MARIA ESTELA GUEDES
Com o termo “gadanha”, regionalismo que abarca diferentes significados, Aurelino Costa intitula o seu último livro de poemas. A gadanha é um utensílio de cozinha e também uma alfaia agrícola; num caso ou noutro, é um termo forte, e estou a lembrar-me de Herberto Helder, que de forma semelhante identificou um dos seus primeiros livros, ou mesmo o primeiro, A colher na boca. São contudo poetas muito diferentes, Aurelino tende para a minimalidade, um mínimo que é o máximo, caso precisamente do título que, diferentemente do de Herberto, não define a função do utensílio.
Se o meu comentário incide mais nas palavras do que nas frases, tal se deve à circunstância de o discurso de Aurelino ser frequentemente fragmentário e mesmo assintático. Sendo frágeis as relações lógicas entre termos, dificilmente logramos acesso ao que ele pensa, o que privilegia algo como a poesia pura, o instante encantatório. Não sabemos o que pensa Aurelino Costa, sabemos porém o que pensar, se dermos atenção, por exemplo, a um dos registos lexicais mais incomuns, o que na infância nos deu de comer à boca; nesse campo semântico figura precisamente a gadanha, que é a concha da sopa, e também a foice: de um lado a vida, de outro o seu complemento, a morte. Então, o minimalismo de Aurelino Costa tem neste caso o melhor exemplo: só com a palavra “gadanha” ele consegue abarcar uma vida, cujo fim não conhecemos, mas cuja infância alastra no livro, naquelas fulgurações que se tornam inesquecíveis por impressionarem com muita intensidade os órgãos dos sentidos – seja exemplo o enxofre misturado com mel queimado, no poema 21, usado como desinfestante das arcas de armazenar milho.
Além do discurso fragmentário e por vezes assintático, também é marca da personalidade do poeta o seu humor, um riso agudo que pode manifestar-se no uso de palavra parecida com aquela que seria de esperar, porém inadequada às circunstâncias. Vejamos um poema que ilustra o que venho dizendo da poesia de Aurelino Costa:
(declaração de amor)O gado retrai-sedeita-se no feno…
A carteira é grande demaisos pés balançam e o tinteirode porcelana fica longeBebo o cheiro a tintaescrevo duas frasesestou no fim do quadroTudo é negroexpelindo solcomo é bom, beber-teAo ordenharesque leia a liçãofico atiçado
– nos lábios lacradosdos matadouros.Como há miléniosos humanos vendem-senos (re)talhos.
Em Hannovera Hochshule für Musiktem as marcas da guerranas bicicletas pedalam pomboscom seus instrumentosum violoncelo ali vai empinadoem seu rabo de cavalocomo são livres os diasem suas crinas lisasnum lagoque lentamente degelaos corvos em ciodespem-se para a lua.
GADANHA
Aurelino Costa
Prefácio
António Cabrita
Ilustração
Anxo Pastor
Porto, Edição Modo de Ler, 2018