A imagem (notas para um ensaio)

 

YVETTE CENTENO


Yvette K.Centeno nasceu em Lisboa, em 1940, de mãe polaca e pai português Daí o K., que intrigava outrora tanta gente…) Casada, quatro filhos, 15 netos. Em Coimbra fundou o CITAC com outro grupo de colegas, e com eles seguiu a paixão do teatro, cuja escrita não abandonou, ao mesmo tempo que seguia em Germânicas uma carreira universitária. Aposentada hoje, da sua Cátedra de Literatura Alemã, continua a escrever, poesia ENTRE SILÊNCIOS 2020), teatro, romance, ensaio de investigação, e sempre a traduzir os seus autores preferidos, entre eles RILKE e Paul Celan.


Imagem, imaginar, imaginários – uma mesma raiz aberta a múltiplas reflexões.

A Imagem é uma Representação.

Remeto para o célebre quadro de René Magritte, um óleo datado de 1928-1929, um cachimbo, com uma legenda por baixo: ceci n’est pas une pipe.

Estabeleceu-se, com esta legenda, uma primeira reflexão sobre o que é uma imagem: é uma representação (do real) a não confundir com a realidade em si mesma, que seria no caso, um cachimbo que se pudesse fumar!

Aliás o título do quadro já é uma indicação do entendimento que o pintor tem das imagens face ao mundo real: o título é LA TRAHISON DES IMAGES.

E este é o comentário do artista, quando à sua volta se ergueram vozes de escândalo:

“ O famoso cachimbo. Como fui censurado por causa dele! E no entanto, seria possível carregar de tabaco o meu cachimbo? Não, é só uma representação, não é verdade? Por isso, se eu tivesse escrito no meu quadro’isto é um cachimbo’, estaria a mentir! “

Michel Foucault discute no seu estudo de 1973, Ceci N’est Pas Une Pipe, o aparente paradoxo com que o quadro nos confronta.

Falando de imagem/representação podemos discutir se a representação o é de um objecto real (como neste quadro) ou de um objecto imaginário: com este conceito de representação do imaginário, trazendo-o até nós, tornando-o por sua vez real deste modo, alcançamos, ou propomos, um novo patamar de discussão.

Neste patamar teriam lugar de destaque os Surrealistas e as suas criações, vivendo do imprevisível, do surpreendente, do que poderíamos chamar a lógica do inconsciente.

E neste caso já o real em si mesmo pouco nos preocuparia, dado que um outro real – o imaginário – se tinha tornado visível e apetecível.

Este é um patamar onde para além da questão da imagem se coloca uma outra: a do dizer, e em que linguagem: pictórica, literária, musical, etc. (deixando de fora um imaginário não menos interessante, o científico, com as novas capacidades de elaboração tecnológica hoje tornadas possíveis).

Oprefixo in, remete desde logo “para dentro”, ou seja para uma íntima visão (representação) emanada / construída a partir das esferas da nossa psique (consciente, sub- e in- consciente). Sendo assim, a Imagem, neste contexto, mais restrito ou mais amplo, terá sempre uma forte marca de subjectividade.

Nada que incomode um criador…ele procura, não o real imediato, acessível, mas a parte de mistério que o transcende. Algo como um para-lá do real  de que o criador resolveu ocupar-se. Podemos perguntar: mas há mistério no real ? Não é o real uma absoluta objectividade em si mesma? Pelos vistos não, para um criador que o interroga e pelo caminho se interroga também a si mesmo.

A imagem, tomada no sentido da Psicologia das Profundidades (Jung) é uma forma que se constrói nos sonhos, nas imaginações e  fantasias a partir de um núcleo de relacionamento entre o Sujeito consciente e a esfera profunda do Inconsciente. A alma (die Seele, Jung) projecta nas imagens a psicodinâmica do inconsciente na consciência. A alma cria imagens e símbolos e é ela mesma Imagem (itálico meu).

Imagens e símbolos, diz  ainda Jung, são de origem mais primitiva e mais variada do que a linguagem, e por isso um importante fundamento da comunicação humana.

Podemos avançar um pouco mais pelos conceitos : imagem, representação, projecção de conteúdos do inconsciente. Nos casos de que nos fala Jung, os sonhos, as fantasias, o conceito de Alma- sendo que a Alma é Imagem, é representação de uma Essência que de outro modo não seria inteligível – fomos sendo guiados para a tal visão íntima, subjectiva, da representação.

Mas fomos avançando um pouco mais.

Da Imagem /Representação à Imagem/Comunicação:

– em primeiro lugar do eu consigo mesmo (imagem /representação, do inconsciente à consciência)

– e em segundo lugar do eu com o outro, com o mundo (por via da representação / comunicação)

E fica uma pergunta: não poderá haver um centro próprio, específico, demarcado no cérebro de forma mais objectiva que seja o criador da imagem, e da representação?

Ao “mapear” um cérebro o que descobre, ou o que poderá vir a descobrir um dia, o neurobiólogo do século XXI? Guardo a ideia de que a imagem é talvez a sinapse de dois neurónios felizes que se entendem, como na definição de Eternidade que Rimbaud nos oferece no seu poema  L’ÉTERNITÉ, de 1872:

“Elle est retrouvée. / Quoi? – L’Éternité. / C’est la mer allée avec le soleil”

ou seja, o mar e o sol, a água e o fogo, numa conjunção ideal de completude: eis a sua imagem /representação da Eternidade:

Rimbaud

L’ÉTERNITÉ

Elle est retrouvée.

Quoi? – L’Éternité.

C’est la mer allée

Avec le soleil.

 

Âme sentinelle,

Murmurons l’aveu

De la nuit si nulle

Et du jour en feu.

 

Des humains suffrages,

Des communs élans

Là tu te dégages

Et voles selon.

 

Puisque de vous seules,

Braises de satin,

Le Devoir s’exhale

Sans qu’on dise: enfin.

 

Là pas d’espérance,

Nul orietur.

Science avec patience,

Le supplice est sûr.

 

Elle est retrouvée.

Quoi?- LÉternité.

C’est la mer allée

Avec le soleil.

 

Água e Fogo nesta junção elementar de opostos que definem, com o seu fulgôr, o Todo da Eternidade.

Encontramos no imaginário alquímico um semelhante entendimento da Eternidade como reunião, conjunção de opostos:

lua / sol ;

água / fogo;

dia / noite;

mercúrio / enxofre

macho / fêmea

etc.

Sendo que a Pedra Filosofal, de muitos nomes, como dizem os alquimistas, os reúne em si numa imagem de perfeição e completude.

A imagem ideal é a do Andrógino, trazida até à Modernidade a partir do Banquete de Platão. Ser esférico, completo, integrando os dois géneros, o masculino e o feminino, mas posteriormente castigado e dividido pelos deuses, permanece como arquétipo de um estado ideal que a Pedra dos alquimistas recupera.

Mas continuemos com a nossa reflexão:

O que será mais propício à nossa elaboração criadora? Um arquétipo, como o referido acima, ou um puro vazio, um espaço branco onde todas as imagens se podem projectar?

Recordemos a célebre série de Kazimir Malevich, nas telas a óleo de 1918: Branco sobre Branco.

A contemplação destes quadros, onde apesar de tudo o vazio não é pleno, pois se podem distinguir com clareza as marcas do pincel, a tensão e a intensidade dos tons de branco aplicados, abriu mais discussão na História e na Crítica da Arte. Os defensores destas formas ditas de suprema abstracção, designados como “Suprematistas”, o que propõem, seja no Branco seja no Negro, como absoluto contraponto ao Branco? Um novo entendimento da criação ou um novo entendimento da nossa relação com a obra criada e o seu criador?

É o criador um alter-ego nosso que faz a mediação entre nós e o mundo, visto pelos seus olhos? E que papel desempenha a imagem de suposto absoluto em relação a nós, ou ao seu criador?

É um suporte livre do nosso imaginário?

José Gil, numa obra que gosto de recordar, A Imagem-Nua e as pequenas percepções (1996), abre com “A visão do invisível”  e dedica um capítulo em especial ao “Caos  e Quadrado Negro” (p. 135).

Interroga-se José Gil: “ Porque é que a percepção estética precisa de ao mesmo tempo conhecer e ignorar a forma como objecto?Se a percepção neutraliza o conhecimento, este último, ainda que neutralizado, permanence: o quadro mais abstracto conserva sempre alguma coisa de ‘figurativo’. Até mesmo no Quadrado Branco sobre Fundo Branco de Malevitch o olhar  reconhece alguma coisa, um ‘quadrado’ pintado sobre um ‘fundo’ falso: adivinham-se aqui formas e fantasmas de formas.O quadro mais informal mostra ainda pontos, manchas, contornos, ou materiais rugosos, pregueados, lisos” (p.136).

É assim que a perturbadora criação do Quadrado Branco e a do Quadrado Negro leva o pintor a considerar a ruptura “total e definitiva com o mundo do objecto” (p.138).

Nasce a arte abstracta, como Suprematismo.

Neste movimento, de descoberta e de anulação, o que acontece à imagem como representação? Permite o anular da imagem dar lugar a novas formas ainda que não o desejem ser? Ou é imperioso que, para existir negação, haja primeiro alguma forma de real que se negue? E como podemos, pintando, anular a pintura? Ou falando anular a palavra? Esvaziando o sentido? Procurando um sentido no Vazio criado, adivinhado?

Encontro numa poema recente de Manuel Alegre uma interrogação semelhante:

Depois do Branco

Quem sabe o que na página se esconde

e se dentro do branco está um muro

e se depois do muro não há onde

e se depois do branco é tudo escuro?

 

Quem sabe o que pode acontecer

quando ao verso já escrito outro se junta

e tudo está no verso por escrever

e o que se escreve é só uma pergunta?

 

Quem sabe o que se vê e não se vê

se por dentro do branco apenas cabe

esse nome que nunca ninguém lê

e o verso que se sabe e não se sabe?

( in NADA ESTÁ ESCRITO, 2012 )

Este poema sublinha uma contradição de fundo : a do branco com o escuro ( podia chamar-se negro, como na alquimia e teríamos claramente o jogo de opostos da albedo com a nigredo); a da afirmação (do verso escrito) com a pergunta (a dúvida da interrogação) e finalmente a do visível ( a forma que se vê, o verso que se escreve) com o invisível (o nome que ninguém lê, o verso que não se sabe) e que é precisamente o que o branco contém.

Sendo que este branco de Manuel Alegre, como o do Quadrado de Malevitch, pressupõe uma revelação que o pintor, no seu tempo, também teve. Não a da fusão intemporal de Rimbaud no seu poema, mas a da anulação objectiva, temporal,  que o branco sobre o branco permitiu, abrindo a imaginação dos artistas a novos e revolucionários conceitos de produção artística.

O Suprematismo de uns, abolindo o Simbolismo ou o Realismo de outros, está na base da produção dos Modernistas em geral; e aqui se poderia aludir ao exemplo de Fernando Pessoa e a um dos seus mais antigos e interessantes poemas, ALÉM-DEUS, datado de 1913. Lança uma mesma interrogação, com a mesma carga metafísica, ao olhar o rio Tejo:

“O que é ser-rio e correr?

O que é está-lo eu a ver?”

A descrição do que sente conduz à imagem de “Vácuo”, o vazio que toma o lugar do momento ( o tempo) e do lugar ( o espaço). Desta anulação da consciência nascerá a experiência de Deus. Veja-se através de que passos:

 Tudo de repente é ôco-

Mesmo o meu estar a pensar.

Tudo – eu e o mundo em redor-

Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,

E do pensar se me some.

Fico sem poder ligar

Ser, idéia, alma de nome

A mim, à terra e aos céus.

E súbito encontro Deus.

Este Deus, secreto, escondido no escuro e no silêncio da alma, Essência que não se revela mas arrebata e absorve, como um buraco negro, levando à dissolução da consciência de si, na dissolução de todo o mundo exterior – não é um Deus que Malevitch ou outros dos seguidores tenham de verdade procurado. O que procuravam, no exercício da sua Arte, era antes como destruir a norma, que lhes pesava, de um Figurativo realista que se tornara obsoleto. E pelo apagamento da Forma recuperar o Sentido: um sentido, qualquer um, desde que aberto a todas as sensações (o que em Portugal seria o projecto do Sensacionismo). E por oposição, seguindo o mesmo modelo, recusando todas as sensações, pois a recusa de tudo é uma forma de inclusão.

Servem estas reflexões para o aprofundamento da definição de Imagem? Imagem como representação ou anulação de um real que na Arte perdeu o sentido?

Haverá sempre um momento em que a energia profunda de uma ideia poderá apropriar-se da mão que pinta, ou que escreve – e então nascerá uma Imagem: mais realista do que outrora ( com os surrealistas, por exemplo) ou mais abstracta, mas representando sempre a pulsão que impele o criador nesse seu gesto, que será sempre vivido como primeiro, primordial e fundador.

O que nos remete de novo para o conceito de Arquétipo, como Jung o definiu.