FREI BENTO DOMINGUES, O.P.
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A festa litúrgica da Ascensão não é a celebração da passagem de Jesus à reforma, nem a sua fuga para o céu, seu lugar de repouso junto de Deus, onde aguardaria, no eterno descanso, os discípulos que fossem aparecendo.
A este respeito, as narrativas dos Evangelhos e dos Actos dos Apóstolos, embora não sejam contraditórias, ajustam-se com alguma dificuldade. Frutos de várias estratégias, e em contextos diferentes, tentam interpretar a significação do itinerário terrestre de Jesus para comunidades que não O conheceram. Parecem um retorno ao passado – “naquele tempo” -, mas por causa do presente. As promessas paradisíacas não são evasões deste vale de lágrimas.
São textos que procuram, por um lado, mostrar que o tempo da visibilidade da figura histórica de Jesus está encerrado; já não há ninguém para dizer eu vi! Por outro, todas as narrativas, discursos e exortações insistem na sua invisível presença. Como disse o Ressuscitado ao empirista Tomé: felizes os que crêem sem ver.
Nada disto impediu que, muito cedo, tenham surgido na Igreja duas tendências que não deveriam ser dissociadas, mas complementares: uma insiste mais na dimensão contemplativa, na comunhão mística com Cristo, e outra que não aceita a espiritualidade de gente consolada e pasmada a olhar para o céu, quando há tanto que fazer pela alegria pascal, transformante da sociedade.
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Lucas construiu, nos Actos, o começo da sua história da Igreja, um espantoso teatro, em três actos, para não separar o que, em tensão permanente, deve caminhar unido[i]. O primeiro mostra um Jesus ressuscitado, impotente perante a insistência dos discípulos em continuar a sonhar com poder, riqueza e glória. Não deveriam esquecer que foi o baptismo no Espirito de Deus que alterou o rumo da vida de Jesus. Foi Ele que o reorientou, guiou e animou, mesmo no meio das maiores tribulações. Um discípulo não é mais do que o Mestre: o Espírito Santo descerá sobre vós e Dele recebereis força. Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra.
No segundo acto, Jesus entra na nuvem da divina invisibilidade, – a Ascensão -, mas com um aviso solene: não quero gente pasmada, a olhar para o céu, pois há muito que fazer na sociedade. Não à toa, mas de forma bem preparada nas fontes da contemplação do Mistério, para a conversão do desejo de mandar, em desejo de servir.
No terceiro acto, fica vincada a convicção de que a essencial simbólica dos Doze Apóstolos não pode ser confundida com a Igreja. Esta é constituída por homens e mulheres que se vão convertendo, entre elas, Maria, mãe de Jesus e os seus irmãos. Toda a comunidade participou na escolha de um candidato para substituir Judas, o traidor.
É neste cenário que a alegria pascal se consuma na loucura do Pentecostes, na bebedeira do Espírito Santo. Ficamos a saber que Jesus, pela Ascensão, não foi para férias.
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Volta e meia manifestam-se comportamentos nas celebrações da Fé, sobretudo na Eucaristia, que revelam que ainda não saímos do culto idolátrico de certos gestos tidos como os únicos admissíveis. Pessoalmente, não me importa que as pessoas rezem de pé ou de joelhos – também se pode rezar deitado -, que comunguem pela própria mão ou pela mão do ministro da Comunhão que pode considerar os adultos como bebés ou doentes. Aconselharia, no entanto, a leitura de uma obra de José Manuel Bernal[ii] para entrar na inteligência do tempo pascal constituído por cinquenta dias, entendidos como um grande Domingo, um tempo para refazer, na Alegria, a vida à luz da vitória de Cristo sobre a morte. Tertuliano, entre muitos outros autores cristãos da Antiguidade, repetem: nós consideramos que, ao Domingo não é permitido jejuar nem rezar de joelhos. Do mesmo privilégio gozamos no dia da Páscoa e no período do Pentecostes.
Seria ridículo reduzir a significação do tempo pascal ao cumprimento das prescrições de um Directório Litúrgico. Um ritual não pode ser auto referente. Uma assembleia celebrante ao fazer tudo o que nele está mandado e como está mandado pode realizar a suprema traição. Uma comunidade crente não existe para o culto, mas o culto para a transformação cristã da comunidade.
Ouço perguntar, muitas vezes, qual o papel da religião no mundo contemporâneo. Essa questão pode conduzir a becos sem saída, como se lhe competisse resolver os problemas políticos, sociais e culturais de uma determinada população e, se o não fizer, é considerada inútil.
Do ponto de vista cristão, haverá sempre quem se pergunte porque é que Jesus, que teve uma intervenção profética tão exigente no campo económico, político e religioso-cultual, não nos tenha deixado um manual pronto a servir para todos os tempos e lugares acerca do que os cristãos devem pensar, fazer e rezar? Era prático e não devia ser difícil à sua sabedoria divina.
Se o caminho cristão fosse apenas a adesão mística à transcendência absoluta de Deus, bastava deixá-lO em paz e que Ele nos deixasse também em paz e ponto final. Mas o Verbo fez-se fragilidade humana e todo o seu percurso foi para que a vossa alegria seja completa[iii].
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A degradação da religião é feita pelas idolatrias criadas pelos nossos desejos de poder de dominação: pelo dinheiro, pela política, pela própria religião ou por tudo isso junto. Adoramos o que nos destrói e destrói o nosso mundo.
Desde o profeta Moisés, a religião autêntica brota da revelação de um Deus irrepresentável, mas que não tolera idolatrias que nos degradem. Jesus teve de vencer, desde o começo, as chamadas tentações messiânicas: servir-se, em nome de Deus, do poder económico, político e religioso para a realização da sua missão. Ao recusar esse caminho, tornou-se um homem livre, capaz de denunciar tudo o que escravizava a vida dos seus contemporâneos.
Como diz S. Tomás de Aquino, não se recolheu num mosteiro para ter uma vida de iluminada contemplação. Não Lhe bastou ser luz. Viveu no meio do povo para que todos vissem o que liberta e o que escraviza o ser humano. O testamento que nos entrega nesta festa da Ascensão continua a ser o mesmo: não é de uma Igreja de gente pasmada a olhar para o Céu que se podem descobrir e manifestar as idolatrias que nos escravizam. Como diz o Papa Francisco o que importa é uma Igreja de saída para todas as periferias.
in Público, 13.05.2018
[i] Act 1, 6-11
[ii] Para Viver o Ano Litúrgico, Gráfica de Coimbra, 2001.
[iii] Jo 15, 11; 16, 24; 1Jo 1, 1-4; Cf Jo 10,10