ROSANA PICCOLO
II
a fuga do pássaro
trama de sombras
vidraças
a vermelhidão do galo
ao gume do vento
gótica desordem de bocas
a chuva negro tinteiro
desaba sobre os automóveis
e
chauffeurs
III
meias do medo
finíssimas
as árvores o seu espelho
língua tivesse verde seria
envenenada ponta de flecha
treva
medo do beco
medo do bêbado
medo do muro
medo de tudo
gira
como um vestido de baile
IV
manhãs levantam colchas e mantas brancas
ossos estalam como acha
sob chuveiros a gás
fragrâncias
são as primeiras a sair de casa
são como cães
na guarda dos amos que partem
altos
picados pela brisa glacial
não há frágua, fósforo, fornalha que lhes queime a
alma de amianto
quando o rei enlouquecido torna a cidade
em um milhão de tapetes de fogo
surgem da ruína recém-barbeados
pelotão de demônios
VII
creio na sereia das esquinas
oculta na tragada do cigarro
que guardo entre os seios
na sereia rueira
creio no círculo
na equação devir-memória
escrita
na palma da mão
quero a sereia inconformada
quando na praça pousam cegonhas do frio
VIII
(percorro-lhe a pétala
dedos quebrados
ao sumo do inverno)
(percorro-lhe a pele gelada por crimes
perfumes
gralhas fugitivas)
encontro-lhe as asas redondas como de
um anjo estranho
miríade de dedos na mão recurva da noite
e não consigo perder-me em nenhum
Rosana Piccolo é publicitária e poeta. Formada em Filosofia, pela USP, e em Jornalismo, pela Fundação Cásper Líbero. Autora dos livros de poemas Ruelas Profanas (Nankin, 1999), Meio-fio (Iluminuras, 2003), Sopro de Vitrines (Alameda, 2010), Refrão da Fuligem (Patuá, 2013) e Bocas de Lobo (Patuá, 2015). Os poemas acima fazem parte da plaquete O Pão, publicada pela Lumme Editor, no segundo semestre de 2017.