A ferida

LUÍS COSTA
A ferida

Aqui estou. Lançado… sem saber porquê nem para quê. Uma sensação brumosa invade-me, algo de abstrato, algo de abstrato… Mas que se me crava na carne, avança pelo sangue, pelos nervos, pelos ossos, que sinto tão real como uma pedra em brasa apertada entre as mãos, ou um pedaço de carne que um cão esfomeado devorasse.

Aqui estou. atirado… Procuro as palavras. Palavras exatas. Palavras capazes de dizerem o que talvez nunca possa ser dito. Não haverá entre a palavra e o objeto, seja este concreto ou abstrato, um fosso, um fosso profundo, intransponível? Poderão as palavras algum dia conter a essência do objeto? Descer aos abismos? Dar a essência do objeto? Mas haverá uma essência?

Aqui estou… Vazio. Avançando como quem constrói… O mundo aberto. Mil e tantas possibilidades… Avanço, fazendo-me, para logo me desfazer e refazer e desfazer e refazer… É o vazio total. A inconsistência… Como um murro no estômago. Como um murro. E tudo estremece: o sangue a língua, as palavras. A ferida aberta… Ó dor inexplicável!

Poderão algum dia as palavras captar tal dor? Entre o mundo e a palavra? O abismo. A dor de saber sem saber porquê, nem para quê. A mudez. Ah! A ferida.


Epílogo

Paterson está sentado num banco: ao fundo a ponte, mais atrás, a cascata. A água possante, em borbotões.

Deprimido, Paterson abre um caderno raro que um turista japonês, um poeta, admirador de William Carlos Williams, lhe acaba de oferecer.

Paterson abre, hesitante, o caderno, tira uma esferográfica e, irremediavelmente, começa a escrever: linha a linha, um poema vai-se fazendo.

Depois de o seu cão Marvin lhe ter destruído o caderno de poemas que ele tinha vindo, ao longo dos anos e dos últimos seis dias, a elaborar: é a ressurreição!

O livro de um poeta (como neste caso, porquanto inédito, poderá ser irremediavelmente destruído) mas a poesia, essa, continua a existir enquanto o poeta existir. Pois poderá um poeta ser poeta sem poesia?

Paterson contempla, budisticamente, a ponte, a cascata… E escreve. Escreve!
Paterson escreve um poema sobre a cidade de Paterson na cidade de Paterson num caderno raro que um poeta japonês, tal como ele admirador de William Carlos Williams, lhe acaba de oferecer.