JONAS PULIDO VALENTE
Anti-inflamatório, benzas, amassas, cancro, hunttington, ralé da micose, todos no teu colo, peso morto enquanto contemplas a desolação que é a vida a olhar para si mesma.
E aí beijas alguém, ou não, respiras, ou não. De parede a parede o recheio não é retalho, mas algo que realmente poderá ser útil e algo sem preço. Podes andar de carro, correr a distância recortada entre a terra e o mar até encontrares alguém, alguém que esteja ao teu lado numa bomba de gasolina, alguém que compreenda e ame o véu nocturno, e que igualmente goste de ressecar o Sol que da mesma forma toca nos telhados, aquece os passeios e o asfalto, tempere o mar.
Quando cai o Inverno muda o cartaz, entram as roupas pretas, os mochachinos, sobretudos e um sentido de urgência calma em que tudo tem uma definição prévia, algo difícil de explicar, ou seria o Inverno apenas uma estação de passagem. Outra latitude, talvez.
Ao fugir da chuva para uma cave onde passe música de Seattle, aquecemo-nos com vapor, fumo de cigarro e apreciamos o fugaz Verão de São Martinho, tal Indian Summer que está a dar-nos a despedida de sonho de Verão perdido, perdido como nós, como o fomos.
E assim continuamos, ano após ano, a estorricar a alma, para depois atingir a entropia fatal que nos prende a um micro-estado, centelha apagada, um espasmo morto, quase-figura que se apresenta como um jovem a começar a vida no mesmo pé em que a termina como velho. É um momento feio, mas passageiro, é a nossa cisão, criação, fornicação de almas, tal palavra obscenamente limpa para o que deveria ser a mais fácil das aventuras humanas, sendo que tudo foi feito à volta disso, mas isso parece algo que não deveria ser enfatizado.
Amanhã vou acordar mareado, bebo o primeiro expresso do milénio, cliente quinhentos de mim mesmo, irei fazer o que é suposto e caminharei na faixa designada. Mau rapaz, controla o ego e quebra regras como se não fosse o mesmo o maior apoiante de tal ideia.
Já não sou um grande fã do gin caseiro, nem da horta do Jaffa, nem do cliente habitual, sou realmente o velho mirrado de quem tinha medo, e jurei combater, é a tal centelha apagada que um dia irá brilhar com o infinito potencial do ponto de luz que quer desdobrar o seu passado também sobre o seu futuro.
E isso, meus amigos, é talvez a minha maior preocupação, algo pequeno no plano geral, mas um calcanhar de Aquiles longe do que é o pensamento de alguém que está a fazer fotosíntese e simbiose humana ao mesmo tempo. Não sou despreocupado por esse motivo, e mesmo que me junte ao amor universal creio que terei esse avatar de dupla personalidade, o meu outro eu, cuspireiro e fumador, crítico de letras disformes, amante do Tao insano sempre atrás da minha orelha, pronto a saltar. Se aterrar aqui essa núvem que paira na minha mente irá saltar e ganhar forma humana, mais forte dia após dia até ter um peso no mundo. Tenho que subir umas escadas antes de ganhar raízes.
Nada disto estava nos meus pensamentos durante a minha segunda adolescência, enquanto ia com amigos de casa em casa no Oeste, desde bandas de garagem a vivendas semi-ocupadas com pais de férias, praias selvagens para simplesmente parar e bares genuinamente a servir a comunidade. Trocas de vinyl e carnaval à chuva. Foram uns tempos fixes.
E essa é a esperança. Que a próxima vez que a centelha se acenda, que todo o sal do Mar Vermelho permita a que exista um magnetismo à volta da ideia. A ideia foi o que moveu tantos de nós, tirando-nos da juventude, formando opiniões, tomando posições. A ideia do que é, seja o que fôr para quem o quiser, foi o que nos moveu, foi o que me fez gostar tanto das minhas duas adolescências, foi o que nos fez levantar da cama e deitar de novo nela, por vezes acompanhado.
Somos mais que nó mesmos, somos a ideia. É daí que provêm as nossas posições. Mas a ideia, tal como o irreligioso Tao, não pode ser apanhada, não pode ser domada, e perdurará na sua versão pessoal em cada um de nós, enquanto nós o formos e quando chegar o festim do dia em que formos irremediavelmente adultos, dançaremos sobre a sua sombra.