A Ideia celebra o centenário da escrita automática

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov


A Ideia, Revista de cultura libertária, é sempre um ponto alto no balanço cultural, artístico e literário do ano. O lançamento do último tomo decorreu no Museu do Aljube no passado sábado, dia 1 de fevereiro de 2020, porém o número triplo 87-88-89, com abertura – a real abertura é o «Limiar» e o «Pequeno poema a Angola», de Cruzeiro Seixas  – dedicada aos 100 anos do nascimento da escrita automática, tem data de 2019, ano de muitas provas de vitalidade do surrealismo, em muitos países, especialmente daqueles em que o movimento nasceu, mais impacto exerceu e sobrevive ainda, como herança reclamada e prática cultivada por artistas europeus e da América Latina. O surrealismo tem a favor da sua intemporalidade o apelo à liberdade, acrescida por esta circunstância triste de a falta dela ser uma ferida  que sempre sangra em muitas partes do globo. Se o automatismo psíquico aspira à liberdade de expressão da alma, o seu anarquismo aspira à liberdade social e política.

Contou, a apresentação pública, com a participação do diretor da revista,  António Cândido Franco,  e de outros intelectuais, uma vez que, habitualmente, o lançamento corresponde  a um distinto evento cultural: Risoleta Pinto Pedro, a cargo de quem ficaram leituras de textos publicados n’A Ideia, um deles, bem inesperado pelo vanguardismo e ideias anarquistas, assinado em 1849 por António Feliciano de Castilho, «Mnemotecnia & Automatismo», a requerer a extinção dos exércitos.

Cito, do press release: “Mário Rui Pinto, no quadro do centenário da fundação do jornal da CGT, fez uma apresentação pessoal do livro de João Freire, Quatro Itinerários Anarquistas – Botelho, Quintal, Santana e Aquino, que retrata quatro vidas que estiveram ligadas ao jornal A Batalha, ao sindicalismo libertário da CGT e às suas ideias. Por fim Carlos d’Abreu e Paulo Jorge Brito e Abreu apresentaram o universo verbal de Jesús Lizano (1931-2015), poeta libertário de Barcelona, senhor dum pensamento soberano e muito próprio, que ele chamou misticismo libertário. Mundo Real Poético, sinónimo para ele de acracia, se chama a bela antologia que Carlos d’Abreu dele traduziu e que a editora anarquista Barricada de Livros e o jornal A Batalha co-editaram”.

Embora triplo o volume, num total de 320 páginas, ele junta, como suplemento, uma antologia de poemas de Paulo Jorge Brito e Abreu, no seu habitual âmbito místico, Duma oração portuguesa, ilustrada por Rik Lina, que assina também a contracapa do volume triplo de A Ideia, emparceirando assim com Mário Cesariny, reproduzido na capa.

Para relembrar a técnica surrealista desencadeada pela publicação de Les champs magnétiques,  de André Breton e Philippe Soupault, António Cândido Franco, organizador, optou por um inquérito a cerca de quarenta autores, portugueses e estrangeiros, sobre o impacto na sua obra da escrita automática. Uma pergunta destas implica o conhecimento e a diagnose das obras de modo a integrá-las no movimento, o que é tão  curioso como as variadas respostas, nas quais, de resto, se colhe a lição para os jovens do que é a escrita automática. A resolver problemas, e a incluir num anel todas as respostas, António Cândido Franco remata o inquério com um extenso ensaio, histórico e exegético, sobre a escrita automática, que abrange outros procedimentos e conceitos do surrealismo. Em jeito anarco-surrealista, intitula o ensaio «Fluidos, berlindes, médiuns, bolas de cristal & carvões».

Internacional, muito cuidada, belamente ilustrada e fornecida de textos, A Ideia tem sido um contributo valioso, quer como memória, quer como ensaísmo e quer como publicação de criação pura contemporânea, não só quanto ao surrealismo como relativamente à cultura em geral do nosso tempo. E sem perder a vertente anarquista original.

A IDEIA
Revista de cultura libertária

Portugal, 2019