MARIA JOSÉ QUINTELA
FLO, edição 10 – 19 de Setembro 2024 . MESA 2 – Mote: NÃO O PRAZER, NÃO A GLÓRIA, NÃO O PODER: A LIBERDADE, UNICAMENTE A LIBERDADE (FERNANDO PESSOA)
É sem espanto que afirmo: não bastam três dimensões para validar uma experiência rente ao chão. Nunca se sabe entre que linhas de horizonte assenta a realidade.
Ou dito de outra forma: a realidade é uma paisagem circunstancial e passageira.
Habitamos provisoriamente este lugar de trânsito crítico com artérias que desembocam numa curva inconsumada.
Assim sendo, entre o nascente e o poente cumpre-nos ser o que somos, ir à boleia do vento e tirar o melhor proveito da luz. O resto é imaginação.
Toda a tragédia humana advém de carregar um fardo hereditário.
Uns carregam a consciência, outros, a ignorância, mas poucos sabem o que fazer com o brilho dos olhos. O que é este brilho senão o reflexo da sua interioridade?
Se bastasse ter olhos para ver, bastaria olhar. Mas um corpo alberga muito mais do que lhe pesa e do que lhe cabe, e esse excesso é a desmedida do limite interior.
Não devemos confiar cegamente nas aparências, sobretudo não devemos ir com os outros sem ir primeiro connosco. A boa fé é um atributo facilmente manipulado por quem melhor sabe pastar o poder. O foco nas aparências é já um condicionamento ao poder dominante.
Contra este poder, corruptor dos sentidos, existe um poder maior – é a liberdade de pensar que nos confere identidade.
A liberdade é um rumor de asas no interior de quem se arrisca a pensar sem medo de perder o chão ou de se perder de si.
Olhar a partir de dentro clarifica a nossa posição no universo. E nada é tão desastroso como perder a noção do espaço que ocupamos, um pequenino quintal cercado de intrigas e representações no limite da ocupação.
Olhamos para as coisas e nomeamo-las com desinteresse, sem as compreender.
Amortecemos a consciência praticando o alheamento. Mas, ao contrário do que muitos pensam, o mundo não é um lugar mais perigoso do que nós.
É inegável que existe a circunstância e a perspectiva, a descontinuidade na paisagem, a tendência para o impulso e para o atrito, o discurso dissonante e a máscara que se molda ao rosto. Todavia, no olhar aberto ao horizonte, disposto a constatar o que mudou da noite para o dia, há uma esperança de consciência benigna.
Aqueles que se esquivam da sua consciência vivem entre muros, atemorizados pelo pulsar do próprio coração.
A consciência apela ao pensamento e o pensamento é uma experiência revolucionária.
A primeira liberdade é, pois, a do pensamento – um exercício que se demora em tertúlias de combustão lenta apurando a respiração do mundo.
De olhos fechados, o horizonte é só um traço aparente, e o pensamento, uma fonte inesgotável de efeitos especiais capaz de transformar a cegueira em denúncia e a displicência em acção.
Quem pode assegurar que é a pedra que cai ao chão e não é o chão que se levanta?
Aqui chegados, cito Fernando Pessoa: “…a ciência não é senão um jogo de crianças no crepúsculo, um querer apanhar sombras de aves e parar sombras de ervas ao vento…” *
E eu traduzo: contra a incerteza devem considerar-se todas as possibilidades. Porque tudo o que está fora de nós também está dentro. A diferença é que por dentro somos nós que fazemos acontecer as coisas.
Liberdade é este exercício de equilíbrio exaustivo entre o interior e o exterior, ajustando o pensamento ao reflexo de uma luz intocável.
Somos livres quando trocamos a inércia pela vertigem do movimento capaz de transformar a própria realidade.
Tendo nós nascido condicionados para a desaparição, que outra motivação maior senão a de exercer a liberdade de pensar? Este é o único poder que liberta os nossos limites físicos. Todos os outros são conceitos póstumos. Está escrito na antologia da impermanência.
O ser humano é um misto de expectativa e tragédia.
Ouvimos muitas vezes dizer que “só não há solução para a morte”, como quem diz que é preferível albergar uma esperança falsa do que assumir o ângulo dramático dos dias.
Esta sentença não é mais do que a vontade de superar as limitações.
Diante da incerteza, a capacidade de sonhar tem a abrangência de uma súbita claridade.
Volto a citar Pessoa, no seu Livro do desassossego:
“… De sonhar ninguém se cansa. … Em sonhos consegui tudo. …” *
“…somos todos míopes, excepto para dentro. Só o sonho vê com o olhar…” *
Assim inspirada, atrevo-me a concluir:
A liberdade também assenta na clareza dos sonhos.
Livre é o pensamento que escolhe o seu sonho e o consegue ver ao longe já realizado. Sempre que não sonhamos acordamos envelhecidos.
Liberdade também é o nome próprio da brisa que rasga uma janela com grades.
Salta-se e pronto.
Ademais, temos a poesia, essa visão desassombrada e insubmissa da alma.
O ofício do poeta é o de escrever por extenso a paisagem interior, recriando a linguagem de um caminho ornamentado com flores da época, flores que cantam para não dormir, assegurando que a poesia não morre.
Entre a urgência da escrita e o rescaldo dos fulgores há-de explodir o entendimento, sendo crível que as imagens derretidas nos dedos têm uma pontuação de impacto imprevisível.
Diante do enorme desafio, o poeta nunca abandona as palavras e as mãos, sobretudo as causas, ainda que ponha em causa as próprias mãos.
Obrigada.
Maria José Quintela
*pág. 151, 120, 132 – Livro do desassossego, 2006