de Manet ou da “Grande odalisca” de Ingres. Se existe uma palavra-motriz, neste livro, desencadeadora de um arrebol de situações eróticas, ela é a palavra língua, “langue” em francês e “tongue” em inglês.
e a língua descobre
essa sombra
de carne viva
entre as pernas
“Língua” é um vocábulo muito rico, tanto como a energia sexual, que desempenha funções diversas e não unicamente a dirigida à procriação. A língua parece sintetizar esses diversos caminhos que o desejo sexual e o amor conduzem por vezes aos fulgurantes êxtases de felicidade. Mas tudo permanece ainda tão pouco estudado que ficamos por vezes perplexos com uma moralidade de sacristia prisioneira da maior das ignorâncias. A língua, dizia, é um órgão multifuncional, que toca o céu (palato) e a terrena folha de papel em que o poeta delineia os seus programas amorosos. Será por acaso que o termo vem a designar coisas tão diferentes como o músculo da boca e o código que usamos para comunicar? A língua diz e cria nomes, a fala não é um véu suspenso do teto de nuvens, ela é um bocado de carne capaz de dizer o que de mais importante ocorre na vida de um ser humano. Por isso o poeta ama os nomes, atribui ao nome – à palavra – a importância que daria a uma companheira:
doce nome
despe a blusa
deixa nus
os ombros
os seios livres
ao silêncio
da minha boca
Diáfanos, os poemas, translúcidos, porque vindos de detrás da névoa ou de uma cortina ligeira. Poemas curtos, que mal sugerem as situações mas que sintetizam nesta exiguidade uma amplitude de conceitos vindos da arte e muito em especial da arte da escrita: fotografia, música, poesia, tudo converge para o esboço do instante mágico a vir, tudo é bom para grafitar o que veio. La petite mort, o amor louco, o amor e a morte, daí, tão inevitável como ela, a aparição da língua morta:
e se a morte
se despe
nas tuas mãos?
e se a boca
se enche
de línguas mortas?
Delicado, subtil, substituída a fisicalidade erótica pela doçura da linguagem poética, o livro de José Viale Moutinho convoca a cultura e experiência dos leitores para irem retirando véu a véu os sete com que Salomé seduziu Herodes, de maneira a enfrentarem um Eros mais brutal. Esse facto avulta quando transposto para terceira pessoa: seja o pintor da obra dionisíaca da capa, seja Mihály Zichy, artista húngaro, de quem se reproduzem desenhos muito libidinosos no interior do livro e que, segundo nota final de O Amoroso, ilustram um livro fescenino, Poesie, de Giogio Baffo.
Talvez a juventude dos nossos dias seja assexuada e tente seduzir em vez de descobrir o seu Eros, como afirma Paulo Ghiraldelli. Será por falta de leitura, mas não é por os séniores lhe faltarem com o ensino e com os livros.
JOSÉ VIALE MOUTINHO
O Amoroso
Pontevedra /São Paulo, Editora Urutau, 2020